O lixo é o parente mal amado que ninguém gosta de ter por perto. Acumulá-lo, nos bolsos, em casa, no carro ou no barco não é de todo, agradável.
O que fazer quando terminamos um pacote de leite, aquela lata de cerveja ou quando já arrumámos todas as compras que trouxemos do supermercado?
Guardar os sacos de plástico para os reutilizar, separar o saco considerando-o já lixo ou lançá-lo para o chão da cozinha na esperança vã que se desintegre de imediato e desapareça do nosso campo de visão. E se ele não desaparecer, se o lixo doméstico não obedecer à vil demanda e permanecer por tempo indefinido, ali mesmo entre nós?
Agora que estou a bordo do Navio de Treino de Mar Creoula, penso nessa problemática. Bem gerida por sinal, ainda que tivéssemos feito já uma faina para o separar convenientemente. Aqui, torna-se fundamental separar e compactá-lo pois o espaço livre torna-se exíguo ao fim de dezanove dias no mar. Soa o apito do mestre e surge a meio navio o imediato a anunciar que se iria proceder a mais uma faina de triagem de lixo. A regra e o respeito por essa separação são fundamentais, para uma convivência com os nossos próprios desperdícios enquanto vivemos no mar. As distrações pagam-se caro e obrigam a abrir de novo os sacos de lixo e separar melhor, confesso que não é nada agradável.
Nós conservamos o lixo até chegar a terra firme, mas por momentos, coloco-me na pele do velejador Charles Moore que em 1997, durante uma regata em pleno oceano pacífico, adotando uma estratégia arrojada de navegação, entrou numa zona “proibida”, um vórtice de correntes lentas e circulares o conduziram a uma ilha…de lixo flutuante. Moore não queria acreditar em tamanho nojo oceânico, verdadeiramente desconhecido. Afinal tratava-se do maior aterro de lixo oceânico, acredite-se ou não, ocupa uma área sete vezes maior do que Portugal continental. Maioritariamente composta por detritos plásticos, este tapete pelágico é constituído por brinquedos, baldes, bolas de futebol, caiaques, enfim, imagine-se numa grande superfície comercial a observar artigos que flutuam, se os deixasse à deriva no mar, ou esquecidos, na praia que frequenta.
Os mais inusitados despojos ocupam nesta zona do planeta uma área equivalente a 5 quilos de plástico por cada quilómetro quadrado de superfície marítima. Desta sopa plástica oceânica, 20% são lançados ao mar por navios, os restantes 80% surgem de terra numa lenta e interminável marcha, como se de uma besta nojenta e selvagem vagueando em círculos se tratasse. No entanto, imagine-se que correntes marítimas e ventos tempestuosos o impelem para terra. No momentos em que o mar regurgita lixo, o resultado são praias cobertas de detritos e a biodiversidade marinha dizimada sem direito a recurso ou apelo.
Estima-se que 90% do lixo flutuante dos oceanos seja plástico. É fácil de compreender pois são dos despojos, os que mais perduram no tempo, sendo duros ossos de roer em matéria de decomposição. Mais de um milhão de aves marinhas confundem anualmente escovas de dentes, isqueiros, brinquedos e seringas com alimento, ingerindo-os em fatais degustações que perduram nos seus corpos em decomposição. O notável trabalho levado a cabo por um fotógrafo que, documentou de forma direta, chocante mas magistral, como morrem as aves marinhas no Atol de Midway, no Pacífico norte, os artigos plásticos que ingerem e não digerem, marcou-me em tempos profundamente. Cerca de cem mil mamíferos marinhos são também fatalmente iludidos anualmente com plásticos, redes ou aparelhos de pesca. Um saco de plástico assume o papel de alforreca letal, um emaranhado de fios de pesca e anzóis disfarçam-se de cardume de pequenos peixes, no entanto, estas armadilhas humanas sufocam e matam um cetáceo ou tartaruga marinha de forma angustiante para quem ama o Mar.
