Começou na engenharia biomédica, mas rapidamente se apaixonou pelas energias renováveis. O seu trabalho levou-a a Diretora Regional da Energia dos Açores, antes de enveredar pelo setor privado, ocupando hoje o cargo de diretora de inovação da Cleanwatts, uma empresa na área das comunidades energéticas. Criou a Women Energy Portugal, para debater e estimular o papel das mulheres num setor (ainda) masculino, e ganhou recentemente um dos Prémios Europeus de Energia Sustentável, da Comissão Europeia, na categoria Mulheres na Energia. À VISÃO, Andreia Carreiro fala sobre o papel das mulheres na transição energética, a evolução desta área, nos Açores e em Portugal Continental e o potencial das renováveis para o País, as pessoas e as empresas.
Tradicionalmente, a energia sempre foi um mundo de homens. Isso está a mudar?
Acredito que sim. Hoje, realmente, há muito mais homens do que mulheres, mas é uma questão de tempo até que tudo se equilibre, porque há cada vez mais mulheres no setor da energia. Há uma evolução, apesar de ainda estarmos em minoria.
É uma mudança que acompanha a transição energética, para fontes renováveis e eletrificação da economia?
Poderá ser uma mudança que acompanha muito a problemática das alterações climáticas, porque este tem sido um tema que recebe muita atenção, principalmente das gerações mais jovens. A energia é uma ferramenta absolutamente crucial para enfrentar e combater as alterações climáticas, e portanto é um propósito que atrai muita gente para o setor, incluindo mais mulheres.
Ajudou a fundar a Women Energy Portugal. Com que objetivo?
A Women in Energy foi criada por um grupo de Mulheres que pertencem ao programa dos Future Manager Laders Portugal, da Associação Portuguesa da Energia, e tinha este propósito de promover uma maior igualdade de género no setor. O objetivo é promovermos a discussão em torno da temática e podermos evidenciar e divulgar os bons exemplos de mulheres que têm feito um trabalho meritório na área da energia. Além disso, queremos atrair mais mulheres para o setor, sobretudo de gerações mais novas, que se interessam mais pelas alterações climáticas.
Foi isso que a atraiu?
No meu caso, não. Tirei engenharia biomédica e dediquei-me à inovação nessa área, na componente médica, mas também na parte da eficiência energética e das energias limpas. E o que eu percebia era que tínhamos uma revolução energética pela frente e, portanto, do ponto de vista de inovação e desenvolvimento tecnológico, era extremamente entusiasmante, muito mais do que a componente médica. Acabei por abandonar a engenharia biomédica e dedicar-me a esta área. Confesso que o meu maior entusiasmo foi na capacidade de inovar, de desenvolver aplicações para novas tecnologias na energia, que, claro, no final tinha um propósito fantástico de contribuir para para um mundo melhor.
Quais foram as suas prioridades enquanto Diretora Regional da Energia dos Açores?
Primeiro, tentei perceber em que ponto de situação é que estávamos e o caminho por onde queríamos ir. Depois, a prioridade foi desenvolver uma estratégia para a energia num horizonte alargado, neste caso 2030, em que fossem levados em consideração os recursos existentes, valorizando-os e fazer com que existisse uma maior integração de renováveis nas ilhas. Outra prioridade foi a mobilidade elétrica, que eu considerava a mais importante porque temos desafios acrescidos pelo facto de sermos ilhas. Não é fácil gerir um sistema isolado de energia, imagine-se nove completamente distintos… Mas a mobilidade elétrica era a melhor forma de eficiência energética nas ilhas, porque a grande maioria dos combustíveis que entravam nas ilhas era para o setor dos transportes terrestres. Não há justificação nenhuma para não termos uma massificação da mobilidade elétrica nos Açores: os percursos diários são muito curtos e as autonomias dos veículos estão perfeitamente adaptadas. Fazia todo o sentido.
Como é que os Açores se comparam com o Continente na descarbonização e na mobilidade elétrica?
Não é fácil comparar, porque a base é completamente diferente. Em Portugal Continental, temos uma rede interligada com Espanha. É mais fácil conseguirmos um equilíbrio…
Nos Açores, é tudo mais difícil?
Muito mais difícil, porque não há qualquer qualquer tipo de interligação entre ilhas. Cada ilha é um sistema energético por si só. Integrar renováveis na componente de produção de eletricidade é um enorme desafio, porque tem de existir sempre um equilíbrio entre a produção e a procura. Como não há interligações, torna-se tudo muito mais complexo. Mas os Açores têm feito um percurso muito interessante a esse nível, usando, por exemplo, baterias, para permitir que haja um equilíbrio. Ou seja, quando há uma falha nas renováveis, porque elas são variáveis, em vez de se acionar o grupo térmico [queimar gás ou carvão para produzir eletricidade], a ideia é que se substitua por baterias para que haja o tal equilíbrio do sistema. Enquanto no Continente a preocupação é maximizar a capacidade instalada de renováveis, nos Açores é, por um lado, maximizar a capacidade instalada de renováveis, sim, mas por outro é também inserir sistemas que possibilitem um maior equilíbrio da rede e uma maior integração. Se eu tiver muita capacidade instalada de renováveis e não tiver uma capacidade de gestão eficaz, vou desperdiçar energia, que é o que acontece muitas vezes no Continente: durante a noite, as eólicas estão disponíveis para produzir, mas, como não há consumo, elas não estão a funcionar.
