As pessoas com diabetes fazem parte dos grupos de risco de infeção pelo Sars-CoV-2, já se sabe, principalmente pela maior vulnerabilidade ao desenvolvimento de complicações mais graves, caso testem positivo à Covid-19. “Os doentes com uma diabetes mal compensada, e que tenham mais de 60 anos, apresentam um risco de morte bastante superior ao da população em geral”, explica à VISÃO José Manuel Boavida, presidente da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP).
Mas porque é que isso acontece? A resposta ainda não é totalmente clara, afirma o especialista. “Desde há décadas que se fala na diminuição da imunidade provocada pela diabetes, ou seja, na redução da função dos glóbulos brancos, que acontece quando os níveis de açúcar no sangue estão mais altos”, esclarece. Uma segunda razão apontada pelo especialista tem a ver com a resposta de stress do organismo, com a secreção de hormonas que contrariam a ação da insulina, como o cortisol e a adrenalina. Mas também existe a possibilidade de o vírus ser capaz de atingir as células produtoras de insulina, responsável por normalizar os níveis de glicose no sangue e prevenir complicações.
O problema torna-se ainda mais grave quando a diabetes, além de não estar controlada, se associa a outros fatores de risco, como a idade, o excesso de peso, a hipertensão, doenças cardiovasculares, doença pulmonar obstrutiva crónica, além da baixa literacia, da pobreza e do desemprego. “Daí ser muito importante mesmo que as pessoas com diabetes sejam apoiadas para conseguirem uma boa compensação da sua diabetes, principalmente nesta altura de pandemia”, esclarece o médico.
Dados do Observatório Nacional da Diabetes dão conta de que, a seguir à hipertensão, a comorbilidade mais frequente relativamente à Covid-19 é a diabetes. Esses dados revelaram que a hospitalização apenas foi necessária em 14,5% do total dos indivíduos diagnosticados com Covid-19, mas, nas pessoas com diabetes, essa percentagem subiu para 43,3%. Além disso, do total de indivíduos hospitalizados com Covid-19, 8,8% necessitaram de internamento em Unidades de Cuidados Intensivos. Em relação ao grupo de diabéticos hospitalizados, essa percentagem subiu para 20,3%, revelando a gravidade acrescida da situação de saúde deste grupo.
“O SNS não podia ter ficado refém da Covid-19”
Associado ao facto de este grupo ter, por si só, maior probabilidade de desenvolver sintomas mais graves, quando infetado com Covid-19, verificou-se que, devido precisamente à pandemia, a diabetes foi deixada para segundo plano. “Em Portugal, durante o período de quarentena obrigatória, estima-se que entre 10 a 20 mil pessoas não conseguiram ter acesso a um diagnóstico e intervenção precoces, que é aquilo que mais permite evitar complicações e internamentos”, explica José Manuel Boavida. Milhares de consultas e tratamentos foram adiados, o que, a médio prazo, pode ter consequências graves na saúde destes doentes: problemas de visão que podem levar à cegueira, enfartes, acidentes vasculares cerebrais e mortes motivadas por doenças crónicas. “Tudo isto é resultado da restrição dos recursos de saúde para as situações urgentes não Covid-19 e da diminuição do acompanhamento continuado de que as doenças crónicas como esta necessitam”, afirma o médico.
No final de junho, o Governo voltou a incluir a diabetes no regime excecional de proteção de imunodeprimidos e doentes crónicos, que prevê que as pessoas com doenças crónicas podem justificar a falta ao trabalho mediante declaração médica “desde que não possam desempenhar a sua atividade em regime de teletrabalho”. Além disso, também têm direito a trabalhar remotamente sempre que as condições de segurança não estejam devidamente acauteladas no local de trabalho. Antes disso, os diabéticos e hipertensos tinham sido excluídos desse regime, numa retificação publicada em Diário da República, no início de maio.
O médico considera, contudo, que o apoio aos doentes com diabetes, assim como às pessoas com outras doenças crónicas, devia ter sido mais ativo. “O Serviço Nacional de Saúde não podia ter ficado refém da Covid-19. Mesmo que na fase inicial de pânico, isso possa ter sido compreensível, a partir de maio era óbvio o que se estava a passar”, afirma José Manuel Boavida.
Acompanhar os doentes é a chave
Através da linha de atendimento telefónico criada pela APDP durante o estado de emergência, para prestar aconselhamento especializado aos doentes com diabetes, a Associação identificou várias situações de pessoas que não se dirigiram aos serviços de urgência com medo de ficarem infetadas. Como era essencial serem vistas, a APDP ajudava no encaminhamento para os serviços de urgência, tendo em conta a gravidade dos casos. “Foram referenciadas situações de acidente vascular cerebral, descolamento de retina e feridas graves nos pés que poderiam culminar em amputações”, esclarece o médico.
Ao londo dos últimos meses, vários doentes iniciaram a insulinoterapia à distância, com os profissionais da APDP, através de consultas de telemedicina. “Tivemos o caso de uma criança de três anos, com diagnóstico recente de diabetes tipo 1, e que foi acompanhada por uma pediatra, enfermeira e nutricionista do Departamento de Crianças e Jovens, que fizeram a avaliação da situação, ensinaram o procedimento da insulinoterapia e monitorizaram o estado de saúde da criança, tudo através de meios digitais”, conta José Manuel Boavida.
Também houve acompanhamento para doentes com diabetes diagnosticados com Covid-19, conseguindo evitar-se, muitas vezes, o recurso aos serviços de urgência ou a internamentos. ” A APDP manteve, diariamente, o contacto telefónico com os seus doentes, tendo aumentado o número de linhas disponíveis e a nossa farmácia passou, também, a fazer distribuição domiciliária de medicamentos depois de autorizada pelo INFARMED”, explica.
O trabalho desenvolvido pela APDP nos últimos meses foi destacado pela Organização Mundial de Saúde, no relatório “Garantir os cuidados centrados nas pessoas com diabetes durante a pandemia da Covid-19 – experiências de Portugal”, tendo sido referido como um exemplo de boas práticas na Europa.