É bem provável que nunca tenha ouvido falar em porta-da-loja, pipo-de-basto, três-ao-prato, verdeal, perna-de-pisco, corticeira, camoesa-de-coura ou riscadinha-da-feira. Estas são algumas das variedades autóctones de macieiras do Minho que têm dado origem, nos últimos anos, ao fabrico de sidras feitas de forma artesanal, recuperando uma tradição minhota que dava a provar a bebida acabada de fazer na romaria das Feiras Novas, em setembro, em Ponte de Lima.
“A sidra era conhecida como o vinho dos caseiros porque era feita com maçãs ácidas, que existiam na bordadura dos campos, onde nem se conseguia meter o dente”, lembra Raul Rodrigues, 61 anos. O investigador e docente na Escola Superior Agrária de Ponte de Lima do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, além de já ter identificado uma centena de variedades regionais – e de andar a plantá-las desde 2008, no pomar daquela instituição de ensino –, tem inspirado o ressurgimento da produção desta bebida de fermentação natural com baixo teor alcoólico.

É o caso da Sidra Nua, do agrónomo e enólogo Miguel Viseu (ex-aluno de Raul Rodrigues) e da mulher, Emanuelle Dalla Costa, a quem se juntaram os amigos Tiago Sampaio e João Gomes. Da produção experimental de 200 litros feita na garagem do casal, em Ponte de Lima, em 2018, para reaproveitar as maçãs porta-da-loja e pipo-de-basto de um pomar quase ao abandono, a Nua cresceu para os cinco mil litros anuais e já exporta para os Estados Unidos da América, Japão, Suécia, França ou Noruega. Atualmente, são dez as variedades minhotas usadas nas três sidras da marca – feitas de modo natural e sem aditivos a partir da maceração da fruta –, oriundas de 15 pomares de Vila Nova de Cerveira até Penafiel.
“No início, achávamos que a grande barreira era encontrar produtores, ou que haveria duas ou três árvores no quintal. Mas temos alguns que não conseguem escoar a maçã porque tem um calibre mais pequeno ou algum defeito, e procuram-nos para lhe darmos uma componente económica”, realça Miguel Viseu, para quem a sustentabilidade e o terroir do Minho são os pilares do projeto. “Com a sidra, estamos a salvar as maçãs minhotas. E, tal como no vinho, há uma data de sabores novos por descobrir”, garante o enólogo de vinhos biodinâmicos, que espera vir a fermentar sidra em barricas de Porto.
Ponte de Lima, capital da sidra
A cinco quilómetros de Paredes de Coura, em Venade, Pedro Paiva tem as maçãs colhidas em agosto/setembro a fermentar em cubas de inox e barricas de castanho. O líquido há de dar para encher umas 1 500 a duas mil garrafas. “Quando acabar, acabou. Não quero aumentar a produção”, garante o mentor da marca Faca nos Dentes, lançada em 2017.
Operário agrícola com experiência em vinha, Pedro apaixonou-se pela bebida em França, onde trabalhou durante mais de uma década. “Quando voltei para Portugal, comecei a pesquisar e percebi que antigamente se fazia sidra no Minho. Mas onde estavam as árvores? Há poucas, mas existem. O problema é que as pessoas deixaram de atribuir valor a esta maçã… ficava caída no chão”, conta.
O processo que utiliza é totalmente artesanal, recorrendo a uma prensa manual, que esmaga a fruta e lhe retira o sumo. “Se pudesse, nem eletricidade tinha”, diz-nos, na garagem de casa, transformada em sidraria. Pedro Paiva assume-se como um “purista” no fabrico de sidra: “Quero maçãs que tenham taninos, expressão aromática, acidez e que reflitam o território.” Para isso, há seis anos começou a plantar um pomar em Ponte de Lima com variedades regionais. “Não vale a pena andar a resgatar as macieiras autóctones se não se plantarem árvores”, sublinha.
O investigador Raul Rodrigues vê com bons olhos este crescimento da produção de sidra, especialmente no Minho. “Podemos ser competitivos no mercado se apostarmos em sabores únicos no mundo. Se queremos preservar estas variedades regionais, nada como lhes dar valor acrescentado. E se elas se perdem, jamais as podemos recuperar. Nas bibliotecas, podemos ter o acervo em digital, mas na fruticultura não podemos ter as cópias num disco rígido”, compara.
