Os homens estão deitados num caminho de terra batida. É meio-dia e conforme se avança para a floresta, abandonando o inclemente sol do Pará, o ar arrefece sob os ramos e folhas. De vez em quando, uma chuva grossa restolha nas copas. Os trabalhadores da Cikel abandonam a beira da estrada, onde comeram. A cada 100 metros, estabeleceu-se uma divisória invisível e, dentro destes quadriláteros de um hectare, recensearam-se todas as árvores nenhuma escapou ao olhar treinado dos engenheiros. Os cedros vermelhos, os ipês, os jatobás, os angelins, as sucupiras, algumas das mais valiosas espécies da bacia amazónica, têm agora uma chapa metálica, um bilhete de identidade que as assinala para abate.
O primeiro de Ediceu Araújo é um golpe baixo atinge a maçaranduba na base do tronco, uma facada que o atravessa até mais de metade do seu diâmetro. Não se ouve senão o ronronar da motosserra que o maranhense, de 28 anos, entretanto desembainhou acercando-se da árvore, agora pelo exterior, à altura do primeiro golpe. Um corte em cunha separa uma fatia do tronco, como um enorme pedaço de queijo flamengo, de superfície lisa e avermelhada, que cai no solo forrado de cipós e arbustos. De seguida, desfere cortes em lados opostos do tronco as estocadas finais.
A copa começa a ondear, num movimento ainda indefinido. O craquejar ligeiro na base intensifica-se e os ramos e folhas inclinam-se de viés para a faixa de terra batida um estrondo, os silvos da madeira a lascar, o marulhar da vegetação atingida. A maçaranduba soçobra. Ediceu não é apenas um carrasco, é também um coveiro que percebe do seu ofício a árvore, do tamanho de duas carruagens dos suburbanos da CP, tomba exactamente na área que lhe destinaram, no cemitério da Amazónia. “Antes dava um nervoso”, diz o suado Ediceu, há seis anos no Centro-Sul do Pará, onde derruba uma média de 35 árvores por dia. “Mas agora já estou à vontade.” Carrascos e coveiros na Amazónia só faltam os padres, para a extrema-unção. Mas, no Pará, poucos são os que se preocupam com a alma da floresta.
Quando sobrevoei a região, a sul de Belém, a bordo do Beechcraft da Cikel que me transportou à fazenda do Rio Capim, entrevi pelas omnipresentes nuvens as carecadas na nuca farta da Amazónia, marcos da acção da indústria madeireira. Aqui e ali, colunas de fumo anunciam a presença de carvoarias, alimentadas com os restos de madeira das serrarias e com os ramos e restos dos abates. Os rios, negros e imóveis, são testemunhas mudas da pilhagem nas suas margens.
COM SELO AMBIENTAL
Diante de mim estão quatro metros cúbicos de madeira, cujo valor no mercado do segundo maior Estado brasileiro e da Amazónia é de cerca de 110 euros, o preço de uma estante no IKEA. Não tenho muito tempo para lamentar a derrocada, já que o atarefado gerente florestal da Cikel me aguarda ao volante da pick-up, para mais uma estonteante viagem pelo emaranhado da fazenda, situada no município de Paragominas. Evandro Ferreira, 40 anos, estatura mediana, sotaque suave, um conversador nato e um excelente anfitrião, explica que, na propriedade 140 mil hectares comprados pela empresa ao banco Bradesco, na década de 90, são retiradas apenas entre três e cinco árvores por cada hectare, quantidade que permite a regeneração natural.
Essa prática, em conjunto com o recenseamento das espécies com valor económico, um plano de gestão aprovado pelo Governo, boas condições de trabalho e regras enérgicas de segurança e higiene, permitiram à Cikel a certificação ambiental da produção, concedida pela FSC (Forest Stewardship Council). O selo FSC garante à empresa de origem familiar, com raiz no Sul do Brasil e instalada há três décadas na região amazónica, vender mais caros os seus produtos soalhos, forros e estruturas de janelas no mercado europeu, o mais exigente, em termos ambientais.
