Educar uma criança é um desafio constante. É preciso ajudá-la a descobrir o mundo, compreender as necessidades que possa ter e tentar incutir-lhe valores que a transformem, no futuro, num adulto bem formado. A VISÃO Saúde falou com o pediatra do centro materno-infantil do Norte Manuel Magalhães e com a psicóloga infantil da Clínica da Mente Marta Calado para tentar desmistificar algumas das preocupações mais recorrentes.
1. As dores de crescimento existem?
Sim, mas têm de ser excluídas outras causas. Manuel Magalhães explica que, geralmente, as queixas surgem abaixo do joelho, “na zona onde o osso cresce”, por volta dos 5 ou 6 anos. Mas nem todas as dores nas pernas são necessariamente de crescimento, alerta o pediatra. “Nos últimos anos percebeu-se, por exemplo, que existe a chamada síndrome das pernas inquietas, que está associado a este tipo de dor e que antes se pensava serem dores de crescimento.” Esta síndrome, que faz com que as crianças esfreguem muito as pernas umas nas outras para aliviar a dor e que pode provocar alterações no sono, está relacionada com um défice de ferro, “o qual pode ser resolvido com uma suplementação adequada”.
2. É normal que o nascimento dos dentes provoque febre?
O nascimento dos dentes não provoca febre, “dá sim uma inflamação local gengival. A gengiva fica vermelha, dolorosa e cria desconforto no bebé”, assegura Manuel Magalhães. Os pais tendem a achar que há essa associação, mas o que acontece é que os dentes crescem numa altura da vida em que as crianças estão expostas a um maior contacto com doenças víricas e, portanto, o crescimento dos dentes acaba por dar-se em simultâneo com a ocorrência de febres.
3. Os piolhos aparecem em cabeças com falta de higiene?
Não necessariamente. Ou seja, “obviamente que, se tivermos uma má higiene, esta vai promover a manutenção dos piolhos”, defende Manuel Magalhães. No entanto, se houver uma criança que tenha um cuidado primoroso de higiene, mas estiver numa turma em que haja piolhos, “então também apanha e transmite aos outros assim que apanhar”. O importante é estar atento e fazer o tratamento para resolver o problema rapidamente.
4. As cólicas são uma desculpa para o choro?
“As cólicas são atualmente um problema que se reconhece. Há estratégias para tratar, nomeadamente através de uma modelação do microbioma intestinal, utilizando probióticos quando necessário”, explica Manuel Magalhães. Apesar de não ser fácil perceber quando é que o bebe está desconfortável devido às cólicas, normalmente o médico diz que se observa uma barriga inchada, muitos gases e uma alteração das fezes.
5. O bebé pode ficar em perigo se não arrotar?
“Não, de todo”, assegura Manuel Magalhães, explicando que se deve pôr os bebés a arrotar, porque o arroto ajuda o ar que é deglutido durante a sucção a sair. “Se entra no trato gastrointestinal e permanece lá, cria um aumento de gás dentro do intestino e faz com que haja mais distensão abdominal.” Geralmente, um bebé que engole mais ar a mamar sofre mais de cólicas.
6. As palmadas funcionam?
Não. Manuel Magalhães enfatiza que os castigos físicos são “absolutamente desaconselhados”. Se uma criança fez algo errado e um adulto, ao dizer-lhe que não pode repetir o erro, bate-lhe, “está a transmitir que, de facto, a criança não pode fazer alguma coisa, mas que bater é permitido e, da próxima vez que a criança precisar de chamar alguém à atenção, vai bater”. As crianças olham para o que se diz, mas muito mais para o que se faz.
7. O castigo não físico melhora o comportamento?
Desde que haja uma compreensão por parte da criança da razão pela qual está a ser castigada, então sim. “Não é fechar uma criança num quarto”, explica Manuel Magalhães. A melhor forma de lidar com birras é ser coerente, definir limites e não proibir a criança de fazer uma coisa para, depois, no dia seguinte, autorizar, pois isso irá desorientá-la. “Se houver coerência e tranquilidade pode nem ser necessário o castigo.”
8. O açúcar deixa as crianças agitadas?
Sim. O açúcar provoca uma ativação do metabolismo e faz com que as crianças fiquem mais agitadas, “mas há algo mais além disso”, alerta Manuel Magalhães. Uma criança que tenha a liberdade para comer muito açúcar quando não devia poderá estar numa estrutura comportamental familiar que é mais permissiva. “Como são permissivos a nível alimentar, também são permissivos a nível comportamental e a implementação de limites não é tão cuidada, ficando a criança mais agitada.”
