A sopa preparada no pote de ferro pela avó paterna é uma das memórias que Alexandre Silva guarda com saudade. “Lembro-me de comer coisas preparadas no forno a lenha em casa dos meus avós”, conta o chefe que conduz o novíssimo restaurante lisboeta Fogo, na Avenida Elias Garcia. “Via a panela ao lume o dia inteiro e questionava a minha avó. No fundo, estava apenas a cozinhar em lume brando, um fogo que nunca se apagava porque ia sendo alimentado com pequenos troncos, uma forma de poupar lenha.” Há cerca de quatro anos – já Alexandre Silva tinha inaugurado o Loco, perto da Basílica da Estrela – que a ideia de abrir um restaurante em que tudo fosse feito no fogo andava a ser “cozinhada”. “Quis sair da minha zona de conforto e dedicar-me a esta cozinha mais intuitiva e antiga”, explica, acrescentando que controlar o fogo é, na verdade, o mais desafiante. “Não dá para prever ou controlar as brasas.” Para o ajudar, Alexandre Silva convocou Manuel Liebaut para chefe residente, e Ronald Sim (ex-Burnt Ends, considerado o melhor restaurante de fogo do mundo) assume o papel de subchefe.
Na cozinha aberta aos olhares mais curiosos, saltam à vista, de um lado, a robata (grelha asiática), onde o chefe prepara as carnes maturadas e alguns mariscos, como o lavagante e a lagosta, e o forno a lenha, onde é confecionada a perna de frango biológico com arroz e a cabeça de porco alentejano assada como um leitão, duas sugestões da ementa baseada nos produtos nacionais, biológicos, da época e de origem controlada. Do outro lado, fica a zona dedicada ao fogo aberto, com um espeto para assar peças inteiras: borrego, cabrito e coelho, por exemplo. Já nos potes de ferro, cozinham-se sopas, guisados e estufados. É nesta zona que se arrumam, entre outros utensílios, os tachos de grandes dimensões e as trempes, um espécie de fogão que se põe em cima das brasas, desenhadas por Alexandre Silva, em parceria com a Companhia Industrial de Fundação, da região do Douro. Na hora de alimentar as brasas, trabalha-se com quatro tipos de lenha – eucalipto, pinho, azinho e sobro –; futuramente há de entrar também a de árvores de fruto.
Quem também anda às voltas com o fogo é o chefe Vítor Adão na cozinha do restaurante Plano, aberto em meados de dezembro passado no Dona Graça Apartments, na Graça, em Lisboa. Aqui, cozinha-se segundo os métodos ancestrais. “Trabalhar com o fogo pode ser arriscado. Mas o que é que se consegue sem arriscar?”, atira o chefe, nascido em Chaves. “Sou um bom exemplo disso: tenho 29 anos, saí de casa aos 14, percebi, desde cedo, que para chegar mais longe tinha de dar tudo e de andar no limite.” É como cozinhar com o fogo, explicará mais tarde. “Só temos de o conseguir manobrar e de saber o seu tempo. É aqui que entram os meus 16 anos de experiência”, afirma Vítor Adão, que já passou pelo Bistro 100 Maneiras, de Ljubomir Stanisic, pelo Six Senses Douro Valley e pelos restaurantes DOC e DOP do chefe Rui Paula, entre outros.
Há muito tempo que o chefe transmontano tinha vontade de regressar àquilo que se fazia antigamente: uma cozinha que se habituou a ver em casa dos pais e dos avós, e de estar mais em contacto com a terra. O Plano abriu no verão de 2019, com um menu de degustação que era servido, apenas ao jantar, numa mesa corrida no jardim da guesthouse. Nessa altura, Vítor Adão fez vários testes com lenhas, como a de coco prensado. “É uma nova moda, aguenta mais tempo e dá sabor, mas não quis ir por aí”, justifica. “Começava sempre com o eucalipto, que arde rapidamente, mas percebi que não fazia sentido.” Mais tarde, passou a utilizar pinhas, acrescentando em seguida a oliveira, “pelo cheiro e o sabor”, e depois, a lenha de azinho, “mais prensada e forte”. Às vezes, também utilizava sobreiro. É com estas variedades de lenha que trabalha hoje no restaurante que, entretanto, ganhou uma sala. “Estou a gastar cerca de duas toneladas e meia por mês, e este restaurante tem somente 35 lugares.”
Já sentados à mesa, há vários momentos do menu de degustação (a refeição pode ser pedida à carta) que ficam na memória. Como a posta de pampo grelhada com abóbora na grelha e esmagada de batata (que o chefe traz da sua casa em Trás-os-Montes) e a lula de anzol, com grelos grelhados e molho de espinafres e nozes. Nos meses mais quentes, de abril a setembro, a mesa corrida voltará ao jardim: “É mais uma sala onde crio proximidade com os clientes.”
