Encontramos Mário Marques na oficina de produção, contígua ao Palácio Stephens, a casa do Museu do Vidro, na Marinha Grande, onde molda peças coloridas à vista de quem chega. Tinha 13 anos quando se sentou pela primeira vez a modelar o vidro e, aos 90, continua a ser “um artista” do maçarico. Aprendeu a arte com o pai, de quem herdou a alcunha Macatrão, pela qual continua a ser conhecido. “Aos 14 anos, trabalhava ao lado da velharia toda e ganhava tanto ou mais do que eles”, exalta Mário, até que decidiu mudar de ares e procurar o avô do outro lado do Atlântico. Como ele mandava cartas muito bonitas, pensou ir até lá “gastar uns trocados do velho”. Encontrou-o na Baía, mas da fortuna nem sinal. Mudou-se para São Paulo e dedicou-se à indústria vidreira, chegando a ter duas fábricas, com cerca de 300 empregados.
Regressou, em 2001, à Marinha Grande, deixando para trás 15 bisnetos. Apesar de reformado, aos 70 anos, tirou o curso de formador e ainda hoje mantém aquele “jeitinho” brasileiro de falar português. Atrás da bancada, das suas mãos hábeis saem flores, animais, colares e crucifixos, de vidro colorido. Ao seu lado, José Medeiros passa, para as mãos dos visitantes, jarros e garrafas, bem como o frasco do vidreiro, feito em vidro simples, liso e achatado dos dois lados para acomodar-se nos bolsos. Além de ter um gargalo apertado, para dar a sensação de beber-se muito, este era fácil de manusear durante a refeição, geralmente realizada junto ao posto de trabalho.
Situado no centro da cidade, num edifício setecentista, o Museu do Vidro é um elemento essencial para se conhecer a história da indústria vidreira, com quase 300 anos de tradição. Na visita, começa-se por destacar a figura de Guilherme Stephens que, a convite do Marquês de Pombal, reabriu a Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande. No rés do chão, acolhem-se exposições temporárias, enquanto no primeiro andar se encontram peças singulares, como o extraordinário lustre com pingentes em forma de bacalhau, igual (embora mais pequeno) ao que está na Casa Branca, nos EUA, e a garrafa, oferecida ao rei D. Carlos, na qual era possível ter, em simultâneo, cinco vinhos. Já nas águas-furtadas, destacam-se os diferentes métodos de fabrico, as máquinas e os utensílios usados neste ofício. O museu integra um roteiro dedicado ao património industrial da Região Centro, que quer dar a conhecer as vivências e o saber-fazer de artesãos, em ambiente fabril.
Da arte do vidro à indústria, a distância é curta – e vale a visita. Na Vidrexport, a única fábrica da Marinha Grande, dizem-nos, é possível assistir ao trabalho manual do vidro soprado. Fundada nos anos 90, a empresa está voltada para a produção de garrafas para licor, gin e água, de telhas e peças de iluminação, elucida Hermenegildo Santos, um dos sócios. Junto ao forno, peça fundamental nesta engrenagem, a cadência das máquinas, que, em poucos segundos, dão uma forma translúcida à matéria incandescente, chega a ser hipnotizante. Mas observar o ritual artesanal de laboração de peças em vidro fundido é algo fascinante de que nunca mais se esquece. Com um compasso e uma quase mecânica precisão, veem-se as bochechas do artesão dilatadas pelo ar, as mãos a rodar a cana (ou o tubo de sopro) e o olhar à procura da mais pequena imperfeição. Caso exista, as peças são rejeitadas, sendo depois trituradas para dar origem a novas.
Deixamos a Marinha Grande para trás, sem sair da região de Leiria, para ver de perto uma indústria rodeada de histórias. A da cimenteira Maceira-Liz, cujo primeiro registo remonta a 3 de maio de 1920, conta-se em fotografias de época, cadernos de apontamentos, livros de faturas e demais ferramentas. “Tivemos a sorte de os fundadores da fábrica, Henrique Sommer e José Rocha e Melo, terem uma obsessão documental”, elogia Nuno Maia, da Secil, grupo que detém a unidade. Ao lado dele, seguem Rogério Ferreira e Abílio Frade, antigos trabalhadores da fábrica, residentes no bairro operário e habituados a orientar as visitas.