À medida que esta ilha plástica vai sendo triturada pelo oceano dá-se origem a uma metamorfose química. Os plásticos perdem a cor, fragmentam-se me partículas regressando à sua origem, os microplásticos. Esta matéria prima altamente tóxica, atua como esponja e absorve as substâncias químicas da água e metais pesados nocivos ao homem tais como os hidrocarbonetos ou pesticidas. O passo para o abismo é simples e dantesco, entram na cadeia alimentar das espécies marinhas que acabamos por consumir à mesa. O oceano assume inevitavelmente o papel de carrasco do homem, retribuindo-lhe as suas ações nocivas e condenando-o a uma pesada pena.
Mas não é só nos oceanos longínquos que a poluição existe ou afeta a biodiversidade, também o atlântico e o mediterrâneo sofrem diariamente toda esta pressão humana. Num autêntico laboratório de ciência viva em que a teoria e conhecimento se fundem com a prática, a campanha M@rBis Algarve 2013 vivenciou vários momentos naturais que contribuem para o estudo aprofundado deste tema em águas territoriais portuguesas. Vários episódios em que a preocupação ambiental, a intervenção humana e o desrespeito pelo meio ambiente vão sendo debelados pelos biólogos e cientistas presentes a bordo do Creoula. A libertação de um ganso patola que não conseguia voar devido a ter-se emaranhado de linhas de pesca, a remoção de bóias de sinalização que se haviam soltado e encontravam à deriva ou a recolha de aparelhos de pesca durante os mergulhos, roupa, garrafas e plásticos de vária natureza foram sendo pequenas conquistas para todos.
Limpar o oceano é uma tarefa árdua, inglória por vezes, balançando entre o sentimento misto de revolta e recompensa. Trata-se de um longo processo de consciencialização social, sobretudo com gerações e espetros de pessoas para quem o mar em tempos era visto como um elemento infinito. Uma espécie de bom gigante com quem se podia brincar, gozar e faltar ao respeito que ele nunca se revoltaria. O famoso episódio da garrafa que voa da mão de Sousa Cintra, em plena entrevista via rádio e lhe parte o vidro do carro é o espelho do ignóbil de pessoas e situações, que de forma inconsciente apenas se querem ver livres do lixo, no imediato. Não deixou de ser chocante e hilariante em simultâneo. A ecologia é bastante jovem aos olhos do mundo, uma consciência social global fá-la brotar apenas no século XX. Oikos, que os gregos apregoavam como significando o espaço casa, é hoje fruto de uma visão ampla sustentabilidade. O mundo ganha a pouco e pouco a perceção de um casamento para a vida com o planeta Terra. Uma casa com inúmeras divisões e recantos, para cuidar, limpar e preservar. Há, no entanto, numa consciência em crescendo deste gigante jardim aquático, tantas ervas daninhas por dizimar. Precisamos de meios e de ações conjuntas frequentes, tal como as ações frequentes levadas a cabo por centros de mergulho e escolas, de operações de limpeza de praias e recolhas de lixo no fundo submarino, onde o esforço de todos se reflete em sensação de missão cumprida, mesmo que sejam pequenas gotas num oceano.
É um tema global, com consequências imprevisíveis, do qual se sabe ainda muito pouco e que é transversal a vários setores da sociedade. Paula Sobral, bióloga e doutorada em ciências do ambiente, dedica-se ao estudo e monitorização do lixo marinho e conhece bem a nossa realidade:
“O passivo ambiental do lixo marinho tem varias décadas, na maioria dos países do mundo não existe uma gestão de resíduos eficaz, e todo o ser humano sem exceção, produz lixo. Através desta campanha M@rBis, obteremos dados essencialmente sobre microplásticos e detritos nos fundos oceânicos do algarve. A informação atual existente a nível mundial é muitíssimo escassa. Para além dos lixos que são visíveis, um outro tipo de poluição associada aos resíduos plásticos é a contaminação por poluentes orgânicos existentes na água e que o plástico absorve, bem como a passagem de compostos associados do plástico que passam para a água. Já comprovámos a sua toxicidade em laboratório.
