O projeto que está na base da queda do governo – o centro de dados da Start Campus, no terrenos contíguos à entretanto desativada central termoelétrica de Sines, um investimento de €3,5 mil milhões – foi bloqueado pela existência de três charcos considerados “habitat prioritário”, identificados pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Esses “charcos temporários mediterrânicos”, no entanto, não impediram o ICNF de aprovar a classificação de projeto PIN (Potencial Interesse Nacional). Aliás, não são referidos de todo, não sendo mencionada sequer a sua potencial existência.
No documento, datado de 25 de fevereiro de 2021, a que a VISÃO teve acesso, são levantadas algumas barreiras possíveis, como a hipótese de haver plantas com “interesse conservacionista” e “sobreiros isolados”, ainda que nenhuma seja dada como impeditiva do projeto. “Da análise da informação disponibilizada importa assinalar que é indicado que a ocorrência de espécies de interesse conservacionista em geral e concretamente dos *Armeria rouyana, *Linaria bipunctata subsp. Glutinosa, *Ononis hackelii, *Thymus camphoratus, Thymus carnosum e Verbascum litigiosum só poderá ser confirmada através da realização de trabalho de campo durante a primavera. Também é referido que poderão existir exemplares de sobreiros isolados no local da intervenção.”
Nem o facto de o centro de dados se localizar numa Zona Especial de Conservação (ZEC) é encarado como um fator de bloqueio para a construção do complexo. No documento, o ICNF limita-se a declarar “O projeto localiza-se na ZEC Sudoeste”, sem quaisquer considerações. Meses mais tarde, numa chamada que consta das escutas do processo, Nuno Banza, presidente do ICNF, dirá a Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, que terá de chumbar o projeto por se encontrar em ZEC. “O terreno do centro de dados é todo ZEC (…) Se eles quiserem avançar com aquilo tem que fazer aquele processo de declarar o edifício de utilidade pública.”
Na verdade, apesar de reconhecer que o centro de dados se encontra dentro de uma ZEC, o ICNF aprova a classificação PIN: “O projeto, não incluindo os projetos adicionais e complementares, poderá ser reconhecido como PIN.” Esta aprovação é assinada pelo próprio presidente do ICNF.
O processo de candidatura da Start Campus a projeto PIN, de janeiro de 2021, referia explicitamente que “deverá ser obtido parecer da entidade competente, o ICNF” sobre a compatibilização do complexo com a ZEC.
São, apesar disso, levantadas algumas condicionantes à aprovação final do projeto. Mas nenhuma diz respeito aos charcos ou a quaisquer outros habitats prioritários, nem ao facto de se encontrar numa ZEC. O documento avisa que “a aprovação do projeto estará sempre dependente da informação e resultados obtidos relativos” ao “levantamento florístico na época mais favorável (primavera) para confirmar a ocorrência de espécies de interesse conservacionista em geral” (e lista as mesmas plantas); ao “levantamento georreferenciado de todos os exemplares de sobreiro e azinheiras, com indicação da sua eventual inserção em povoamento”; “caraterização da área do ponto de vista do seu interesse para a fauna em geral, e em particular para a avifauna; e “análise da questão das águas de arrefecimento e da sua rejeição, devendo ser explicitados e analisados os potenciais impactes no meio marinho e concretamente nas espécies e habitats marinhos.”
Além de os “charcos temporários mediterrânicos” não serem mencionados, é notória ainda a inexistência de referências a outras espécies de fauna e flora que viriam mais tarde a ser identificadas na área por uma investigadora da Universidade de Évora e consideradas de importante estatuto de conservação, nomeadamente duas urzes (Erica ciliaris e a Erica tetralix, que podem constituir um outro habitat prioritário), um anfíbio (rã-de-focinho-pontiagudo, Discoglossus galganoi) e um réptil (lagartixa-de-carbonell, Podarcis carbonelli).
A ausência de referências a questões ambientais definitivamente impeditivas foi encarada como uma autorização tácita pelos promotores do projeto – até porque a lei determina que os potenciais obstáculos sejam identificados precisamente na fase de avaliação PIN. O ICNF acabaria por travar a Start Campus a posteriori, invocando os habitats prioritários.
As tentativas de desbloquear a situação do centro de dados de Sines, nomeadamente os contactos de responsáveis da Start Campus com membros do governo, levou o Ministério Público a suspeitar de tentativa de benefício indevido à empresa, constituindo arguidos João Galamba, então secretário de Estado-Adjunto e da Energia, Nuno Lacasta, presidente da APA, Diogo Lacerda Machado, o “melhor amigo” de António Costa, Vítor Escária, chefe de gabinete do primeiro-ministro, e os administradores da Start Campus, Afonso Salema e Rui Oliveira Neves. O processo acabaria por conduzir à demissão de António Costa e à dissolução da Assembleia da República.