Na época seca, serrações como a da Cikel têm de armazenar toros para funcionar durante os seis meses húmidos, quando a água invade a Amazónia, tornando impossível o corte e transporte. Por isso, agora, trabalha-se a todo o vapor. A empresa instalou um acampamento permanente na frente de exploração e, atrás das máquinas que arrastam os gigantes da floresta, seguem centenas de outros trabalhadores que apanham os restos para alimentar as três carvoarias. O carvão aqui produzido, com as mais nobres madeiras do mundo, alimenta as centrais eléctricas das principais cidades brasileiras. No parque da empresa, centenas de troncos são aspergidos diariamente, para evitar que os insectos os consumam, enquanto esperam por marcação, junto à serra de lâminas afi adas. Em poucos minutos, uma das máquinas robotizadas da serração transforma quatro metros cúbicos em dezenas de tábuas, pesadas, avermelhadas e a exalar o cheiro característico da madeira recém-cortada. Sem dó.
ABRAÇO LETAL
A indústria madeireira do Pará é a mais sôfrega do Brasil. Basta passear junto da Estação das Docas, em Belém, a capital do Estado, para se verifi car o inevitável no cais, à espera de embarque com destino aos Estados Unidos, Europa e Extremo Oriente, estão armazenadas centenas de pilhas de tábuas. Se essa constatação empírica não for suficiente, as estatísticas não enganam em 2004, segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazónia (Imazon), uma organização não-governamental de perfil científico, sediada em Belém, existiam 33 pólos madeireiros no Estado e cerca de 1 600 empresas que extraíram 11,2 milhões de metros cúbicos, avaliados em 1,1 mil milhões de dólares.
Quarenta e um por cento da madeira da Amazónia sai do Pará. A indústria avança do litoral para o interior, em direcção ao Amazonas, o maior Estado do Brasil e o que conserva as maiores reservas de floresta virgem. Nos últimos 30 anos, o movimento das serrações traça no mapa um eixo em forma de ferradura, que alcança parte do Nordeste dos Estados do Amazonas e de Roraima, o oeste e sul do Pará, o Norte do Maranhão, Roraima e Acre e o Sul do Amazonas. Um abraço letal para a Amazónia que, até 2004, perdeu 17% da sua área.
Hoje, é provável que cerca de 20% das florestas, incluindo as que se encontram nos países vizinhos do Brasil, tenham perecido sob o avanço das motosserras, o plantio de soja, a pecuária extensiva, o narcotráfi co e os grandes projectos mineiros. Qualquer coisa como 1,3 milhões de quilómetros quadrados, o equivalente à área ocupada, conjuntamente, por Portugal, Espanha, França e Grécia.
Em 2007, após dois anos de contenção, o desmatamento ressurgiu por causa do aumento dos preços das matérias-primas. O governador do Estado do Mato Grosso, Blairo Maggi, o maior produtor individual de soja do mundo, disse que a “fera acordou”, uma alusão ao momento favorável no mercado internacional de commodities, que pode determinar uma nova investida contra o mais rico ecossistema do planeta.
DESGRAÇA DE ESTRADAS
O descalabro da Amazónia começou na década de 60, quando a ditadura militar brasileira pôs em prática a política de ocupar para integrar. Antes, os ciclos económicos colonial e da borracha (até à década de 20 do século passado) não haviam afectado muito o bioma, embora a Coroa portuguesa e as ordens religiosas tenham dizimado e convertido à força centenas de milhares de nativos. Empenhado no seu projecto nacionalista, preocupado em assegurar a soberania sobre uma área que representa quase 60% do território do país, o Governo brasileiro, a partir de 1965, manda abrir estradas e apoia grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros.
“Para a ditadura militar brasileira, a ocupação da Amazónia procura resolver três problemas simultaneamente: a fome na região Nordeste do Brasil, a falta de terra para os filhos dos agricultores do Centro-Sul (…) e a necessidade de tomar posse da Amazónia brasileira”, escreve o ambientalista João Meirelles Filho, em O Livro de Ouro da Amazónia (Ediouro, 2007). As grandes vias chegou-se a prever a construção de 12 mil quilómetros de estradas, no primeiro quinquénio da década de 70 tornar-se-iam o principal predador da floresta. Em terra batida ou asfaltada, as ligações do litoral à bacia amazónica e as que atravessam a região no sentido norte-sul potenciaram a ocupação. “A indústria da madeira é a primeira a chegar. Explora a envolvente das estradas e, depois, dá lugar à pecuária e à agricultura”, conta Paulo Barreto, 39 anos, pesquisador sénior da Imazon, num gabinete arrefecido e forrado de mapas.
