Há muitos escritores nos romances do catalão Enrique Vila-Matas (n. 1948), um dos mais destacados nomes da literatura espanhola das últimas décadas. Mas não há dois iguais. O de Montevideu, o seu novo romance (D. Quixote, 232 págs., €16,60), vive inquieto com as portas do quarto ao lado nos hotéis onde se instala. Como no conto de Cortázar, A Porta Condenada, há qualquer coisa de íntimo que se esconde e se revela na sensação sinistra que persegue o protagonista. E num rodopio de cidades – Paris, Cascais, Montevideu, Reiquiavique, Bogotá –, o mesmo tremor e a mesma curiosidade. Como em romances anteriores, já distinguidos com diversos prémios no seu país e não só, Vila-Matas explora as coincidências para ver a vida através da arte. E para questionar os limites da arte através da vida.
Segundo Juan Eduardo Cirlot, um dos muitos autores que cita em Montevideu, “a porta é um convite a penetrar no mistério”. Escrever um romance também o é, no sentido de se revelar sempre uma busca, uma investigação, uma aventura?
E porque não? Foi precisamente por me ter aventurado que me permiti introduzir em Montevideu a máxima liberdade possível na escrita, fiel ao lema principal de tudo o que escrevo: “Pela liberdade, Sancho, assim como pela honra, se deve arriscar a vida.”
Mas que mistério determinou especificamente a escrita deste Montevideu?
A vontade de abrir a porta a algo de novo que, a ser possível, tivesse um elemento terrorífico. Mas o que de início começou a impulsionar a escrita foi o horror dos “quartos contíguos”.
Em que sentido?
São os enigmas que alguns escritores sentiram ou pressentiram. As gargalhadas ouvidas por Jean-Pierre Léaud num hotel de Cascais, por exemplo. Ou essa porta entreaberta de um hotel de Montevideu que dá acesso a um “mais além” obscuro, que pode ser a morte, mas também o abismo interior, ou o desconhecido, o subconsciente.
No coração do romance também parece estar o tema do estilo do escritor. Não há escritor sem estilo próprio, único e irrepetível?
O estilo não é mais do que a ordem e o movimento que cada um dá aos seus pensamentos. E, na verdade, o narrador de Montevideu diz, nas páginas iniciais, que continua estacionado debaixo de uma marquise de um teatro de Paris. É aí que sugere pela primeira vez que está a tentar escrever “a biografia do seu estilo”. Mas muito pouco tempo depois, o raio que cai perto dessa marquise também parece cair dentro do texto, pelo que dessa anunciada demanda pelo estilo ficará a restar muito pouco.
Ainda assim, terminada a leitura do romance, fica-se com a sensação de que o estilo, ou esse quarto próprio de que falava Virginia Woolf, também pode ser uma prisão. O que faz então um bom estilo?
O bom estilo surge de uma especial sensibilidade para a linguagem. Mas não se adquire, é qualquer coisa que se desenvolve, se expande, se renova.

O que também se destaca neste romance – como em muitos outros – é a quantidade de coincidências que o narrador (seguramente também o escritor) é capaz de encontrar e explorar. As coincidências estão em todo o lado ou é o olhar de um criador que as encontra?
Talvez não sejam necessariamente coincidências, mas acima de tudo associações de ideias. É preciso não esquecer que, nos nossos dias, o mais sedutor no exercício da literatura é esse facto maravilhoso de a linguagem não ser algo que reproduz a realidade, antes qualquer coisa que a constrói e desconstrói, que a faz e a desfaz com uma inevitável subjetividade. E isto situa-nos diante de um mundo de fortíssimas e infinitas possibilidades. O que mais me seduz neste exercício é justamente estar na vida e na arte em simultâneo.
Quais são as coincidências ou associações de ideias que mais lhe interessam?
