Seis anos passaram após o Acordo de Paris, desgraçadamente por ora pseudo-Acordo, e aproximamo-nos de mais uma Conferência das Partes (COP; Conference of Parties). Esta será a vigésima sexta conferência das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (COP26), em que as Partes se referem aos 197 países que até ao momento assinaram a Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas – pasme-se que foi inicialmente subscrita por 154 países em 1992. A Convenção Quadro estabeleceu um tratado internacional para combater a “perigosa interferência humana no sistema climático”, fundeado parcialmente numa estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera. Esta Convenção Quadro foi o reconhecimento na agenda mundial de uma preocupação com a mudança climática de origem humana, que emanava da ciência produzida ao longo de séculos, paradoxalmente tão antiga quanto a própria revolução industrial. Apesar desse reconhecimento só alguns anos mais tarde, no Protocolo de Quioto em 1997 (com 192 Partes), se materializou em tratado internacional a intenção efetiva de redução das emissões de gases com efeito de estufa.
Em quase três décadas de consciência global a nível político da capacidade humana de alterar o clima de um modo nefasto, a ação climática, que tem mediado entre a inação e a pseudo-ação, dita que desde 1992 até 2019, a emissão de dióxido de carbono para a atmosfera tenha aumentado em termos globais de 22.44 para 36.44 toneladas de CO2, o que corresponde a um acréscimo de cerca de 62%. As emissões de gases de estufa totais acompanharam em boa medida esta taxa de aumento com um incremento de mais de 50% – números estes a reter! O resultado das emissões de gases de estufa antropogénicas conduziu a um aumento da temperatura média global de 1.1oC relativamente ao período pré-industrial (1850-1900), e por exemplo, no facto de nos últimos 11 anos o valor da temperatura média global ter batido o recorde por 9 vezes.
A COP26 surge na esteira do último relatório do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change; Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas) que nos deixou um desesperado alerta no sentido de que ou o mundo atua já, com cortes severos de emissões de gases de estufa, ou será tarde demais para se atingir qualquer dos limiares de aquecimento global para o fim do século XXI contidos no Acordo de Paris – 1.5oC e 2oC. De facto, estes limiares fartamente propalados não foram secundados por compromissos ou mesmo intenções firmadas em Paris, mas permaneceram dependentes de negociações que deveriam ter sido levadas a cabo nos anos posteriores, e que em grande medida resultaram num imenso falhanço global.
O fracasso foi, reitero, global, mas entre os responsáveis mais simbólicos podemos identificar indubitavelmente Trump, Xi Jinping, Putin, entre outros. Como principal economia do mundo, e principal responsável histórico pelas emissões de gases de estufa, a retirada dos EUA do Acordo de Paris por parte de Trump foi uma sentença de coma profundo para o Acordo de Paris; esta irresponsabilidade acrescida da inação e mesmo desprezo dos demais principais emissores relegou Paris para o marasmo a que temos assistido nos últimos seis anos, e que teve o seu ápice nos anos de pandemia. Importa referir que presentemente estamos numa trajetória de emissões que nos conduz para um aumento de temperatura global de mais de 3oC para o final do século; e, que se todos os compromissos e intenções de Paris fossem cumpridas projeta-se ainda um aquecimento global de 2.6oC. Neste contexto complicado, não devemos esquecer que todos estes objetivos e intenções não passam disso mesmo e que longe se está de se materializarem em planos detalhados e exequíveis de implementação e monitorização.
A última chamada: o novo relatório do IPCC
O último relatório do IPCC, divulgado em Agosto do presente ano e baseado em 14 000 artigos científicos, retrata com uma solidez ímpar a evolução do sistema climático passado e as projeções futuras, de acordo com diferentes cenários socioeconómicos (e as correspondentes concentrações de CO2). Esta robustez alimenta-se numa quantidade sem precedentes de observações da Terra, em modelos físico-matemáticos de nova geração do sistema terra e em novas metodologias de atribuição e compreensão dos fenómenos climáticas, e em particular dos extremos.
O relatório do IPCC é claríssimo na caracterização dos diferentes futuros para o clima, em resposta às diferentes trajetórias de emissões, e na absoluta urgência de mitigação destas. De uma forma sintética podem salientar-se as seguintes mensagens chave: 1) as alterações climáticas são indubitavelmente da responsabilidade das atividades humanas, que resultaram em crescentes emissões de gases de estufa e em modificações do uso-do-solo; 2) o clima está a mudar a um ritmo sem precedentes cifrando-se o aquecimento global em 1.1oC relativamente ao período pré-industrial; 3) as novas metodologias de atribuição e o acelerar da mudança climática mostram que as atividades humanas contribuem diretamente para o aumento da frequência e intensidade dos extremos, tais como ondas de calor, precipitação extrema e secas agrícolas e ecológicas; 4) nos cinco cenários de emissões avaliados o limite de 1.5oC será atingido e mesmo excedido nos próximos 20 anos. No cenário mais gravoso esse limiar poderá ser já ultrapassado na presente década. No entanto, no cenário com forte mitigação de gases de efeito estufa, a temperatura global provavelmente cairá no final do século e estabilizará abaixo de 1.5oC; e, 5) uma forte e pronta redução de emissões é crucial para se limitar o aquecimento global a 1.5oC no fim de século ou será tarde demais.
