1. Liwoningo, Selma Uamusse

Foi há cerca de dois anos que Selma Uamusse decidiu seguir o seu próprio caminho, com a edição do álbum de estreia Mati, um trabalho inspirado pelas sonoridades de Moçambique, país onde nasceu em 1981 e do qual saiu ainda criança. Essa redescoberta das origens permitiu-lhe encontrar “uma forma de comunicar” própria, agora ampliada no novo Liwoningo (significa luz em chope, uma das línguas de Moçambique), um disco, segundo a própria, “mais coeso e coerente”, no qual alarga o seu universo musical a outros territórios, sem nunca perder o pé à sua África natal. O objetivo, revela, era “juntar todas essas camadas” que a definem como artista. Para isso, contou com a contribuição do brasileiro Guilherme Kastrup, produtor premiado com um Grammy pelos álbuns A Mulher do Fim do Mundo e Deus é Mulher, da cantora brasileira Elza Soares. Liwoningo, previsto para o início do ano e adiado para setembro devido à pandemia, foi entretanto antecipado para o final de julho, por decisão da própria cantora. “O período de confinamento fez-me perceber que temos de fazer música pela mensagem e pelas pessoas, não apenas por critérios meramente comerciais”. Ou seja, pelas razões certas. M.J.
2. Beyond the Pale, de JARV IS…

Não é erro. JARV IS… é a nova banda de Jarvis Cocker, o eterno vocalista dos Pulp, uma das grandes bandas do movimento britpop dos anos 90. Depois do fim do grupo Jarvis foi viver para Paris, serviu de editor de uma coleção de livros, foi DJ de rádio e lançou discos, tanto a solo como em colaborações com outros artistas.
Este ano, surge Beyond the Pale que, para todos os efeitos práticos, é mais um disco a solo de Cocker, mantendo o bom nível dos registos anteriores. A necessidade de uma banda, desta vez, resultou da própria forma como o álbum foi gravado, parte em estúdio e parte ao vivo, em contextos tão diferentes como uma atuação no festival Primavera Sound de Barcelona ou numa gruta no Derbyshire, que deixou Cocker tão fascinado que decidiu ocupá-la para fazer música. A marca de Cocker está toda lá, as letras inteligentes que misturam o profundo e o prosaico, e o sentido melódico sempre em busca da canção perfeita. O resultado é um disco de pop inteligente que, debaixo das luzes brilhantes de um bar, insiste em procurar o sentido maior das coisas. T.F.
3. Pick Me Up Off the Floor, de Norah Jones

No que isso tem de bom e de mau, Pick Me Up Off the Floor soa exatamente ao que é: mais um disco de Norah Jones. Podia dar origem à entrevista mais breve da história do jornalismo musical: “Pode falar-nos do seu disco novo?”, “Ah, é só mais um disco…” E seria bastante elucidativa.
Os cada vez mais raros artistas que conseguem fazer carreiras longas à base de edição de álbuns parecem sentir a necessidade de apresentar uma novidade, ou viragem, a cada novo capítulo. Norah (que já o fez, especialmente em Little Broken Hearts, de 2012, com produção de Danger Mouse) prescinde agora disso. A produção é irrepreensível, os músicos exímios, as letras boas, as melodias idem e a voz quente de Norah Jones continua sedutora como sempre. Ouvimos as novas 11 canções como quem volta a um velho hotel ou restaurante de que gostamos e que nos fazem sentir bem, sem riscos nem surpresas. P.D.A.
4. Sideways to New Italy, de Rolling Blackout Coastal Fever

A Austrália tem uma longa tradição de boas bandas do universo pop e rock. De Nick Cave aos AC/DC, passando pelos Go Betweens ou pelos Tame Impala, o mundo vem sendo presenteado regularmente com projetos interessantes e com personalidade bem marcada. Os Rolling Blackout Coastal Fever (RBCF) são os últimos representantes desta linhagem, depois de terem conquistado os melómanos mais roqueiros com o disco de estreia, Hope Downs, de há dois anos.
Ao sucesso sucedeu um ano e meio de digressões intermináveis pelo mundo fora, com os efeitos que isso tem em cinco rapazes a viverem o sonho. No regresso a casa, o novo trabalho começou por ser construído de forma mais caótica e complexa, uma forma de processar a realidade fragmentada de demasiado tempo na estrada. No final, felizmente, a estrutura regressou e a matriz das canções indie pop voltou a vencer. Ao segundo volume, este Sideways to New Italy, chega a confirmação: estes rapazes australianos vieram para ficar e não estão cansados.
A matriz continua a ser o pop rock, com ênfase no rock de guitarras. É este o instrumento que tudo domina, e não é por acaso. Os RBCF têm três guitarristas, que vão dividindo riffs e melodias pelas músicas fora, criando um tapete intrincado que enche os nossos ouvidos de pormenores deliciosos. Neste segundo disco, a febre acelerada da estreia dá espaço, aqui e ali, a um ritmo mais moderado, que por vezes nos lembra algumas das assinaturas de marca de Johnny Marr, o eterno compositor dos Smiths. Dos dez temas, destacamos bombas enérgicas como Cars in Space, com o seu baixo irrequieto, ou o ritmo maníaco de The Second of the First, que abre o álbum; o balanço funk rock de Cameo, o primeiro single; ou a beleza acústica de Sunglasses at the Wedding. T.F.
5. Transgressio Global, Pop Dell’Arte

“Walk alone in an empty streets, walk alone in a silent city”, ouve-se de forma quase profética em Panoptical Architecture for Empty Streets in a Silent City, uma das canções mais à Pop Dell’Arte de Transgressio Global, o primeiro álbum, em dez anos, do grupo composto por João Peste, Paulo Monteiro, Zé Pedro Moura e pelo novo baterista Ricardo Martins, cuja edição estava prevista para março, mas foi adiada devido à pandemia.
Um longo processo que resultou não só num disco muito variado, em termos musicais e temáticos, mas também naquele que é o mais extenso trabalho da longa carreira de 35 anos dos Pop Dell’Arte. Ao todo, são mais de 80 minutos, divididos por 22 faixas, que incluem a primeira versão do trabalho de outro artista alguma vez gravada pelos Pop Dell’ Arte – do clássico El Derecho de Vivir en Paz, do chileno Victor Jara. Também pela primeira vez, existem temas construídos a partir de poemas de outros autores, neste caso de Luís Vaz de Camões, do poeta romano Gaio Valério Catulo e de um autor anacreôntico, desconhecido, que João Peste canta no grego antigo original. A unir tudo isto há “um amplo conceito de transgressão”, inspirado pelas teorias do pensador francês Michel Foucault, sempre muito próximas do percurso e temáticas dos Pop Dell’Arte.
Pelo meio, há momentos de rock and roll puro e duro, como Freaky Dance; temas assumidamente políticos, como Sem Nome ou Anominous; de clara contestação à atual sociedade, em especial ao trabalho e às relações profissionais com “a nova classe social do precariado”, nas palavras de João Peste; e há, até, uma canção dedicada a Apolo, o que não deixa de ser curioso numa banda aparentemente tão dionisíaca como os Pop Dell’Arte – ou então não, porque, afinal, sem ordem nunca poderia haveria transgressão. M.J.