9. Os videojogos influenciam a concentração?
“Sem dúvida alguma. A última classificação internacional de doenças mentais já inclui até a perturbação de videojogos.” A razão pela qual os videojogos interferem com a atenção das crianças, explica Manuel Magalhães, é o facto de os ecrãs e tablets estimularem excessivamente o cérebro, impedindo-o, depois, de se concentrar em atividades menos dinâmicas e luminosas, como fazer um desenho ou ouvir a explicação de um professor. “Há um excesso de estimulação luminosa, de movimento e de informação a entrar, que capta a atenção de quem está a olhar.”
10. Dar uma mesada é benéfico para ensinar o valor do dinheiro?
Sim e, segundo Marta Calado, não tem de ser sequer em dinheiro para que a criança aprenda o valor das coisas. “Pode ser uma caixa de chocolates que têm de fazer durar.” A mesada, explica a psicóloga, promove ainda a literacia financeira e a gestão do dinheiro e dos bens pessoais. “Um mealheiro, sem promover os bens materiais, contribui para o desejo da conquista de algo que pode ser adquirido depois do esforço de poupar nesse sentido.”
11. Uma criança de 5 anos sabe distinguir o certo do errado?
Sim. “Qualquer criança de 5 anos sabe que é errado empurrar um colega e que está certo dar-lhe um abraço”, defende Manuel Magalhães. Marta Calado diz mesmo que o desenvolvimento moral da criança começa muito antes, por vezes entre o primeiro e o segundo ano de vida. “Desde muito cedo, sabem o que é um ‘não’ e um ‘sim’, o que podem ou não podem fazer e, com o amadurecimento do cérebro, do sistema nervoso e com o desenvolvimento psicossocial, percebem conceitos como justo e injusto.”
12. A criança deve obedecer cegamente
“Na educação tem de haver amor e limites, portanto, não é possível educar dando apenas limites”, defende Manuel Magalhães. O pediatra sublinha a importância de educar as crianças para aquilo que poderão vir a ser e o tipo de sociedade que queremos construir. “Uma criança que seja educada assim, vai crescer um tirano.” Da mesma forma, não pode haver só amor sem limites nem regras. “Aquelas crianças que se não quiserem partilhar não partilham, se não quiserem fazer não fazem, também não funciona, porque serão pessoas egoístas e egocêntricas.”
13. Mexer com as mãos na terra cria imunidade?
Uma criança que brinca com a terra é exposta a muito mais micro-organismos. Provavelmente, vai ter um microbioma muito mais diversificado, podendo estar mais protegida. Além disso, segundo a teoria da higiene, crianças que nascem num ambiente hiperprotegido têm tendência a desenvolver mais doenças do foro alérgico e até imunológico. “Se estiver mais em contacto com a Natureza, com as bactérias e com os vírus, o sistema imunológico ganha uma forma que protege de ter doenças relacionadas com o sistema imune, como as alergias, a diabetes tipo 1 e as doenças autoimunes.”
14. As crianças “namoram”?
Não. “Muitas vezes são inclusive os adultos a incutir isso na cabeça das crianças”, aponta Marta Calado. O namoro é algo que surge numa etapa do desenvolvimento na qual os mais novos já estão mais preparados a nível físico, hormonal e psicológico, explica a psicóloga. “As crianças têm uma visão muito pura e inocente, além de, antes da pré-adolescência, estarem ainda na fase de descoberta do seu próprio corpo, do seu próprio eu. Não sentem o valor simbólico que é dar um beijo a alguém que não é da própria família.”
15. As crianças devem ser obrigadas a comer tudo o que não gostam?
Sim. Se ensinássemos uma criança a comer apenas aquilo que gosta, Manuel Magalhães considera que poderíamos ter um problema de saúde pública, uma vez que os mais novos iriam preferir alimentos doces, processados e altamente calóricos, mas também “coisas passadas, porque é menor o esforço de mastigação”. Os pais devem ensinar aos filhos a importância de comer de tudo, mesmo que, em adultos, acabem por não gostar de todos os alimentos.
16. Faz bem ter um amigo imaginário?
Sim. Entre a infância e a pré-adolescência pode ser bom para as crianças imaginar alguém que lhes dá conforto, com quem podem partilhar as ideias do dia a dia e as opiniões que têm. “Nós acabamos por nos multiplicar nesse amigo imaginário, as crianças é que não têm noção disso, de que o amigo imaginário acaba por ser a imagem delas próprias”, explica Marta Calado.
Conheça também treze estratégias para educar o sono das crianças. No vídeo, a psicóloga Filipa Pimenta, docente e investigadora do ISPA, explica como criar as condições ideais para os mais pequenos dormirem tranquilos: