“Quem é que eu quero ser nestas férias?” Esta é a pergunta que todos devemos ter presente antes de iniciá-las. A psicóloga clínica e terapeuta familiar Luana Ferreira explica porque este é um bom ponto de partida: “Depois da correria quotidiana, caímos numa rotina nova e, entre tupperwares e mochilas, sem darmos conta, estamos com muito pouca autoria.” Daí a necessidade de tomar consciência da intenção: a mãe que pretende ter um tempo de qualidade com os filhos, a pessoa que deseja uma comunicação mais autêntica e intencional com o parceiro ou, ainda, a vontade de dedicar-se a projetos pessoais.
“Andamos tão investidos no trabalho, com níveis de stresse francamente desadequados, que a ideia de parar é assustadora, não só em termos individuais como conjugais”, observa. Neste cenário, as questões que não foram resolvidas ao longo do ano, aliadas aos níveis de aceleração a que se está habituado, acabam por fazer parte da bagagem, contribuindo para um crescente clima de tensão.
Fazer de conta que essa tensão não existe ou continuar em modo ‘ocupado’ são mecanismos frequentes para não ter de lidar com aquilo que se teme que venha à tona, sob a forma de desconforto e, até, de vazio emocional na intimidade. Como dar a volta a isso?
Ansiedades domésticas
A chave para que as coisas corram de feição parece estar em admitir que nem tudo será perfeito ou conforme as expetativas e disponibilizar-se para conversas difíceis, se for o caso. A docente da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa traz à conversa uma citação de Chico Buarque sobre o ciúme e que pode aplicar-se a qualquer tema problemático no casal: “O ciúme é como uma rosa; deve ser oferecido assim que se sente para mostrá-lo em toda a sua autenticidade; se se guarda, vai transformar-se numa couve mal-cheirosa.”
Autenticidade, partilha, confiança, autonomia, privacidade e compreensão: as seis dimensões da satisfação conjugal
Escolher o tempo e o espaço certos para lidar com as tensões e questões mais chatas e preparar a conversa a ter enquanto os miúdos estão entretidos a brincar, por exemplo, pode fazer a diferença na qualidade de um relacionamento.
Nem tudo depende do casal: as condições de trabalho, os desafios socioeconómicas e o estado da saúde física e mental também impactam no grau de satisfação íntima. “Tendemos a achar que a nossa relação funciona, ou não, dependendo das coisas em que nós – ou a pessoa que está connosco – somos mais ou menos competentes e isso não é verdade”, sublinha Luana Ferreira.
O estudo que fez com casais portugueses, há dez anos, aplicando o modelo sistémico, aponta seis dimensões que contribuem para a satisfação relacional e devem ser cultivados numa base diária: autenticidade, partilha (de emoções e de atividades), confiança, autonomia, privacidade – a erótica incluída, “não temos de colonizar o mundo do outro e vice-versa” – e a compreensão, ou comunicação bem sucedida.
Deceções, discussões e acertos
Todos queremos amar e ser amados. A forma como comunicamos (e não apenas nas crises) é determinante para que a ‘viagem’ seja mais segura e agradável: “Importa que, ao longo do ano, haja uma sensação de justiça íntima, sem que ninguém se sinta traído, explorado ou apenas uma das pessoas sobre quem recaem as tarefas domésticas ou a parte do check-in emocional.”
Trocado por miúdos, o esforço de manter o equilíbrio do casal implica uma distribuição igualitária, sem que uma delas se sinta a puxar a carroça, nesta altura do ano e não só.
“A seguir às férias – de verão e da quadra natalícia – verifica-se um aumento de pedidos de terapia individual de casal”, adianta a psicóloga. “Idealiza-se tanto as férias para fazer o que não se fez antes que, depois, vem a sensação de deceção e as pessoas vão ao tapete.” Outra tendência a par desta, mas no início do período de descanso laboral e escolar, é ficar doente quando se faz uma paragem: “O organismo já está habituado a tanta exposição ao stresse que, ao parar, o sistema imunológico vai abaixo e fica-se constipado ou doente.”
E quando o fantasma das discussões entra em cena na altura em que é suposto estarem todos bem e a repor energias? Uns terão de “arranjar forma de tolerar e dispersar emoções difíceis, como a zanga, a vergonha, a solidão ou a angústia”, para outros o desafio pode ser “treinar uma forma de acolher essas emoções de uma forma mais quentinha, sem acusar o outro de não se expressar”, não vá o outro fazê-lo e descobrir que, afinal, não é bem recebido.
A espontaneidade é muito bonita mas…
Para que este direito ao lazer – a que, por razões várias, nem todos têm acesso – seja usufruído em pleno, sobretudo quando envolve dinâmicas mais complexas. “A espontaneidade é uma coisa muito bonita mas deixa muitos espaços abertos para que algumas coisas possam correr mal”, alerta a psicóloga. Planear e distribuir o tempo é a regra de ouro, pois só assim se evitam surpresas indesejadas, pelo menos em parte.
Quem exerce a parentalidade conta com um esforço adicional de preparação: “Quanto mais novos os filhos, maior consistência de rotinas precisam.” Além disso, e tendo em mente os filhos de famílias recompostas e aas férias alternadas, há outra coisa a ter presente: “Os filhos têm de saber com o que contam, sem serem levados ao sabor do vento; são os pais que decidem, mas a informação aos filhos tem de ser atempada e clara.”
A gestão do tempo não é menos desafiante noutras configurações relacionais (amigos ou casais poliamorosos, por exemplo): “Se vamos estar com mais do que uma pessoa, acabamos por ter de gerir esse tempo.” A forma como o fazemos, pode dizer, também, algo sobre “a hierarquia onde se encontram as pessoas envolvidas”. A todos, Luana Ferreira deixa uma nota para a mala de viagem “Se queremos ver os nossos afetos respeitados, vistos e acolhidos, o nosso investimento tem de ser muito intencional”.
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