“Não era normal chamar alguém famoso, como Domingos Alvão, para fotografar um terreno vazio, mas houve esse cuidado”, acrescenta. Neste percurso pela história, desde a fundação, na época com o nome Empreza de Cimentos de Leiria, às explicações sobre a origem romana do cimento somam-se a evolução tecnológica, as características da região e, claro, o bairro operário, com escolas, piscina, capela… Já no exterior, observa-se a primeira locomotiva a vapor utilizada no ramal de ligação à Linha do Oeste, entre 1926 e 1987, a central turbogeradora, o jardim com achados do período jurássico e um miradouro com vista para a pedreira, onde é feita a extração.
Uma “Andorinha” sobre carris
Seguimos rumo ao Entroncamento, a cidade onde viajamos no tempo, à descoberta de mais de 160 anos de história dos caminhos de ferro em Portugal. Estamos no Museu Nacional Ferroviário, um lugar de memórias, que acolhe uma grande diversidade de documentos e objetos, além de locomotivas, carruagens e vagões. Ocupa uma área de 4,5 hectares (cerca de seis campos de futebol) e estende-se por três edifícios.
No primeiro, o Armazém de Víveres, construído na década de 1940, era onde os ferroviários faziam as compras. Atravessando o “túnel da velocidade”, qual viagem no tempo, recua-se aos primórdios do comboio a vapor e da construção da ferrovia no País. A aventura começa com uma locomotiva-brinquedo, oferecida aos príncipes da família real que se tornaram pioneiros na introdução daquele novo meio de transporte em Portugal. A primeira viagem, que aconteceria em 1856, entre Lisboa e o Carregado, está retratada numa aguarela de António Joaquim de Santa Bárbara.
Pendurados, ou expostos em vitrinas, há sinetas, relógios, avisos, bilhetes, horários e mobiliário de antigas estações. Atravessando (literalmente) a linha, chega-se à Rotunda das Locomotivas, onde estão vários exemplares a vapor, que “retratam o material circulante desde 1857 até 1948”, sublinha Dina Póvoa, responsável pelo atendimento do museu. Lá está a “Andorinha”, a mais antiga, que chegou a ser usada no transporte de uvas e de trabalhadores na Linha do Douro.
No terceiro edifício, outrora usado para a reparação das máquinas, encontram-se agora dezenas de veículos, a diesel, elétricos, as automotoras, além de raridades, como o Comboio Real, “o único completo na Europa”, que abre ao público uma vez por ano e apenas para um grupo restrito; e o Comboio Presidencial, que circulou, entre 1910 e 1970, ao serviço de Chefes de Estado e mantém as portas abertas. Dada a dimensão do museu, torna-se fácil passar ali o dia, sendo possível levar o piquenique e almoçar nas carruagens.
Um roteiro pelo património industrial da Região Centro teria sempre de incluir o processo de transformação da lã, que, durante décadas, marcou o quotidiano de Mira de Aire e Alcanena, em Porto de Mós. A visita tem início numa das quatro unidades de produção da empresa familiar Multilãs (detentora da marca CHIcoração, com três lojas em Lisboa), em que toda a maquinaria se encontra a laborar. Caminhamos por entre fardos com 500 quilos, ou seja a lã de 200 ovelhas, de raça churra, tal como é recolhida nos campos. “Depois tem de ser escolhida, separada a branca da preta, e a fina da grossa”, descreve João Pessegueiro, o proprietário. Ao lado, faz-se a lavagem num antigo lavadouro, dos anos 50, que demorou três a recuperar. “Era para ir para a sucata, foi salvo por nós”, diz Otília Santos, gerente da empresa.
Ao longo dos cinco tanques, vê-se a robusta lã a livrar-se da sujidade, para, no final, já seca, se acomodar em fardos brancos e fofos. Seguirá, depois, para outra unidade, onde será cardada, penteada e novamente cardada e fiada. Outra das fases deste ciclo é a fiação, numa unidade da extinta fábrica de Tapetes Vitória, em Mira de Aire. Duas máquinas, dos anos 60, uma carda e um contínuo asseguram a transformação da rama de lã em fio. Numa área contígua, faz-se a tecelagem, a pintura e a confeção de mantas, casacos, almofadas e bonecos.
Em frente, do outro lado da rua, fica o Museu Industrial e Artesanal do Têxtil (MIAT), aberto, há dois anos, por José Paulo Baptista. O empresário com ligações familiares à antiga fábrica Tapetes D. Fuas, mais tarde Tapetes Vitória, adquiriu um edifício daquela unidade, que recuperou, e instalou aí o MIAT. Do tempo em que a região fervilhava com o negócio dos têxteis pouco resta, mas o museu perpetua esse legado através de fotografias, livros originais, documentos, artefactos, algum mobiliário e maquinaria. Foi um sonho realizado, diz o empresário, para mostrar como se processava a lã, da tosquia à tecelagem, dando origem a mantas, tapetes e malhas.
Desenhar com cor
Em Ílhavo, onde acordamos depois de uma noite bem dormida no hotel Montebelo, deixamos para trás a belíssima panorâmica sobre o rio Boco para uma visita ao Museu Vista Alegre. Aberto ao público em 1964, o edifício guarda um espólio com mais de 30 mil peças, no qual se conta a evolução do fabrico e das coleções ao longo de quase 200 anos. Um trabalho minucioso dos artistas que se pode observar na oficina de pintura manual. “Cada peça tem uma técnica, e, três anos depois, continuo a aprender, todos os dias”, diz-nos Liliana Morais, 33 anos, licenciada em Design, pela Universidade de Aveiro.
Ainda que distantes da fundação da fábrica de vidro e porcelanas, em 1824, e apesar da reconversão de alguns edifícios, ao se atravessar o terreiro central, construído à volta da Capela Nossa Senhora da Penha de França, consegue-se sentir a vivência do bairro operário. E valerá a pena ouvir as histórias de quem ali vive, como, por exemplo, as de Céu Rocha, “nascida e criada” na Vista Alegre. “Nunca saíamos de cá, nem para arranjar marido”, confessa, entre risos, já no interior do teatro, que continua ativo e aberto ao público em geral. Era ali que se divertiam, nas muitas festas, concertos e sessões de cinema.
Além do teatro, havia uma quinta, onde compravam os legumes e o leite (que deu lugar a um parque), supermercado, barbearia, escola e uma creche, onde agora funciona o serviço educativo. Nas oficinas de olaria e pintura, com tintas e pincéis, solta-se a criatividade e aprende-se mais um bocadinho sobre esta indústria que continua a ter muito de artesanal.
Bago a bago
Um museu para se contar a história do arroz
Uma antiga instalação industrial de descasque de arroz, em Estarreja, encerrada há mais de três décadas, irá dar lugar à Fábrica da História, um museu sobre o cultivo do cereal neste concelho. Ainda em obras, e com abertura prevista para o final do ano, o edifício terá um circuito museológico sustentado em novas tecnologias e um restaurante dedicado ao arroz. Enquanto isso não acontece, aproveite-se, junto à fábrica, para ver duas obras assinadas por Vhils e por Camilla Watson, incluídas no circuito de arte urbana e inspiradas na ligação do município ao arroz, que ainda é cultivado nas freguesias de Salreu e Canelas.
Guia de passeio
Do Entroncamento a Ílhavo, sete paragens para visitar
Museu do Cimento da Fábrica Maceira-Liz > Maceira, Leiria > T. 244 779 900 > visitas por marcação, primeira terça de cada mês (10h-17h) e primeiro fim de semana de cada mês, sáb-dom 14h-18h > grátis
Museu Industrial e Artesanal do Têxtil > R. das Grutas, 593, Mira de Aire, Porto de Mós > T. 244 449 269 > ter-dom 10h-13h, 14h-18h > €6
Museu Nacional Ferroviário > R. Eng. Ferreira de Mesquita, 1, Entroncamento > T. 249 130 382 > ter-dom 10h-18h > €6, visita guiada (por marcação) €8
Multilãs > R. das Grutas, 156, Mira de Aire, Porto de Mós > T. 244 026 858, 96 330 7096 > visitas por marcação > grátis
Museu do Vidro > Pç. Guilherme Stephens, Marinha Grande > T. 244 573 377 > ter-dom 10h-13h, 14h-18h > €1,50
Vidrexport > R. da Alemanha, Zona Industrial do Casal da Lebre, Marinha Grande > visitas por marcação para o email geral@vidrexport.com > grátis
Museu Vista Alegre > Vista Alegre, Ílhavo > T. 234 320 628 > seg-dom 10h-19h30 > €6