Após a exploração, a floresta é queimada, para a criação de pastos enquanto os madeireiros avançam para novas fronteiras, através de uma teia de estradas improvisadas que servem de acesso e de escoamento para os camiões cheios de toros. O processo parece imparável. Se o Governo brasileiro não equaciona uma solução eficaz, numa geração a maior floresta tropical do planeta e os seus milhões de espécies muitas ainda desconhecidas desaparecerão.
A MÃE DE TODAS AS EPIDEMIAS
E a destruição está, pelo menos, a criar riqueza para os 20 milhões de brasileiros que, segundo o censo de 2000, vivem na Amazónia? A resposta é não. Tirando o Estado do Amazonas, o rendimento per capita, na região, é bastante inferior à média do Brasil, apesar dos minerais, da floresta e do imenso reservatório de peixe dos rios. Escoado por via fluvial, estradas, aeroportos e portos, o lucro migra para outros países e Estados brasileiros. Ricardo Folhes, 34 anos, um carioca informal, de olhos claros e ar sério, não acredita que as novas leis florestais, assentes em concessões de exploração em florestas públicas e com um crivo ambiental mais apertado, funcionem.
Com a ajuda da população tradicional, Ricardo concebeu três grandes mapas da região do médio Amazonas, nos quais marcou as várias facções que lutam por um pedaço de terra. Claro que, em todos eles, aparecem interesses dos madeireiros. “A resistência às acções de grilagem só é possível através das comunidades locais”, assegura o coordenador do projecto de mapeamento participativo sócio-ambiental, uma iniciativa do Projecto Saúde e Alegria, uma ONG de Santarém, a principal cidade do médio Amazonas.
Os grileiros são as tropas de choque da exploração de madeira. O termo designa os que forjam documentos para assegurar a posse de vastas parcelas de território, extorquindo daí madeira, rápida e ilegalmente. Como a legislação brasileira sobre a propriedade favorece aqueles que exploram, de facto, a terra, oportunistas de todo o género tentam, nas últimas décadas, transformar a exploração de facto num título que lhes conceda o direito de propriedade, abrindo, depois, o caminho a empresas “respeitáveis”, que adquirem esses títulos.
A refrega faz-se com tiros e mortos. Chico Mendes, no Acre, e a irmã Dorothy, no Pará, são as duas vítimas mais conhecidas mas centenas já pereceram à lei das armas, longe de todos, à beira de um rio, suados e cansados de lutar pela floresta. Na zona de Santarém, líderes sindicais, religiosos e de comunidades nativas andam com escolta da polícia federal, depois de terem sofrido ameaças.
A corrupção é grande. “Já foram presos vários funcionários do Governo”, confi rma Valmir Ortega, 40 anos, o geógrafo pêtista que dirige a secretaria estadual do Meio Ambiente e que reúne esforços para contratar mais 1200 homens para a polícia federal e para constituir um fundo de compensação ambiental de 20 milhões de euros, com a contribuição dos empresários que actuam no Pará.
“A madeira é a mãe de todas as epidemias”, sentencia o italiano Tibério Alloggio, 52 anos, sociólogo, num varandim de uma das casas de madeira do Projecto Saúde e Alegria. Tibério trabalha na Amazónia desde 1989 e é um dos coordenadores da ONG que actua na área da saúde e se socorre de uma trupe de circo para cativar a população local, trabalhando com 143 comunidades ribeirinhas, nas margens do Amazonas, Arapiuns e Tapajós.
DOENÇAS SOB CONTROLO
Tal como os índios que, nos séculos XVI e XVII, viveram sob a administração colonial portuguesas, são agora os seus descendentes, os caboclos, resultado da mestiçagem entre nativos e outros povos que se instalaram nas margens dos grandes rios, o mais fraco dos grupos que demandam as riquezas amazónicas.
