Portugal é dos países com uma das taxas de vacinação mais altas – 86% da população está totalmente vacinada, e quase 89% recebeu pelo menos uma dose – e é cada vez mais fácil vislumbrar um cenário em que o vírus da Covid-19 se torna endémico. É este o tema de uma reportagem do jornal norte-americano The Wall Street Journal. As máscaras e os certificados digitais tornaram-se ferramentas do dia-a-dia, e parece que não nos vão abandonar por algum tempo, mas a normalidade regressa com cada vez mais restrições a serem levantadas em Portugal, notou o jornal.
O The Wall Street Journal esteve em Lisboa e pôde observar os milhares de adeptos de futebol que encheram um Estádio da Luz sem restrições de ocupação, no passado dia 20 de outubro quando o Benfica defrontou o Bayern de Munique. Mas as máscaras e a apresentação do certificado digital continuam a ser obrigatórias para assegurar a presença nos estádios, que abandonaram no final de setembro a regra da redução da capacidade a 30%.
De facto, esta e muitas outras restrições já foram levantadas, e quem passeie pelas ruas de Lisboa encontrá-las-á de novo povoadas por turistas de todo o mundo. O periódico escreve que “o regresso cauteloso de Portugal à normalidade, apesar de uma taxa de vacinação que é a inveja de funcionários de saúde pública em todo o mundo, está a ser observada como um possível caminho a seguir por outros países, uma vez que as taxas de vacinação em Portugal são mais elevadas e o país contempla quando deve abandonar as restantes restrições”. Acrescenta ainda que a situação em Portugal é “contrastante” com a do Reino Unido, que abandonou as restrições muito mais cedo, naquele que foi chamado “Freedom Day“, e onde as infeções voltaram agora a subir.
Fim da pandemia e início da fase endémica?
Mas será demasiado cedo para afirmar que o vírus é endémico? A expressão significa que o vírus tem agora uma presença mais constante entre a população de uma determinada área geográfica, embora com uma carga viral mais baixa. A fase pandémica chega ao fim quando uma grande parte da população tem algum nível de imunidade ou de proteção contra a doença, ou porque foram vacinados, ou porque foram infetados e recuperaram. A transição da pandemia para uma endemia significa que teremos de aprender a viver com o vírus – algo para que a Organização Mundial da Saúde já tinha alertado – mas conhecemos agora as formas mais eficazes de nos protegermos, e em particular aos membros mais vulneráveis da população, da doença grave e morte.
Maria Manuel Mota, diretora do Instituto de Medicina Molecular, explicou ao TWSJ que Portugal está agora num “período de transição” que irá provavelmente delinear os próximos meses de evolução da pandemia e as estratégias a adotar para a sua contenção. “Agora a Covid-19 é endémica, e precisamos de aprender a viver com o vírus. Quase toda a população está vacinada e o vírus ainda circula, mostrando que não irá desaparecer”, afirma.
Maria Manuel Mota é apoiada nesta afirmação por muitos outros especialistas da área. No ano passado, o virologista Pedro Simas já tinha afirmado que, passada a pandemia, o vírus da Covid-19 tornar-se-ia “endémico e sazonal”, acrescentando ainda que o vírus provavelmente iria “saltar a barreira da espécie de humanos para espécies domésticas ou de companhia”, embora tal não conferisse uma ameaça para saúde pública. “Tudo indica que será um vírus geneticamente estável na população humana”, concluiu.
Um estudo da revista científica Nature chegou a conclusões semelhantes. Mais de cem virologistas, epidemiologistas e outros especialistas da área das doenças infecciosas foram inquiridos sobre a possibilidade de erradicar por completo o SARS-CoV-2. Quase 90% responderam que, na sua opinião, o vírus se iria antes tornar endémico, continuando a circular em áreas específicas a nível global nos próximos anos. Mais de metade dos inquiridos responderam ainda que o facto de a imunidade providenciada pelas vacinas diminuir ao longo do tempo seria um dos fatores determinantes para o vírus se tornar endémico.
“Erradicar este vírus do mundo é muito semelhante a tentar planear a construção de um caminho de pedra até à Lua. É irrealista”, diz Michael Osterholm, epidemiologista da Universidade de Minnesota em Minneapolis, em declarações à revista. No entanto, isso não quer dizer que tenhamos de continuar a conviver com as taxas de infeção grave e morte que infelizmente testemunhámos no último ano e meio.
O vírus da gripe, e alguns outros coronavírus já conhecidos (identificados pelos cientistas como OC43, 229E, NL63 e HKU1), são exemplos de vírus endémicos, que provocam alguns picos de infeção todos os anos, por vezes associados às temperaturas mais baixas, mas não requerem medidas tão reforçadas como quarentenas, confinamentos ou distanciamento social, uma vez que a imunidade adquirida e as vacinas permitem proteger as populações contra estes vírus. Aliás, alguns especialistas consideram igualmente que a Covid-19 adquirirá um caráter sazonal, sendo essencial monitorizar a evolução da doença durante a altura do ano já associada a picos de gripe.
Duas hipóteses parecem surgir quanto ao futuro da Covid-19. O vírus pode vir a ser erradicado em regiões que atinjam a imunidade de grupo, existindo o risco de reintrodução por populações que não adquiriram a imunidade (como é o caso do sarampo); ou uma segunda hipótese – mais provável, de acordo com os especialistas inquiridos pela Nature – o vírus continuará em circulação, mas causando apenas doença leve a moderada, uma vez que grande parte da população mundial adquirirá imunidade e proteção contra a doença.