Reparamos nos patos mudos que se nos atravessam no caminho, especialmente nos dois pequeninos que seguem a mãe em passadas ainda descoordenadas. Reparamos neles porque são muitos (reproduzem-se que nem coelhos, explicam-nos), mas também gostamos de ver as famílias de gansos e os pavões, claro, que dão sempre espetáculo quando decidem exibir-se. Entretanto, olhamos para o céu na esperança de avistar algum exemplar de garça-real, guarda-rios, estorninho ou gralha, espécies que, garantem-nos, esvoaçam por aqui. Mas desistimos, porque percebemos que o ruído das máquinas, que dão os retoques de última hora no Jardim Botânico Tropical, na véspera da sua reabertura ao público, há de mandá-los para outras paragens. E terá sido assim durante o último ano. Agora, que estas intervenções acabaram, já devem estar a aproveitar-se das sombras das árvores e dos seus galhos para fazerem ninhos – afinal, há por aqui cerca de 600 espécies tropicais e subtropicais, de mais de uma centena de famílias de todo o mundo, em sete hectares de terreno. Note-se que 16 dessas espécies estão em risco (sete “ameaçadas” e nove “vulneráveis”).
Financiadas na totalidade pela Universidade de Lisboa, as obras custaram um milhão e meio de euros. Quem agora vier para aqui passear vai sentir bem a diferença, desde logo no pavimento por onde se caminha mas também na água que voltou a correr por entre a vegetação. Aliás, as palavras deste texto deveriam fluir como um rio, atravessadas por cascatas, jatos, fontes e lagos, mas, a poucas horas da inauguração, lamentavelmente, não podemos ver o novo sistema a funcionar. A lista de retoques estende-se pela limpeza de matagais, restauração de vegetação, higienização de estátuas, abertura de dois recantos escondidos e uma sinalética mais apetecível. E até se promete uma aplicação para guiar-nos numa visita técnica.
Porém, as obras não se ficam por estas intervenções cirúrgicas, que refrescaram a cara do jardim e a experiência de quem por aqui passa. Por outros tantos milhões de euros e mais uns pozinhos, até ao final de 2021, serão restaurados edifícios, como a Casa de Chá, o Palácio dos Condes da Calheta, a Casa dos Jardineiros e a estufa principal. E ainda se construirá uma reserva visitável da coleção preservada em meio líquido.
Cinco árvores para descobrir
É vasto o mundo tropical que se estende por este terreno em Belém. Siga as nossas dicas e encontre exemplares com história(s)

Árvore do Imperador
Chrysophyllum imperiale
Está em extinção na Mata Atlântica, no Brasil, mas aqui ninguém a corta por não gostar do Imperador, como se fazia do lado de lá do oceano
Teixo
Taxus baccata
Nem tudo é tropical, e os teixos são um bom exemplo disso. É desta árvore europeia que se extrai o taxol, utilizado na quimioterapia
Pinheiro de São Tomé
Afrocarpus mannii
Este tipo de pinheiro só cresce entre os 700 e os 2 000 metros de altitude, no Pico de São Tomé, mas aqui dá-se lindamente
Dragoeiro
Dracaena draco
Existem aqui três espécimes, mas um deles é maior e mais antigo do que o decreto que criou o jardim
Sicómoro
Ficus sycomorus
Os seus figos crescem nos troncos e nos ramos, mas a fama deste espécime de figueira criou-se pelas vezes que é referido na Bíblia
As palmeiras que se salvam
Monumento Nacional desde 2010, o Jardim Botânico Tropical foi criado há 114 anos, por decreto régio. Mas o imponente dragoeiro que avistamos a um canto da rua das Plantas Primitivas já cá estava antes da lei, ou seja, soma para cima de uma centena de anos. Chamaram-lhe, então, Jardim Colonial e colaram-lhe uma forte vertente didática, especialmente para os estudantes de Agronomia. A ideia do rei era a de fundar uma enorme quinta em Belém, com a junção do Palácio dos Condes da Calheta com o palácio que hoje serve de residência presidencial. Em 1944, já as coisas estavam separadas: o jardim fundiu-se com o Museu Agrícola Colonial e deixou de estar sob a dependência do Instituto Superior de Agronomia. Em 1974, integrou a Junta de Investigações do Ultramar, posteriormente Instituto de Investigação Científica Tropical. Nove anos mais tarde, mudou de nome para Jardim-Museu Agrícola Tropical. Só em 2015 passaria a pertencer à Universidade de Lisboa, com a designação que hoje mantém. “Com esta recuperação, pretendemos respeitar o valor histórico do espaço verde, que honra a presença e a importância dos portugueses no mundo”, justifica Luís Paulo Ribeiro, arquiteto paisagista, responsável pela equipa que se ocupou do projeto. Além disso, há a relevância da coleção científica ao ar livre, que em muito contribui para a preservação de espécies. “É ótimo para o lazer e atrai muitos investigadores”, garante César Garcia, botânico responsável pela gestão do jardim.
Entretanto, vamos espreitar o lago principal, mandado construir em 1903 e, agora, reparado das fissuras e tornado mais resistente a quedas, e apreciamos a vegetação luxuriante, composta por cicadáceas e zamiáceas. Contam-nos que a Ilha das Fruteiras, mesmo no meio da água, também foi reabilitada – esteve fechada por questões de segurança –, e os bancos contemplativos a cheirar a novo são a prova disso. É curioso ver como frutos tropicais, como bananeiras, abacateiros ou pitangueiras, crescem tão bem no meio de Lisboa. Nos seis meses em que durou a Exposição do Mundo Português, em 1940, que era uma ode ao Estado Novo e às então colónias portuguesas, usou-se esta ilha para representar a Guiné. Existem muitos mais vestígios da secção colonial dessa mostra nacionalista – a Casa de Chá, de estilo modernista, a Casa da Direção (onde hoje funcionam a loja e a cafetaria), o jardim chinês (agora todo recuperado, com pagodes, pontes e cascatas horizontais) e 14 bustos que faziam parte da Galeria dos Povos do Império que, como explica Ana Godinho, historiadora do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, “representavam a diversidade de etnias presentes na exposição”.
Passamos para a avenida-ícone, rodeada por enormes palmeiras, bem ao estilo tropical. Chama-se alameda das Washingtonias ou de D. João V, porque foi ele quem as mandou plantar assim, neste alinhamento barroco. Por sorte, estas sobreviveram ao inseto vietnamita que anda a destruir este tipo de árvores. A mesma sorte não tiveram as que estão alinhadas noutra alameda mais acima – essas foram todas cortadas, porque morreram de pé. O mesmo aconteceu com a Brahea edulis (plantada pelo Presidente Manuel de Arriaga, em 1913, num ato simbólico), que já esteve quase a dar as últimas e ainda está ligada a um tubinho que mata as larvas do bicho que causam a epidemia. Cem anos e 19 presidentes depois, Cavaco Silva também quis deixar a sua marca neste relvado, mas a saponária que plantou não tem nem uma folha para a amostra.
A Rua do Palácio, como o nome indica, termina lá no alto, com o Palácio dos Condes da Calheta, de meados do século XVII e decorado com painéis de azulejos que ficam na memória. Em 1758, foi sala de interrogatório, no Processo dos Távoras, condenados à morte pelo atentado contra o rei D. José I. Depois, havia de transformar-se em Real Arquivo Militar e acomodação de visitas reais, no século XIX. Também foi Museu Agrícola Colonial, na década de 1930, e, dez anos mais tarde, durante a dita exposição, foi Pavilhão da Caça e do Turismo – e por causa disso até houve crocodilos vivos nos tanques das redondezas.
A cauda do pavão ou a exuberância do mundo português
Pelo caminho, vamos conhecer o Jardim dos Catos, que começou a nascer em 1940, e damos com um ambiente quase mágico. Por norma, estas plantas gostam de sol, mas como foram abandonadas à sua sorte, cresceram, e bem, apesar da sombra. “Não quisemos apagar este cenário invulgar, de caráter cénico. Até deixámos ficar a ruína do que, em tempos, foi uma estufa para estas suculentas”, nota o arquiteto paisagista. Quase sem darmos por ela, passamos para o Jardim da Ninfa, assim apelidado por causa de uma estátua clássica abrigada mesmo por baixo do tanque de rega para as hortas reais, agora recuperado. Este recanto, onde ainda se encontram as muito antigas casas do Veado e a de São João, fechadas para requalificação, esteve sempre longe dos olhares dos visitantes. O tanque de rega fica no Pátio dos Ourives, área marcada por uma enorme Agathis robusta que resiste à entrada das casas de portas fechadas ao público até ficarem prontas para serem mostradas.