Maguari, 80 quilómetros a sul de Santarém, na floresta nacional de Tapajós, é terra de caboclo. Se Deus é brasileiro, então deve ser desta zona da Amazónia, de praias de areia branca, rio farto, floresta luxuriante e povo ameno. Mas serão as 62 famílias de Maguari seus filhos? Parece que sim. A malária, o dengue, a subnutrição crónica, as diarreias e a febre amarela estão agora controladas, graças à acção de Fábio Tozzi, 49 anos, um cirurgião de São Paulo que descobriu o Amazonas a bordo do seu veleiro e se instalou em Santarém, onde coordena o projecto médico da ONG Saúde e Alegria. O Abaré, o barco-hospital da organização, equipado com três consultórios, gabinete de odontologia e laboratório de análises, visita a comunidade todos os 40 dias. Sopra um ventinho agradável na margem do rio e, até onde a vista alcança, só se vê a água do Tapajós, afluente médio do Amazonas.
“A travessia demora uma hora e meia”, conta Juvenal Rodrigues, 52 anos, um caboclo brincalhão, atarracado, com uma especial preferência por Cachaça 51, uma das marcas de aguardente de cana mais difundidas no Brasil. “Aqui, o nosso mercado é o rio e a floresta”, desdiz Juvenal, enquanto aguarda a passagem de mais um dos participantes na Maratona da Floresta, uma prova de resistência que ali junta pessoas de todo o mundo, uma vez por ano.
Da outra margem, há 37 anos, partiu Manuel, um caboclo simpático, pai de nove filhos, que vive com a mulher, natural de Maguari, numa das casas de madeira e telhado de palha da comunidade. Ao trocar Paraná, a sua aldeia natal, no outro lado do rio, pela terra da sua mulher, Manuel passou a poder apanhar o autocarro para Santarém e conseguiu trabalho como seringueiro. Hoje, só colhe o látex para os visitantes conhecerem o modo de vida dos seringueiros, pois o preço da matéria-prima não compensa. “Antes, passávamos a vida na floresta, a tirar leite do pau”, troveja Manuel, entre gargalhadas.
CIDADES PELAS COSTURAS
O modo de vida em Maguari é simples. As pessoas vivem do que recolhem na floresta, da pesca no rio, de um centro de artesanato local que faz bijutaria à base de sementes e do chamado “couro da floresta” uma película de borracha natural, pigmentada e depois transformada em bolsas e carteiras, daqui exportadas para outras zonas do Brasil e para o estrangeiro.
Ao domingo de manhã, a igreja local enche-se dos chilreios dos miúdos quase 50% da população ribeirinha tem menos de 18 anos, enquanto duas mulheres oficiam. No final, os líderes da comunidade aproveitam para dar conta de reuniões agendadas com as autoridades do município de Belterra o fornecimento de energia eléctrica, há muito prometido, tarda.
Maguari, pela proximidade em relação à sede do município e por causa da boa acessibilidade uma estrada de terra batida, cheia de buracos, o que por aqui é um luxo…, tem conseguido manter o equilíbrio ambiental e uma comunidade coesa. Mas milhares de caboclos não tiveram a mesma sorte. Ameaçados pelos grileiros, vítimas das doenças endémicas, com baixa escolaridade, viraram costas à floresta que conhecem como ninguém e partiram para a cidade.
Em Santarém, aglomerado de 300 mil habitantes, com esgotos a correr a céu aberto, cablocos e migrantes brasileiros de outras regiões do país enchem os mal-amanhados subúrbios, vagueiam nas praias à procura de uma oportunidade para ganhar algum dinheiro a transportar carga ou a vender bebidas. Entre 1980 e 2000, a população urbana da Amazónia passou de 5 milhões para 14 milhões, enquanto a população rural declina, desde o início da década de noventa. “Os madeireiros e depois os sojeiros abateram a floresta e obrigaram à saída das pessoas”, afi rma Tibério Alloggio.
Em Belém, a maior cidade da região, o panorama ainda é mais negro. Apesar das glórias passadas, conservadas na forma de um casario colonial exótico e de dezenas de igrejas pomposas, milhares de pessoas vivem nas áreas de várzea, rodeadas de mosquitos, enterrando os pés no esgoto, à saída dos seus barracos. Apesar dos esforços do Governo trabalhista do Estado, as taxas de criminalidade são aterradoras. E nem um tacacá, essa sopa típica do baixo Amazonas, feita de camarão, mandioca e jambu, um legume de efeito anestesiante, nos reconcilia com a vida. Nem nos descansa sobre o futuro da Amazónia.