À volta da fogueira
Vítor Adão já tinha explorado esta cozinha antiga, ao lado de Ljubomir Stanisic, no Sem Porta, no Sublime Comporta Country Retreat & Spa. O restaurante (um dos três que existem neste hotel de cinco estrelas) mudou, entretanto, de nome. Chama-se agora Food Cicle e continua a funcionar apenas de maio a outubro, no meio do jardim de ervas aromáticas, com lugar para 12 pessoas. Durante os meses mais quentes, todas as noites, será servido, à luz da fogueira, um menu de degustação preparado no fogo e à vista dos comensais. “É a primeira vez que vou criar um menu composto por dez momentos. Será um desafio, principalmente nas sobremesas”, admite Hélio Gonçalves, recém-chegado de Singapura, por onde andou a cozinhar nos últimos quatro anos.
Em funções desde 26 de dezembro passado, o chefe executivo ainda não pensou nos pratos, mas assegura que estes terão uma base na cozinha portuguesa, com influências da cozinha asiática, respeitando a sazonalidade dos ingredientes. Tudo cozinhado ou terminado no fogo, alimentado pelos sobreiros da herdade. “O mais difícil”, reconhece Hélio Gonçalves, “será obedecer aos timings do fogo, pois aqui não se pode diminuir ou aumentar o lume, como num bico do fogão. Mas a experiência traz-me tranquilidade”, diz o chefe, que já trabalhou com David Jesus, no Belcanto, e com António Boia, no Rio’s, ambos em Lisboa.
Os sete anos a trabalhar na Austrália foram frutuosos para Ricardo Dias Ferreira. Além do enorme desafio profissional – esteve à frente, por exemplo, dos restaurantes da cadeia Shangri-La, em Sydney –, teve a oportunidade de conhecer diferentes culturas gastronómicas que, ainda hoje, inspiram as suas criações. Ali, teve também o primeiro contacto com restaurantes de fire dining, que lhe mostraram o caminho a seguir no regresso a Portugal, quando abriu o Elemento, na Rua do Almada, no Porto, em fevereiro de 2019. “Queríamos mostrar aos portugueses que era possível fazer uma comida contemporânea, recorrendo a técnicas que remontam ao Paleolítico”, recorda. Trabalham exclusivamente com fogo, sem paraquedas, ou seja, nem sequer existe uma ligação a gás para ultrapassar qualquer problema com as brasas. “É um projeto muito desafiante, há toda uma ciência que é preciso dominar, como o tipo de lenha, a humidade da madeira, a influência da meteorologia no desenvolvimento do fogo…”, conta o chefe de cozinha, de 32 anos.
Falemos então dos preciosismos da lenha, que passa sempre por um tratamento de desumidificação, durante dois dias. Para primeira ignição, usam acácia australiana, madeira de combustão rápida e fortíssima, seca e oca, e cada toro tem de ter cerca de 45 cm e menos de 2 kg. Numa segunda fase, alimentam o fogo com sobreiro, madeira mais densa, para uma brasa mais durável. Quando abriram portas, muitos clientes não perceberam o que era este fire dining e esperavam encontrar uma steakhouse. “Logo comigo, que nunca gostei muito de carne. Sempre apostei nos produtos do mar, temos o melhor peixe e marisco, com uma reação brutal sobre as brasas”, sublinha o chefe do Elemento.
Ricardo Dias Ferreira surpreende também pelo uso de vegetais esquecidos, desde o bolbo de aipo às ervas daninhas, como a folha de saramago ou o dente-de-leão, que transforma em guarnições diferentes. Cozinhados no forno a lenha, no grelhador especial desenhado para o restaurante ou fumados nas brasas, sugestões como percebes, ervilha, favas, bottarga e caldo de porco; rodovalho, molho de feijão e verduras da época; ou peito de pato, cogullo grelhado, ervilha e cogumelo ganham um sabor apuradíssimo.
O chefe de cozinha Ricardo Lourenço também segue os sinais de fumo há alguns anos. Teve uma primeira aventura no Porto, o Achas na Fogueira, em 2016, que fechou portas por razões alheias às brasas. Mas ficou sempre o desejo de voltar aos sabores da sua infância, vivida em Pombal, à volta das saias das avós. “Eram pessoas simples, cozinhavam sempre à lareira, em potes de ferro, algo que me marcou muito”, recorda. Aos 6 anos, emigrou para França, formou-se na École Ferrandi e aprendeu a dominar as té, Castelo de PAICAcnicas da gastronomia francesa, tendo passado por vários restaurantes com Estrela Michelin. Chegou a trabalhar no Japão e ficou “muito sensibilizado com o uso que a cozinha tradicional faz do carvão… e ainda com mais vontade de usar o fogo”, conta. Quando surgiu a oportunidade, em 2018, de ficar à frente dos restaurantes do hotel Douro41, em Castelo de Paiva, sabia que tinha um forno para explorar, embora as suas criações não vivam exclusivamente dele.