Pioneiro na organização de festivais de cerveja artesanal, como o Artbeerfest, em Caminha, Octávio Costa começou a perceber a tendência da bebida feita a partir do sumo da maçã fermentado (ao contrário das industrializadas já existentes) à boleia da “procura do consumidor por bebidas mais naturais, com menor teor alcoólico e menor pegada ecológica”. Daí até à realização do primeiro festival de sidra no continente (na Madeira, já existia um) não demorou muito. A escolha de Ponte de Lima foi evidente, pela “tradição histórica no fabrico da bebida”. Em conjunto com a autarquia local, nascia o Sidrama, já com duas edições anuais (2022 e 2023), realizadas em agosto, o que permitiu incluir a vila na plataforma mundial Ciderlands, que integra territórios produtores de sidra. No futuro, prevê-se a criação de um roteiro de visitas a lagares, pomares e sidrarias, promovendo a região como destino turístico da bebida.
Reaproveitar o desperdício
Em 2017, quando Nuno Clímaco, engenheiro do ambiente, e a mulher, a arquiteta Liliana Nóbrega, criaram a Sidrada, na vila do Bombarral, no Oeste, tiveram de desbravar caminho. “Inicialmente, a procura não era tão grande. Entrámos no mercado da cerveja artesanal como uma alternativa sem glúten. Felizmente, agora já temos um festival, e há cada vez mais restaurantes a servir sidra”, diz Liliana.
A marca surge ancorada na empresa familiar Clímaco Pereira (vai na terceira geração), que detém 40 hectares de pomares, sobretudo de maçã royal-gala e de pera-rocha, nos quais 20% da fruta era desperdiçada por defeito ou falta de calibre. A produção deste ano deve começar a fermentar dentro de dias, mas as 400 árvores de fruto e as 25 mil maçãs colhidas têm resultado em sete mil litros de sidra. “Não é um refrigerante, não é um sumo; é vinho de maçã”, sublinha Liliana, para reforçar o seu fabrico natural, cujo teor alcoólico advém dos açúcares. A Sidrada já fez oito variedades de sidra – incluindo uma de pera, a que chamou Perada, e outra biológica –, além de espumantes.

Mais a norte, em Carrazeda de Ansiães, também os empresários Duarte Moura e José Reixelo andam, desde 2019, a reaproveitar as maçãs “mais pequenas” que sobram dos seus 40 hectares de pomares na região transmontana (variedades royal-gala, golden, reineta ou starking), através da Sidra Alfa. Demoraram três anos “a estudar maçãs e fermentações”, mas o resultado tem dado bons frutos. Com uma gama de sidras seca, meio seca, meio doce e espumante, a Alfa tem ganho vários prémios em concursos desde a Madeira às Astúrias e Noruega, e exporta para a Grã-Bretanha.
Quem já teve a sorte de visitar as Astúrias ter-se-á fascinado com as inúmeras sidrarias e com o ritual de servir a bebida, candidata a Património Imaterial da UNESCO: um dos braços esticado ao alto, que verte a sidra da garrafa para um copo na outra mão, num jogo de precisão.

Inspirados pela região no Noroeste da Espanha, mas sobretudo pela cultura celta na Bretanha, que visitavam amiúde, Jaime Filipe Barros e a mulher, Maria José Valente, abriram em 2015 o restaurante Celta Endovélico, no Porto, um dos poucos a servir sidra. A bretã Kerné, a primeira a venderem, “continua a ser a da casa”, dizem. Agora, porém, são cerca de 200 marcas (portuguesas mas sobretudo estrangeiras) no portefólio. Além de pioneiro no consumo da bebida, o restaurante tornou-se importador de sidras e abriu uma loja online. A carta, essa, tem sempre a sidra e a cultura celta bem presentes: javali maturado em “vinho de maçã” e fumado na casa, cachopinhos recheados à moda asturiana, trouxa druídica ou bolo dos Elfos, feito com maçã, noz, passas, caramelo e sidra, claro. O casal já tem outro projeto na forja: uma carrinha, ao estilo sidra truck, que vai andar por aí a servir a bebida e a cozinha celta.
Cervejeiros de olho
Em Vila Verde, Francisco Pereira e Filipe Macieira, pioneiros da cerveja artesanal há mais de uma década com a Letra, entraram recentemente no negócio da sidra com a marca Duura, feita a partir de maçãs autóctones “de casca rija” porta-da-loja. Para o efeito, inauguraram em agosto uma unidade de produção mesmo ao lado da cervejeira, um investimento de 200 mil euros, que se traduz na capacidade de produzir 15 a 20 mil litros, com o objetivo de ter visitas e provas de sidra.
Esgotados os três mil litros da primeira Duura (em lata e à pressão), está em fase de produção a sidra monovarietal, resultado da última colheita – todas as maçãs vêm do único pomar desta variedade no País, situado próximo de Tibães, Braga, “reaproveitando 15 toneladas de refugo que não tinha calibre”, frisa Francisco Pereira. “É um projeto de sustentabilidade. A ideia é focar na maçã Porta da Loja e noutras variedades regionais que estão desaparecidas, acrescentando alguma irreverência com frutos locais, como a laranja de Amares, e fermentação em barricas de moscatel. O setor das sidras está atualmente como o das cervejas estava em 2012. Estão a criar-se hábitos de consumo”, aponta o empresário.
Em Ossela, Oliveira de Azeméis, também a cervejeira Vadia, de Nicolas e Rosa Billard, tem vindo a apostar em sidra nos últimos anos. Neste caso, a bebida não é feita em linha direta a partir da maçã dos pomares, mas segue uma investigação da Universidade de Aveiro, que reaproveita o desperdício da polpa de maçãs portuguesas na indústria de sumos. “Vimos uma oportunidade para valorizar aquilo que era um resíduo e se transformou num subproduto. Essa polpa é rica em aminoácidos úteis para a levedura”, aponta Samuel Oliveira, diretor de marketing, formado em Biotecnologia. A marca tem três sidras no mercado: maçã, frutos vermelhos e uma envelhecida em barricas de rum durante 18 meses.
Há uma clara tendência de crescimento desta bebida em Portugal, com vários projetos na forja. Lá fora, há já quem lhe chame “Craft Cider Revolution”. É o poder das maçãs.
Madeira: As Astúrias de Portugal
A 23 de agosto deste ano, a sidra da ilha da Madeira foi reconhecida como um produto IGP – Indicação Geográfica Protegida, que “premeia a tradição, a história e as suas variedades de maçã endógenas”, salienta Regina Pereira, responsável técnica pela rede de sidrarias públicas do Governo Regional, a primeira das quais é a Sidraria de Santo António da Serra, Machico (2020), que envolve 56 produtores. Mas as boas notícias não ficam por aqui. Desde outubro que a Madeira passou a integrar a rede europeia de cidades de sidra (há 12 países). A formalização ocorreu nas Astúrias, Espanha, no festival Sisga, onde as sidras madeirenses arrecadaram sete medalhas. A bebida com tradição centenária na ilha, servida em tabernas e cafés, ganhou fama desde que, em 2000, o padre Rui Sousa começou a produzi-la na Quinta Pedagógica dos Prazeres, Calheta, recuperando variedades locais de peros (outro nome para a maçã). Entretanto, outros projetos surgiram na ilha: Arrebita, The Drunken Pharmacist, Massa, Romaria ou Boneco de Canudo. “A Madeira está para Portugal como as Astúrias estão para Espanha”, afirma Regina Pereira. A Universidade da Madeira está a classificar as variedades locais: dez já fazem parte do Catálogo Nacional de Variedades de Espécies Frutícolas, acreditando-se que existem mais de 100 na ilha.
COMPRAR
Alfa > R. Alto de Luzelos, 10, Carrazeda de Ansiães > T. 96 180 0643 / 91 778 0986 > sidraalfa.pt
Duura > Vila Verde > T. 253 321 424, 92 728 3225 > cervejaletra.pt
Faca nos Dentes > Estrada de Venade, 573, Paredes de Coura > instagram.com/sidrafacanosdentes
Nua Sidra > Ponte de Lima > T. 91 495 0893 > nuacider.com
Sidrada > A marca faz visitas aos pomares com prova de sidras (€15 a €20/pessoa, por marcação). Bombarral > T. 96 868 0318, 91 312 7555 > sidrada.pt
Vadia > R. Comendador Artur J. G. Barbosa, 576, Ossela, Oliveira de Azeméis > T. 256 482 151 > cervejavadia.pt
BEBER E COMER
Restaurante Celta Endovélico > R. do Bonjardim, 680 > T. 96 200 2820 > ter-sáb 18h-23h > loja online: portaldasidra.pt
Pomme Eatery > Do casal de ucranianos Hanna e Misha Lytvynenko (donos do Heim Cafe e do Seagull), tem uma carta de sidras portuguesas e estrangeiras, sobretudo de Espanha, França e Alemanha. R. Nova de São Mamede, 18, Lisboa > T. 93 571 0032 > seg-dom 12h-23h30