A biodiversidade nacional é elevada. A sua saúde é ainda difícil de avaliar, há muito mais para estudar e conhecer em termos de processos e interação dos detritos com a natureza mas estas campanhas possibilitam-nos ter uma plataforma científica de excelência em que todos trabalham para um objetivo comum o do conhecimento.
Mais do que falar em educação ambiental, penso que devemos falar em co-responsabilização de todos os envolvidos (produtores, embaladores retalhistas e utilizadores de plástico em geral) no sentido de reduzir os impactos no lixo global.
Consciencializar os pescadores e toda a industria náutica de recreio para os seus próprios impactos, muni-los de ferramentas de informação é algo que esta já a ser feito embora ainda que de forma pontual. Existe uma barreira social e cultural que está paulatinamente a ser ultrapassada mas é um caminho difícil. Existe cada vez mais uma maior abertura por parte dos pescadores, sobretudo das novas gerações, mais conscientes. Não deixa de ser curioso de que nesta matéria, são os mais novos que ensinam os mais velhos.
Apesar de, em números médios, 70 a 99 % do lixo marinho nas praias portuguesas ser composto por plástico, e ainda que os níveis não sejam alarmantes, todo o plástico encontra-se contaminado. Também nas praias se nota essa evolução comportamental, sobretudo porque existe um enorme esforço financeiro, por parte dos municípios costeiros na sua limpeza.”
Sobre o grande flagelo oceânico que é a disseminação dos microplásticos, Paula Sobral acrescenta ainda: “O plástico fragmenta-se em pedaços que, pelo seu tamanho, é confundido com alimento por diversos grupos de organismos marinhos. Aves, mamíferos, peixes e também por invertebrados, dizimando-os. Em relação aos lixos plásticos de maiores dimensões, nomeadamente aparelhos de pesca perdidos, nunca podemos falar num mal menor, apenas uma degradação muito mais lenta que origina pedaços cada vez mais pequenos. As artes de pesca continuam a existir lá perdidas, embora desapareçam da vista humana, também não passam a pertencer ao oceano. Sobre as campanhas que pretendem limpar os oceanos, penso que primeiro torna-se importante caracterizar o que existe. Pode parecer chocante mas, por enquanto não é rentável limpar, o lixo encontra-se contaminado e torna-se desinteressante para a reciclagem. No entanto começam a surgir algumas iniciativas para recuperar redes de pesca e usá-las como fibras para confecção de roupa, por exemplo.
Posso acrescentar que existem atualmente a nível internacional, vários grupos a estudar e a investigar este tema. Em Portugal o Instituto do Mar, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa foi pioneiro. Começámos em 2008 a nossa investigação e continuamos a estudar o lixo marinho que ocorre na costa portuguesa. Estamos a estudar também amostras retiradas dos fundos marinhos, bem como plásticos que são ingeridos por peixes pescados na nossa costa. Apesar de ser cedo para apresentarmos resultados palpáveis e globais, concentramo-nos em progredir a aprendizagem e estamos convictos que o esforço e as campanhas de consciencialização e co-responsabilização mobilizam a sociedade para um futuro mais sustentável e um oceano mais protegido.”
Estamos perante um cenário nacional bem menos problemático negativamente em relação a outros países ditos “mais evoluídos”. Temos ferramentas de comunicação e consciencialização fortes, claras e que se refletem na sensibilização da população de forma bastante satisfatória. É um trabalho permanente. Sobretudo durante o verão, onde já não existe justificação plausível para esconder a beata na areia disfarçadamente, ou enterrar o saquinho que até está fechado com os lixos do dia num sitio onde o mar já não chega. Basta que todos pensem global e estabeleçam paralelismos pessoais com as suas casas. Para que o mar português não se transforme em biodegradante basta tão somente sermos bioagradáveis para com este bom gigante oceânico.