De paredes caiadas de branco e janelas com portadas verde-água, a casa preserva a singeleza de outros tempos. Ali nasceu Adolfo Correia da Rocha, em 1907, no seio de uma família de lavradores, que em 1934, após tirar o curso de Medicina, adotou o pseudónimo literário Miguel Torga. O nome identificava a sua ligação ao iberismo e a duas figuras incontornáveis das letras do país vizinho, Miguel Cervantes e Miguel de Unamuno, assim como o apego às raízes, simbolizado pela urze que cresce nos lugares mais inóspitos do território transmontano. O autor nunca se desligou de São Martinho de Anta, aldeia pertencente ao concelho de Sabrosa, às portas do Douro vinhateiro, “um marco de orientação e segurança que vejo em todas as horas de perplexidade e angústia e de todos os quadrantes do mundo”.
Na Casa Miguel Torga, aberta ao público desde 17 de janeiro, quando se assinalaram os 27 anos da morte do escritor, faz-se a aproximação à vida e obra deste nome maior da literatura portuguesa. “Tudo o que sou claramente não é daqui. Mas tudo o que sou obscuramente pertence a este chão. A minha vida é uma corda de viola esticada entre dois mundos. No outro, oiço-lhe a música; neste, sinto-lhe as vibrações”, lê-se, num dos painéis informativos espalhados pelas divisões.
“A família quis que se mantivesse a sua autenticidade, por isso a recuperação esteve condicionada pela preservação do espírito da casa”, explica João Luís Sequeira, diretor do Espaço Miguel Torga, gerido pelo município de Sabrosa, que agora também articulará as marcações das visitas ou atividades da programação deste novo polo turístico-cultural.
Na entrada e na sala da Casa Miguel Torga, veem-se objetos e mobiliário original, que preservam a intimidade do local, desde a coleção de armas antigas à loiça de Bisalhães. Noutras divisões, suportes contemporâneos apresentam citações e dados sobre o autor, nomeadamente sobre o reconhecimento internacional alcançado, com traduções em mais de 20 línguas. Espreitam-se gavetas e ouvem-se as gravações retiradas do arquivo sonoro de S. Martinho de Anta e de outros lugares percorridos por Torga, um dos projetos artísticos conduzidos neste território. Sendo esta a casa de férias da família, uma das divisões é dedicada à mulher e à filha do autor, Andrée Crabbé Rocha e Clara Rocha, ambas com um percurso académico notável.
A completar a informação, está o Espaço Miguel Torga, construído na mesma rua da aldeia e inaugurado em 2015. O edifício de aspeto austero, camuflado pelo revestimento a xisto da região, foi projetado por Eduardo Souto Moura e constitui um motivo de interesse também pela sua arquitetura. “Para quem o vê de fora, é uma surpresa, não tem a perceção da dimensão”, sublinha João Luís Sequeira. Além de centro interpretativo da vida e obra de Torga, tem sala de exposições temporárias – atualmente, acolhe trabalhos do pintor Francisco Laranjo –, de artistas ligados à região ou de obras que incidam sobre este universo e é um polo de dinamização cultural, com programação regular, desde ciclos poéticos a festivais de música. A partir daqui, também se definiram roteiros torguianos mais alargados, de promoção do território, com pontos de interesse a cerca de 30 minutos de distância, que abrangem cultura, Natureza, enoturismo e gastronomia.
“Um excesso de Natureza”
Na coletânea de contos Portugal, escrita em 1950, Torga anunciava Trás-os-Montes como um “reino maravilhoso”, “dos mais belos que se possam imaginar”. Entre os locais que se podem relacionar com a sua obra, está o miradouro da Senhora da Azinheira, um panorama granítico de montanha pontuado pela capela do séc. XVII, a poucos quilómetros da aldeia. Ali se percebem as palavras do escritor, que se via como “a encarnação humana destas serras inamovíveis, secas e desesperadas, que esperam pelas mesmas tempestades de inverno e pelo sol da primavera com o mesmo inquebrantável estoicismo”.
Galeria de fotos
Inevitável nos roteiros será o foco nos modos de vida e produção do Alto Douro Vinhateiro, que tanto enriqueceram a prosa de Torga. Na estrada que faz a descida de Sabrosa para o Pinhão, aprecia-se a prodigiosa paisagem de vinhedos, “um excesso de Natureza”, como descreveu o autor, e a meio caminho encontra-se Provesende, referenciada no romance Vindima, onde solares brasonados, testemunhas da prosperidade da nobreza proprietária no séc. XVIII, intercalam com casas de xisto.
A paragem para o almoço é feita na aldeia, no restaurante Papas Zaide, fronteiro ao pelourinho, famoso pelo pernil de porco com vinho do Porto, acompanhado por outras iguarias locais, como enchidos, compotas, queijos e vinhos. “Funcionamos só por encomenda, mas desde que abrimos, há 13 anos, tem funcionado o ‘passa-a-palavra’”, conta Graça Monteiro, a proprietária.
Para compor o programa, há que rumar a um destino enoturístico e a Quinta Nova da Nossa Senhora do Carmo, na freguesia de Covas do Douro, uma das mais antigas e extensas da região duriense, é uma boa opção. Ali se pode contemplar este “poema geológico” traçado pelos socalcos vinícolas, conhecer o museu Fernanda Ramos Amorim – onde está representado o tradicional ciclo produtivo do vinho do Porto, durante os séc. XIX e XX, sobre o qual Torga também escreveu –, visitar a adega (de 1764, quase tão antiga quanto a quinta) e a sala de barricas, fazer uma prova de vinhos, experimentar o Restaurante Terraçu’s ou ficar alojado na casa senhorial. Um complemento luxuoso à oferta torguiana que os turistas não desdenham.
GUIA DE VIAGEM
Casa Miguel Torga > R. Miguel Torga, S. Martinho de Anta > visitas por marcação no Espaço Miguel Torga
Espaço Miguel Torga > R. Miguel Torga, S. Martinho de Anta > T. 259 938 017 > ter-sex 9h-12h30, 14h-17h30, sáb-dom 10h-12h30, 14h-18h30 > grátis
Papas Zaide > Restaurante de comida tradicional, funciona apenas por marcação. Lg. da Praça, 1, Provesende, Sabrosa > T. 96 284 5395
Quinta Nova da Nossa Senhora do Carmo > Além da adega aberta a visitas e provas de vinhos, tem um restaurante e 11 quartos na casa senhorial. Covas do Douro, Sabrosa > T. 96 986 0056