Entusiasma-se com a descrição das experiências feitas, seja no restaurante Raiva ou no mais informal bar À Terra, como a cabidela vegetariana, coberta com massa brick, finalizada no forno só para ganhar aquele aroma característico, a morcela crocante de ananás e aveludado de sopa da pedra, a francesinha de cabrito ou a balotina de pinto aos sabores de churrasco acompanhada por cabaz de legumes glaceados, inspirada nos frangos de churrasco que gostava tanto de comer em criança. “As brasas dão alma e coração aos pratos”, sublinha Ricardo Lourenço. As sobremesas, como pudim abade de Priscos e a sopa seca, também não escapam ao fogo. “Vou buscar inspiração à cozinha tradicional portuguesa, sobretudo desta região, mas com um gosto mais leve, saudável e atual”, acrescenta. No futuro, gostava de evoluir para uma cozinha feita inteiramente no fogo. Uma ideia para ficar em lume brando.
Aqui não há fogões a gás
Em setembro, chega à FIARTIL – Feira de Artesanato do Estoril a terceira edição do Chefs On Fire, o festival que junta chefes a cozinharem à volta duma fogueira com um cartaz musical variado
Cozinhar lentamente com fogo, lenha e fumo, como nos tempos ancestrais, é o ponto de partida do festival gastronómico Chefs on Fire que acontecerá, na sua terceira edição, nos dias 12 e 13 de setembro, na FIARTIL – Feira de Artesanato do Estoril. Uma das novidades deste ano é a duração: em vez de um, haverá dois dias de festival. “Não tínhamos como crescer se não acrescentássemos uma data. Desta forma, também passámos a vender 1 500 bilhetes por dia”, diz Gonçalo Castel-Branco, responsável pela organização do Chefs on Fire (e também pelo The Presidential Train, o comboio presidencial que, este ano, circulará pela última vez entre o Porto e o Douro, com chefes a cozinharem na viagem).
Dos 14 chefes de cozinha e de pastelaria nacionais e internacionais que vão marcar presença no Estoril, Gonçalo Castel-Branco revela apenas um dos participantes: o repetente Alexandre Silva, do novo restaurante FOGO e do fine dining LOCO, com uma Estrela Michelin, ambos em Lisboa. “É um dos chefes que melhor representam este tipo de cozinha em Portugal”, justifica o organizador. Com este prolongamento, haverá dois cabeças de cartaz internacionais, um na área da comida e outro na da música.
Durante os dois dias, cada chefe vai estar a cozinhar, em simultâneo, em torno de um fire pit, uma estrutura metálica circular com seis metros de diâmetro e três de altura. Esta é, aliás, a peça-chave da iniciativa que nasceu duma ideia simples. “A minha irmã desafiou-me a fazer-lhe o almoço de aniversário para 60 pessoas, numa casa perto de Estremoz”, conta Gonçalo. Quando percebeu que a cozinha não era suficientemente grande para cozinhar para tanta gente, pediu-lhe para fotografar as árvores perto dessa casa, no sentido de perceber se poderia fazer um fogo de chão. E assim foi. Depois da almoçarada, Gonçalo lembrou-se de que seria interessante um festival com estas características, que celebrasse este tipo de cozinha, feito há milhares de anos. Para lá da comida, o Chefs on Fire conta também com um cartaz musical. Gonçalo Castel-Branco não adianta nomes, mas partilhou um novo projeto que tem para este ano: o Lisbon Food Circus, a acontecer em julho. Durante duas semanas, oito chefes com restaurantes em Lisboa vão cozinhar dentro de uma roda-gigante: “O nosso objetivo é que seja um projeto itinerante, em que os chefes convidados são uma mostra da cidade”, avança o responsável.
MORADAS
Fogo
A perna de frango biológico com arroz e a cabeça de porco alentejano assada são duas sugestões. Av. Elias Garcia, 57, Lisboa > T. 21 797 0052 > ter-sáb 12h30–16h, 19h30-24h, dom 12h30-17h
Plano
No menu de degustação, ou à carta, há posta de pampo grelhada com abóbora na grelha e esmagada de batata. Dona Graça Apartments > R. da Bela Vista à Graça, 128, Lisboa > T. 91 317 0487 > qua-dom 19h30-23h
Food Circle
Numa cabana envidraçada, no meio de um jardim, servem-se jantares de degustação para 12 pessoas. Sublime Comporta Country Retreat & Spa > EN 261-1, Muda, Grândola > T. 269 449 376 > mai-out, qui-sáb 19h-22h
Elemento
Na ementa, aposta-se sobretudo no peixe e no uso de vegetais esquecidos. R. do Almada, 51, Porto > T. 22 492 8193 > seg-sex 19h-23h, sáb 13h-15h, 19h-23h
Douro41
As sobremesas, como pudim abade de Priscos e a sopa seca, também não escapam ao fogo. Vista Alegre, Raiva, Castelo de Paiva > T. 255 690 160 > À Terra: seg-dom 12h-23 > Raiva: seg–sex 19h30-22h30, sáb-dom 12h-15h, 19h30-22h30