Quando exposta a temperaturas extremamente negativas, a água transforma-se num líquido com propriedades diferentes. O novo líquido continua a ser água, mas com um arranjo diferente das moléculas de hidrogénio, que ficam mais unidas e, logo, tornam o líquido mais viscoso.
A descoberta foi feita por Austen Angell, uma investigadora norte-americana da Universidade do Arizona que se dedica a estudar as propriedades físicas mais misteriosas da água.
“Não tem nada a ver com ‘polywater‘, adverte Angell, relembrando-se de um fiasco científico dos anos 60 em que um cientista russo pensava ter criado um novo tipo de água, que, na verdade, era apenas água contaminada.
O novo fenómeno é descrito como uma transição de estados líquido-líquido, em que a água líquida como a conhecemos se transforma num outro líquido de menor densidade. Até agora, este “estado” foi apenas visto em simulações de computador, nunca tendo sido reproduzido com água real.
Isto porquê? Porque pouco tempo antes do momento em que, em teoria, a água se transforma no novo líquido, a água real cristaliza e transforma-se em gelo. Esta pequena cortina de tempo, a “cortina de cristalização” como lhe chama a investigadora, tem estagnado durante anos o progresso da Física no que toca ao estudo das propriedades da água.
“O domínio entre esta temperatura de cristalização e a temperatura muito mais baixa a que cristaliza o gelo amorfo em processo de aquecimento, é visto como uma “terra de ninguém”, diz Angell.
“Encontrámos uma maneira de desviar a cortina de cristalização o suficiente para ver o que se passa por trás – ou mais corretamente, por baixo – dela”.
O gelo amorfo (ou gelo vítreo) difere do gelo normal na medida em que é resultado de um arrefecimento rápido e repentino de moléculas de água líquida. Este arrefecimento é tão rápido que não permite a formação da superfície cristalina típica do gelo, fazendo com que este adote uma forma aleatória.
A transição da água descrita no estudo, publicado na revista Science, é muito semelhante à transição da água líquida para gelo. A principal diferença é que ocorre a temperaturas muito menores (cerca de -90º C) e apenas em condições de super-arrefecimento – ou seja, quando é arrefecida ao extremo em muito pouco tempo.
Graças a estes fatores, a investigadora acredita que, para já, o novo líquido se mantenha apenas como uma curiosidade científica, passível de ser estudada.
Angell explica que o seu interesse pelo “novo estado” da água que replicou remonta a um outro estudo que fez em 2016, em que tentava compreender a capacidade de uma solução aquosa específica de arrefecer e cristalizar.
Neste, fez com que uma certa quantidade da solução se transformasse acidentalmente no novo líquido referido no estudo atual – e conseguiu reverter o processo sem que houvesse formação de gelo.
“Esta observação, publicada no jornal Angewandte Chemie, levantou um interesse considerável, mas não existia qualquer informação estrutural que explicasse o que estava a acontecer”, refere.
Depois de se juntar a Sander Woutersen, um especialista em espectroscopia da Universidade de Amsterdão, na Holanda, os dois chegaram à conclusão que as estruturas envolvidas na transição líquido-líquido da água tinham a mesma assinatura espectroscópica (ou seja, comportava-se da mesma forma quando em contacto com radiação infravermelha) – e os mesmos padrões de ligação do hidrogénio – que o visto nogelo amorfo produzido em laboratório por processos alternativos.
Os resultados parecem dar “provas diretas da existência de uma transição líquido-líquido por detrás da cortina de cristalização de água pura”, diz Woutersen.
O especialista acrescenta que o estudo oferece uma explicação generalizada para as anomalias termodinâmicas da água líquida, que aparenta ter dois pontos críticos – ou seja, é capaz de se transformar em dois líquidos distintos.
“Este comportamento é quase único entre a miríade de líquidos moleculares conhecidos”, conclui Angell. “Pensa-se que poucas outras substâncias o exibam, mas nenhuma foi provada até à data”.