O galego Fernando Agrasar veio da Corunha e não esperava encontrar o frio da Beira Alta quase a bater os zero graus. Nessa noite, algumas aldeias do distrito de Viseu tinham ficado isoladas por causa da neve, e Agrasar, apanhado desprevenido, foi obrigada a comprar um casaco quente à pressa. O chefe de cozinha, que há oito anos recebe uma Estrela Michelin no seu restaurante Garzas, debruçado sobre o mar da Galiza, na Corunha, é, tal como os outros seis chefes, um estreante no almoço “Queijo Serra da Estrela à Chef”, que vai na terceira edição e, no último sábado, 26, juntou centenas de pessoas à mesa da sala Príncipe das Beiras no Parador da Casa da Insua, em Penalva do Castelo. Objetivo? Mostrar a versatilidade deste produto DOP na nossa cozinha e alertar para a necessidade da sua certificação.
Só quando chegou na noite anterior, é que Fernando Agrasar provou os queijos Serra da Estrela. “Não os conhecia. Já me tinham dito que eram fortes”, conta-nos o único chefe estrangeiro deste almoço, minutos antes de a azáfama começar. Agrasar optou pelo queijo velho (ou corno como se diz por aqui devido ao facto de ser muito duro). “Gosto de queijos mais fortes e esse parece-me ser muito bom para exportação”, atira. O seu prato é uma desconstrução desse queijo duro em nhoques, que navegaram num surpreendente caldo de peixe (feito com espinhas de robalo que trouxe do mar da Galiza). Começou por o triturar com água, recuperando de novo o soro com a ajuda do kusu (uma raiz) que levou a ferver. Funcho, hortelã, lúcia-lima e pequenas flores deram o toque final à sopa de Agrazar que, de vez em quando, tem andado por cá a partilhar as cozinhas dos “chefes amigos portugueses”, desde os Açores ao Algarve. “Está a fazer-se justiça à cozinha portuguesa”, diz, satisfeito com o número de estrelas que os nossos chefes receberam dias antes.
O almoço haveria de juntar, pela primeira vez desde a divulgação dos premiados do Guia Michelin, três chefes portugueses galardoados: Vitor Matos (Antiqvvm, no Porto), Rui Silvestre (repetiu a Estrela no Bon Bon, Carvoeiro) e André Silva (Casa da Calçada, Amarante). Antes de Agrasar (que serviu o terceiro prato num almoço de sete), a tarde gastronómica à volta do Serra da Estrela DOP começou com o amuse-bouche do anfitrião da casa, Paulo Cardoso (chefe de cozinha da Casa da Insua), que possui queijaria própria, e por isso, é o mais habituado a usar este ingrediente na carta. Um dueto de maçã e presunto em esfera, areia de azeitona e queijo Serra da Estrela abriu as hostilidades para o almoço que haveria de durar mais de cinco horas.
Vítor Matos, que esperava casa cheia nessa noite de sábado no Antiqvvm, no Solar do Vinho do Porto (que conquistou a primeira Estrela Michelin), trouxe uma receita que já tem na carta: “Um tributo ao chefe e meu amigo Michel van Der Kroft”, conta-nos. O prato nasceu no ano passado, quando o chefe holandês, casado com uma portuguesa da zona da Beira Alta, o desafiou a fazer raviólis de massa fresca recheados com queijo Serra da Estrela. Vítor Matos acrescentou-lhe creme fraiche “para cortar o sabor” e um molho de manteiga das Marinhas com salva (“a melhor manteiga portuguesa”, salienta), onde entram flores de feijão, folhas de capuchinha silvestre. Um prato, resume, com “cremosidade, sabor e vegetação”. Com queijo dentro, pois.
Onde está o Wally?