Mas 1oC importa? (1oC é a diferença entre a temperatura média anual entre Washington e Pequim)
Num contributo vital para a compreensão do que significam para a humanidade os limites de aquecimento global do Acordo de Paris, o IPCC lançou no final de 2018 um relatório especial (IPCC, 2018: Global warming of 1.5°C) centrado na caracterização de quão diferentes serão os impactos associados aos limiares de aquecimento global de 1.5oC e 2oC no fim de século. A realidade é que os números são esmagadores para uma aparentemente tão pequena diferença de 0.5oC, que para muitos de nós não passa de uma abstração. De facto, projeta-se que para um aumento de 1.5oC, 14% da população mundial estará exposta a ondas de calor severas pelo menos uma vez em cada 5 anos; este número aumenta para 37% se os 2oC forem atingidos – refira-se que estamos a falar de cerca de 2 mil milhões de pessoas. Se focarmos o número de pessoas afetadas mais frequentemente por ondas de calor extremas este número diminui para 420 milhões, e para 65 milhões se aludirmos a ondas de calor excecionais, tais como as que temos vindo a testemunhar nestes últimos anos em tantas partes do mundo. Esta incidência de extremos de temperatura acarretará um acréscimo impressionante de mortalidade e morbilidade por golpes de calor, doenças cardiovasculares e respiratórias, alergias, etc.
Se falarmos de água, a fração de população global exposta a escassez de água para o limiar de 1.5oC será 50% menos do que para o limiar de 2oC, o que se traduzirá em menos 184 a 270 milhões de pessoas. Esta escassez de água é cumulativamente resultado do aumento da temperatura e do aumento da frequência de secas, e não diz respeito só ao mundo rural, de todo. Projeta-se que nas zonas urbanas mais 61 milhões de pessoas estarão sujeitas a seca severa quando se compara os dois níveis de aquecimento para o fim do século. Em resultado de um sistema climático mais energético, a frequência e intensidade de incêndios e de extremos de precipitação também se estenderá a muito mais regiões do mundo no caso do limiar de 2oC.
O aquecimento global diz também respeito aos oceanos, o que provocará uma elevação da acidez e diminuição do oxigénio em todas as bacias oceânicas. Uma projeção mostra que a pesca marinha perderá perder cerca de 3 milhões de toneladas se se atingir os 2oC, o dobro da diminuição projetada para 1.5oC. Esses 0.5oC de aquecimento extra resultarão numa subida do nível do mar que afetará diretamente mais 10 milhões de pessoas. Todos estes fatores terão um impacto direto e incomensurável na segurança alimentar e escassez de alimentos para centenas de milhões de pessoas adicionais quando se comparam ambos os limiares. A perda de habitat para insetos, plantas e vertebrados duplica de um limiar de aquecimento para o outro, e terá vastas repercussões na biodiversidade, e consequências também no sector alimentar pela importância dos insetos na polinização das culturas. Este relato poderia prosseguir e estender-se a todos os ecossistemas terrestres e marinhos, de que é exemplo icónico a esperada perda, praticamente total, dos recifes de coral se o limiar de 2oC for atingido, enquanto se salvaguardariam pelo menos 10% se se mantivesse o aquecimento em 1.5oC.
Por último, a nível económico, estima-se que as perdas para a economia resultariam em 2100 num PIB per capita 8% menor para 1.5oC e 13% inferior para 2oC de aquecimento, quando comparado com a manutenção da temperatura média atual. Estes duríssimos impactos e perdas económicas atingiriam de forma mais acentuada os países mais pobres, ditos em desenvolvimento, e claro as pessoas mais vulneráveis. Perante estes números, imagine-se o que será um mundo em que a temperatura média global aumente 3 ou 4oC, em que todos estes impactos serão exacerbados não-linearmente, ou seja serão muito mais intensos e por isso terrivelmente nefastos para centenas de milhões de pessoas.
Ver Glasgow por um canudo?
A uma semana e meia do início da COP26 assistimos, por um lado, a um claro decréscimo de expectativas – talvez para um canto pífio de vitória à posteriori -, e por outro lado, a desconfiança e pessimismo. Este sentimento perpassa nas declarações do Presidente da COP26 que anunciou como principal ambição manter vivo o Acordo de Paris. Na realidade, as últimas semanas têm sido desapontantes uma vez que temos assistido a um silêncio ensurdecedor por parte de muitos chefes de estado relativamente à COP26, à inexistência de anúncios de novos compromissos, e muito simbolicamente à eventual ausência na COP26 de líderes como XI Jiping, Putin, Bolsonaro e Modi.
