Nunca como neste texto precisei tanto de recorrer ao meu bloco de apontamentos. E já vão perceber porquê. Os nomes dos novos pratos que enchem a ementa de outono do Sushic Chiado nem sempre são fáceis de pronunciar ou de descobrir o que escondem. Na dúvida, perguntem, que em troca vão receber uma história e um pouco de cultural japonesa.
E só por causa disso, começo pelo final (ou será porque ainda estou a fazer a digestão desse prato?). Ao meu lado está o chefe Rui Fontes, a desfiar memórias das suas férias gastronómicas no Japão (“onde menos percebia a ementa e o que lá se comia era onde eu mais entrava para provar”) e a dizer-me que o que tenho à frente é mato por lá. Come-se em todo lado, a toda a hora. Com pauzinhos, claro. À mesa, somos três e ninguém arrisca a saborear o Katsudon de porco panado (€15,50) sem a ajuda de talheres ocidentais. Estou, portanto, perante um prato de comida caseira japonesa – trata-se de uma tigela de arroz simples, de bago curto, gordinho e com muita goma, apenas cozido em água, sem tempero. Mas nada disto quer dizer que não se discortine a mistura de sete especiarias (togarashi) que lhe dá um gosto magistral.
Há também um ligeiro caldo dashi no fundo da tigela, tempura de porco (fica mal dizer panado porque não é bem a mesma coisa), cebola de escabeche, molho tensui e – agarrem-me – ovo a baixa temperatura. Estava eu entretida a saborear tudo com muita calma, até porque a refeição já ia avançada e o espaço estomacal ameaçava tornar-se curto, quando me perguntam se não gosto de ovo. Não gosto? Adoro, por isso estou a guardá-lo para último, tentei justificar-me. “Neste momento, matou dois japoneses por ter cometido esse sacrilégio”, brinca o chefe. Nem me atrevo a fazer piadas para diluir a ameaça. Desfaço a gema num apice e misturo-a, exatamente como manda a tradição – já basta estar a comer de faca e garfo.
Posto isto, vamos para o início do almoço, ignorando a sobremesa by Francisco Siopa, pois não houve grande cabedal para ela e, mais uma vez, rapidamente perceberão porquê.
Hugo Ribeiro, 35 anos e muita comida japonesa no currículo, é o homem por trás do nome Sushic (Almada, Mercado de Algés, Chiado e Altis Belém). Explica-me como a carta se transformou, apenas nove meses depois de o espaço Palácio do Chiado se ter aberto à ciade de Lisboa – onde o restaurante se arruma, independente, no primeiro andar. Antes, jura, era muito menos extensa e mais oriental. Hoje, quem aqui vier a qualquer hora do dia ou da noite, come maioritariamente sushi, mas com um twist português, claro – foi assim que a marca Sushic se afirmou e ninguém quer estragar isso. Nuns pratos, o chefe socorre-se da técnica japonesa para tratar produtos portugueses, noutros vice-versa e ainda há casos em que vale o tudo ao molho e fé em deus, com todo o respeito.
Pelo menos é isso que sinto quando agarro, com os pauzinhos, num pedaço de corvina, temperado com ponzu, pedaços de lardo de porco preto e crocante de broa de milho por cima. Esta entrada dá pelo nome Usuzukuri (o corte mais fino de sashimi) Sakana (€11,5). Mas se se chama sacana, será porque me apetece logo repetir a dose e esquecer os outros dois cortes, de salmão e atum, que tenho de provar. Ainda bem que não me fico apenas pelos sabores aportuguesados e tento apanhar o delicioso guacamole, que serve de cama ao atum, ou as sementes de mostarda, junto com as crocantes migalhas de tempura pura, que se apresentam com o salmão.
Os takitos escrevem-se com kapa, mas são completamente mexicanos. Só que nesta invenção o chefe recheou-os com salmão tataki e pedacinhos crocantes de maçã verde, que têm a função de cortar a gordura e fazem-no na perfeição (€9,5). Comem-se com a mão, à dentada. Só que, no final, não dá para deixar no pedaço preto que imita ardósia, e que faz a vez de prato, os troços que caíram – sabe-se lá quando se torna a provar algo tão saboroso?
Depois de tudo o que já descrevi, não me espantaria se surgisse uma indignação: “Podias ter ficado por aqui!”. Podia, mas não teria sido a mesma coisa, e vão ter de me perdoar o lugar-comum. É que logo a seguir aproximou-se um frasco e senti a urgência de saber o que ele guardava. Trata-se daqueles que se fecham com vácuo e que, por acaso, utilizo quase todos os dias para misturar o iogurte com sementes e fruta para o pequeno-almoço. Aqui, não há sementes, mas sabores de outono, essa estação que teima em não aparecer, a avaliar pelo sol que entra nas esguias janelas do restaurante. Na carta, o frasco está disfarçado sob a nomenclatura “tempura de camarão e vieira”, só que, na verdade, mais parece uma sopinha rica de abóbora e espinafres, com os mariscos acima descritos e mais cogumelos shitake, tudo envolto em polme e depois frito. A rematar, caramelizaram-se nozes que se colam, de forma maquiavélica, aos dentes. Fecho a tampa e espero pelo resto, com a certeza de que o sushi que se adivinha não vai superar nada do que provei até então.
Acertei. Apesar dos Uramakis que trazem para a mesa serem bastante originais, o que está para trás deixou marcas fortes. Como dois exemplares de BesutoEbimaki (assim mesmo, tudo junto, que é como quem diz, lá pelo Japão, o melhor Ebimaki) – o segundo já foi por culpa da lima caramelizada e das ovas de tobiko (peixe voador) – e um de GOmaki, que tresanda a Índia, por causa do cardamomo e da manga grelhada.
Já não posso mais e o pior é que me armei a dizer que tenho grande arcaboiço e sou de muito alimento. Mal eu sabia que o melhor estava guardado para o final, mas sobre isso já escrevi.
A carta, de cinco páginas, tem muito mais para oferecer, desde as guiozas – diz quem sabe que, uma vez na boca, toda a vida no coração – aos combinados de sushi e sashimi (sim, também há disso por aqui, porque há muitos estrangeiros que, embora não conhecendo o Sushic, entram, não só atraídos pelos tetos deste palacete do século XVIII, como pela ideia de comer peixe cru).
Cá por mim, depois de esta refeição substancial e demorada – felizmente estava sentada num confortável sofá de veludo dourado –, até me esqueci do cartão magnético que me deram à porta deste palácio, onde estão uma espécie de seguranças com cara de poucos amigos. É uma pena existir aquela barreira humana, porque este é aquele japonês que uma senhora, um dia, classificou num blogue como o segundo melhor do mundo fora do Japão. Exageros à parte, vale a experiência e valerá o dinheiro, mas isso já depende do que cada um pode ou gosta de fazer ao que ganha.
Sushic Chiado > Palácio do Chiado > Rua do Alecrim, 70, Lisboa > T. 21 010 1184 > dom-qua 12h-23h, qui-sab 12h-01h