Agora, pergunta para queijinho: o marisco casará bem com queijo Serra da Estrela? Coube a Rui Silvestre esta combinação improvável. Do Algarve, o chefe do Bon Bon, no Carvoeiro, trouxe as ostras do Moinho dos Ilhéus no Parque Natural da Ria Formosa – “as melhores do mundo”, garante – e deu uma nova roupagem à ostra com agrião e caviar que já tem na carta. “Foi um desafio harmonizar queijo com marisco”, confessa. O segredo parece ter estado na “dosagem”. Rui Silvestre juntou o queijo aquecido com vinho branco e chalota a um creme (verde) de agrião e dividiu-o no prato com um caldo escuro de aves. A ostra aparece no meio dos dois cremes de cores diferentes numa mistura atípica, coberta com sementes de abóbora tostadas e agrião. “Temos mar, queijo e terra”, explica. Mas, só depois de metermos o garfo à boca, percebemos onde está o queijo quando saboreamos o tal creme verde de agrião. Cada prato seria, obviamente, harmonizado com vinhos do Dão (brancos, tintos e rosés), disponíveis numa mesa e sugeridos pelo sommelier Sérgio Pereira.
Da janela da sala, avistam-se as ovelhas de raça bordaleira que também elas “almoçam” nos pastos de erva, indiferentes ao que se passa ao lado. Já ali estávamos há mais de duas horas, a provar as diferentes combinações, quando Marlene Vieira tem a tirada da noite: “Lamento, não tenho Estrela Michelin. Mas tenho uma lá em casa, chama-se Isabel e tem 16 meses.” Aplausos e risos na sala para a chefe de cozinha da Maia, a viver em Lisboa, com um restaurante no Mercado da Ribeira e, em breve, mais dois (em Lisboa e Oeiras). Inspirada no bacalhau à minhota (ou à Narcisa), levou uma receita que teve na carta do Avenue, em Lisboa: um bacalhau frito com um consomé de cebola caramelizada (feito com as espinhas do bacalhau, sendo, por isso, diz, “um prato de desperdício zero”) com souflé de batata com queijo e folhas de couve-de-bruxelas. Do peixe saltamos para a carne de André Silva (Casa da Calçada), que apostou na vitela com um puré feito com queijo e raiz de cerefólio (semelhante à salsa), num prato que ainda levou pó de pistáchio, espargo verde, cogumelos, puré de alcachofra e onde o queijo entrou num segundo ato em forma de chips com sementes de sésamo.
Queijo ‘fora da caixa’
Todos os pratos demonstraram (e bem) que o produto DOP da Serra da Estrela pode ser harmonizado com ingredientes menos óbvios. Mas foi a sobremesa de Luca Arguelles (Padaria Arguelles, Arroches), que receberia a maior ovação do almoço, já a tarde se tinha transformado em noite. O pasteleiro alentejano que, confessa, gosta de “pensar fora da caixa” levou uma madalena de azeite e limão, recheada com um cheesecake feito com queijo amanteigado, ganache de pêssego, gelatina de pêssego, e que à primeira vista, parecia um pequeno queijo embrulhar na mesma fita de tecido branco que os costuma envolver. Tudo pensado ao pormenor.
No empratamento começou por pôr pedaços de feno (não comestíveis claro), a fazer lembrar a cama das ovelhas, e uma folha de cardo (planta essencial para o fabrico do verdadeiro queijo Serra da Estrela). A acompanhar, uma infusão fresca de eucalipto on the rocks, determinante para equilibrar os sabores. Com o café, Luca Arguelles ainda serviu uma míni tarte de castanhas, queijo Serra da Estrela e aguardente velha de Borba. “Se não gostarem do prato, estou escondido ali no mato”, avisava o pasteleiro. Não foi preciso. Bem pelo contrário. A sobremesa do jurado do programa Best Bakery, da SIC, arrancaria a maior ovação do almoço. E, quem sabe, possa um dia destes ser vendida algures por aí ou na futura padaria/pastelaria que quer abrir ao público, em Arronches, Alentejo.