Os hercúleos desafios que a COP26 enfrenta têm que ver, resumidamente, com a imperiosa necessidade de novos compromissos de redução de emissões, e absolutamente crucial o seu escalonamento temporal, o estabelecimento dos mecanismos de um mercado de carbono eficiente e o financiamento dos países em desenvolvimento para uma transição mais justa.
A necessidade de ação imediata é imperiosa para manter a Terra abaixo do limiar de 1.5oC e para isso o maior desafio da COP26 é alcançar novos compromissos de redução de emissões de gases de estufa, chamados contributos determinados a nível nacional. Recentemente, a União Europeia, secundada pelos EUA, assumiram reduções importantes de emissões. A União Europeia comprometeu-se à neutralidade carbónica em 2050 e a cortar as emissões em pelo menos 55% até 2030, em comparação com 1990. O Presidente Biden assumiu também o objetivo de um país neutral em carbono para 2050, e um corte das emissões de 50 a 52% em 2030, relativamente a 2005. Importa referir que esta discrepância no período de referência é pertinente pois resulta num compromisso por parte dos EUA bastante menos exigente que o europeu. Os demias grandes emissores como a China, a Rússia e a Índia têm manifestado intenções de cortes de emissões muito mais vagas e indefinidas. Destes, e sendo o país com maiores emissões de gases de estufa do mundo – a China – anunciou este ano que pretendia alcançar a neutralidade carbónica em 2060. Porém, contemporaneamente assumiu que nos próximos anos as suas emissões de gases de estufa continuariam a aumentar, em resultado, por exemplo, da abertura de mais centrais a carvão. Refira-se que se tivermos em conta estes recentes anúncios de neutralidade carbónica por parte da União Europeia, dos EUA e da China ainda assim a projeção para o final de século do aumento de temperatura é de cerca de 2.1oC. Trazer estes países e os demais principais emissores, principalmente do G20, para novos compromissos de redução de emissões será crucial para o sucesso da COP26. Mais relevante será ainda o estabelecimento de metas parciais e a implementação de um mecanismo de verificação da satisfação desses mesmos compromissos, e verdadeiramente crítico é perceber como estes compromissos serão de facto colocados em prática.
Outro desafio crucial para a COP26 e para uma política climática global tem que ver com a implementação de um mercado de carbono verdadeiro e eficaz para países e empresas. O objetivo último deste mercado é desincentivar as emissões de CO2. Através da taxação das emissões pretende-se promover a diminuição paulatina da viabilidade económica de sectores intensivos carbonicamente, financiar a mitigação e adaptação em países mais pobres, e a recuperação de florestas e ecossistemas mais vulneráveis.
Por último, e de decisiva importância, a COP26 tem que decidir a ajuda aos países em desenvolvimento com fundos para uma transição energética mais justa e menos penalizadora do desenvolvimento destes países, e fazer face aos impactos e perdas irreversíveis das alterações climáticas. Diga-se que o Acordo de Paris incluía compromissos nesse sentido, mas que até ao momento não têm sido respeitados. Um dos objetivos de Glasgow é um compromisso mais firme sobre os montantes necessários, o estabelecimento de mecanismos de monitorização e agendamento dessas verbas para apoiar a mitigação e adaptação desses países. De facto, a responsabilidade histórica das alterações climáticas e por isso económica pertence incontestavelmente aos países mais desenvolvidos, e por isso estes devem fazer face a esses custos. E para quem pense que é muito oneroso para a sociedade fazer face às alterações climáticas, e tenha alguma tendência para um pensamento económico de curtíssimo prazo, atente-se aos últimos estudos sobre economia e alterações climáticas. Por exemplo, um estudo da Swiss RE projeta para o meio deste século perdas anuais do PIB praticamente pandémicas se o mundo aquecer 2.6 oC – o PIB do G7 cairia 8.5% e o PIB Português cerca de 6.5%.
O tempo é de urgência, e um facto inexorável é que a verificar-se um fiasco na COP26 condenaremos seguramente milhões de pessoas a impactos devastadores. É de enorme relevância ter em conta que tudo o que contribua para um efetivo corte emissões, e a mitigação do aquecimento global, significa salvar milhões de pessoas da desarticulação da sua vida, da perda do seu modo de subsistência, quando não da doença e da morte – e por isso importa agir! Por último, quanto mais robusta for a mitigação menores serão também os custos de adaptação para toda a sociedade.
Trilhar um caminho de mitigação não é de todo irrelevante, seja de que dimensão for, uma vez que resultará sempre na salvaguarda dos meios de subsistência de milhões de pessoas.