Sou obcecado por uma que se destaca e inquieta em Montevideu: o episódio que se passou com o escritor W. G. Sebald, que um dia foi a um museu londrino ver uma pintura. Quando a contemplava, estava, nas suas costas e também a ver o quadro, um casal que conversava numa língua centro-europeia (húngaro ou polaco, não conseguiu perceber qual). Era um casal de aspeto estranho, que não parecia daquele tempo, e a roupa que vestia não era suficiente para justificar essa sensação. Cinco horas depois, o escritor teve de ir até uma estação de metro na periferia de Londres que, como se sabe, é uma cidade de dez milhões de habitantes.
E, no entanto…
Exato. A estação estava vazia, não havia ninguém, a não ser aquele casal do museu. Sebald concluiu que as coincidências não eram casualidades. Pelo contrário, nelas havia, em alguma parte, uma revelação que, de vez em quando, brilhava através de um tecido desfeito. Escusado será dizer que esse tecido, que parece estar nas portas entreabertas, é a obsessão central em Montevideu.
Paris, Cascais, Montevideu, Reiquiavique, Bogotá: a geografia desta novela é muito vasta…
É um dos motores da minha escrita e, em Montevideu, permite ao narrador mover-se com total liberdade numa estrutura pensada para contínuos saltos de cenários e pensamentos. Nesses saltos está o conto A Porta Condenada, de Cortázar, inspiração central neste romance.
Já afirmou que escrevia através de um “eu ensaísta”, afastando-se dessa forma do campo da autoficção. Como o define?
Escrevo ficção a partir de um campo que costuma ser ocupado pelos ensaístas e os poetas: um “eu literário visível”. Lemos Fernando Pessoa e sabemos que, apesar de todos os seus heterónimos, quem fala é o poeta Fernando Pessoa. O mesmo acontece com os ensaios de Walter Benjamin e todas as suas análises críticas e questionamentos sobre o capitalismo. Eu sigo esse “eu literário visível” e dou-me a liberdade de dizer que, nos meus livros, o que está em cena não é exatamente uma trama ou uma série de ideias, mas eu próprio em drama, a pensar ou a escrever debaixo de um avatar chamado narrador que muda de romance para romance.
Durante a escrita deste romance passou por um período de doença (sobreposta à pandemia). Montevideu marca um renascimento?
Já me disseram que, em Montevideu, a minha escrita respira como um ser vivo. É um elogio que tem sentido, ou pelo menos a isso almejo. Lembro-me de que, depois da saída do Hospital Clínic de Barcelona, comecei a rever, cada dia mais entusiasmado, o rascunho inicial que tinha abandonado em casa. Deixei-o no computador, em dezembro de 2021, antes de entrar no hospital para receber um transplante de rim, doado mais do que generosamente pela Paula [Massot, sua mulher], pela minha queridíssima Paula de Parma [assim designada nas dedicatórias dos seus livros].
Que entusiasmo era esse posto na revisão?
Não sei. O entusiasmo crescente que sentia ao corrigir e reescrever era completamente desconcertante, porque nunca o experimentara antes. É possível que a quase impercetível melhora diária de saúde tenha influenciado a crescente atração que sentia pelo manuscrito que estava a modificar e que, como o meu corpo, parecia às vezes avançar e melhorar sozinho. Na altura das páginas finais, depois de escapar do inferno de Bogotá, escrevia emocionado. Daí que tenha entrado, lateralmente, no tema da “elevação”: “Converteste-te nos últimos tempos num escritor ao qual as coisas acontecem de verdade. Oxalá compreendas que o teu destino é o de um homem que deveria estar já a desejar elevar-se, renascer, voltar a ser. Repito-te: elevar-se. Nas tuas mãos está o teu destino, a chave da porta nova.”
Escritores de livros que matam, de literatura portátil, que deixam de escrever, que fogem do jogo mediático, que buscam o estilo próprio. Que facetas ainda lhe faltam explorar nesta galeria de escritores inquietos?
Gostava de explorar – e, na verdade, já estou a fazê-lo – a possibilidade de entrever a outra obscuridade que se camufla na penumbra da obra.