Existem tantos pormenores neste jardim que, mesmo passando aqui o dia, não conseguiríamos contar todas as suas histórias. No entanto, há sítios a que não se pode fugir, como a gruta na Alameda da Água, que chama por nós para que nos deixemos isolar por uns momentos dentro desta real construção, ou a estufa de café que, por estes dias, infelizmente, não pode mostrar nenhuma flor. Mas basta uma rápida passagem por esta construção para se sair inebriado com o aroma tropical e nos imaginarmos numa roça em São Tomé.
Também devemos olhar para a estufa principal, construída em 1914, especialmente para o seu magnífico portão em ferro. Por enquanto, só a podemos ver de fora, pois está muito danificada, pelo que as suas portas só se abrirão depois de obras que prometem manter a sua estrutura de origem. Muito perto, colados à atual casa da direção (também construída, ao estilo colonial, para a exposição), estão o Lago das Serpentes e um alpendre com um painel de azulejos, assinado por Mário Reis, com animais exóticos, de grandes proporções, como um leão ou um leopardo. Dentro da casa até custa pisar os desenhos quase infantis que também nos remetem para paragens tropicais. Já para não falar das enormes imagens de povos indígenas que marcam a subida das escadas que levam aos escritórios. Para quem não gosta de se lembrar que Portugal foi colonizador, este não será o cenário ideal para um passeio tranquilo, longe do frenesim da cidade. A não ser que a exuberância colorida da cauda de um pavão ou os passinhos trôpegos dos patos recém-nascidos de que falámos nas primeiras linhas deste texto atenuem as marcas desse passado que está aqui, indiscutivelmente, demasiado presente.
Cuidai de nós, perenes flores
Manter sete hectares bem tratados dá muito trabalho. Por isso, toda a ajuda é pouca
Podemos ser todos amigos
Se ainda restasse alguma dúvida acerca da importância da Liga de Amigos do Jardim Botânico Tropical, criada em 2005, João Alves, o seu presidente, acaba com ela assim que conta uma história que remonta aos tempos da Troika. Quando a torneira se fechou, em 2013, e ninguém podia ser contratado para a Função Pública, o Instituto de Investigação Científica e Tropical, que na altura tutelava este jardim, pediu ajuda à liga para manter as plantas vivas e em bom estado, porque tal não era possível apenas com os funcionários da altura. “Durante sete meses, contratámos uma IPSS de Setúbal, que cedeu nove pessoas para fazer a manutenção do jardim, a um preço bastante simpático”, conta o botânico, sempre preocupado em angariar fundos para a liga a que preside, através de quotas e donativos de particulares. Agora, está esperançado de que, com o estatuto de utilidade pública, atribuído recentemente, as pessoas se sensibilizem mais para esta causa.

O jardineiro mais antigo
José Flores tem 61 anos e o apelido adequado à profissão, herdada do pai e do avô. Hoje, é ele que há mais tempo cuida do Jardim Botânico Tropical, local de trabalho que também partilhou com a sua ascendência. Tornou-se efetivo ainda nem estávamos em democracia e, recorda, datam dessa altura as últimas grandes obras que o jardim sofreu. José, que “faz de tudo um pouco”, transformou-se na memória viva deste lugar – quando há uma dúvida, é a Flores que se recorre. Perguntamos-lhe quando foram para aqui trazidos os enormes sobreiros, que se mantêm com a cortiça intacta: “Em 1972, pelo senhor Custódio Plácido, jardineiro e caçador. Eram três, mas só vingaram dois”, lembra, sem qualquer esforço.
Jardim Botânico Tropical > Lg. dos Jerónimos, Lisboa > T. 21 360 9660 > seg-dom 9h-17h (out-mar), 9h-20h (abr-nov) > €4, menores de 10 anos grátis, 10-18 anos e maiores de 65 anos €2, família (2 adultos + 2 crianças) €10