E quanto à mobilidade elétrica?
Os Açores já têm uma rede muito interessante. Todos os concelhos têm pelo menos um posto de carregamento rápido de veículos elétricos. Esse foi um trabalho feito na altura pelo Governo regional. Agora já temos vários privados a investir em infraestruturas públicas, pelo que estamos muito confortáveis no que toca à capacidade de carregamento. E vai crescer, certamente, até porque as pessoas estão efetivamente a aderir à mobilidade elétrica, com os incentivos do Governo regional e do Governo nacional. Por outro lado, há atrasos no que toca à digitalização das redes, na colocação dos contadores inteligentes nas casas das pessoas, na promoção do autoconsumo e do autoconsumo coletivo. Mas estas temáticas são mais recentes. Nos Açores, ainda não temos um único autoconsumo coletivo, uma comunidade de energia. Neste aspeto, ainda estamos um pouco atrasados, mas a fazer um caminho.
Gosta de falar em democratização da energia. É a isso que se refere quando fala em comunidades de energia?
Chamo democratização de energia à participação mais ativa do cidadão no setor elétrico. Isto significa, por um lado, que o consumidor passa a ser também produtor. Consegue ter o seu autoconsumo e também interagir com a rede. E é nessa lógica de democratização que eu mais acredito, e que acaba por ser o maior desafio, que nós trabalhamos muito na Cleanwatts. Temos ativos nas nossas casas: bombas de calor, veículos elétricos, sistemas fotovoltaicos, podemos ter baterias… Se a rede local necessitar de apoio, de flexibilidade, podermos também fornecer esse serviço à rede e sermos ressarcidos por isso. A democratização da energia é passarmos do consumidor passivo para um agente ativo do sistema, que de alguma forma produz e fornece serviços energéticos.
Por exemplo, a bateria de um carro elétrico pode servir para injetar bateria na rede quando há mais procura…
Precisamente. E isso faz com que os próprios operadores, que gerem as redes, não tenham necessidade de investir em outras infraestruturas para providenciar os serviços que podem ser colmatados com ativos que nós, consumidores, já temos nas nossas casas. O desafio é fazer acompanhar a transição energética de uma transição digital.
Está a falar de smart grids… Estão a evoluir à velocidade certa, a acompanhar a rápida evolução das energias renováveis, sobretudo a fotovoltaica?
As smart grids estão a ir no sentido certo, mas não à velocidade que eu gostaria. Na Cleanwatts, sou diretora de inovação estratégica e, portanto, trabalho com projetos de futuro. Tenho muita ambição de que esse futuro chegue rápido e que eu consiga implementar estas soluções, porque é com elas que vamos conseguir ter um sistema melhor. Para isso, precisamos de mais rapidez na digitalização dos sistemas, de mais contadores inteligentes, de mais comunicação em tempo real para podermos atuar quando é preciso. Na lógica das smart grids, não faz sentido trabalharmos com base em previsões, porque é tudo muito dinâmico, desde os nossos comportamentos enquanto utilizadores de energia à disponibilidade das renováveis, que têm a sua variabilidade. Temos de evoluir para um sistema que seja capaz de otimizar em tempo real. Mas ainda há um longo caminho a percorrer, que implica muito mais investimento na digitalização dos sistemas associados ao setor energético.
A empresa em que trabalha ajuda as empresas a fazerem a descarbonização. Como está a correr esse processo? É mesmo uma prioridade das empresas?
Nota-se que é uma prioridade das empresas, até porque as empresas estão a sentir o aumento dos preços da energia e isso faz com que elas fiquem muito menos competitivas. A energia tem um peso muito significativo na operação de uma empresa e, portanto, os pedidos de apoio para fazerem essa transição energética acontecem com muita frequência. Muitas estão a adotar sistemas que lhes permitem reduzir os seus consumos, através do autoconsumo, de uma maior gestão dos seus ativos energéticos, para reduzirem de forma significativa a sua fatura. E há outra vantagem: passar deste autoconsumo individual, desta gestão da sua própria unidade, para algo mais partilhado, para uma lógica de comunidade. Imagine uma situação em que a empresa não está a operar durante o fim de semana – pode partilhar a sua energia com outros membros, com outras unidades do consumo que estejam à volta. Uma empresa pode até ter uma componente social e partilhar energia com famílias economicamente vulneráveis. E também poderão ter aqui alguma pequena receita: em vez de desperdiçarem a energia que não usam, vendem-na a um preço muito mais reduzido, face ao valor de mercado. E todos ganhamos com isto.
Que tipo de empresas procuram mais estes sistemas de autoconsumo, baseados em renováveis?
As grandes consumidoras de energia. Essencialmente, a indústria. Mas há outros casos interessantes, nomeadamente de agentes locais que querem combater a pobreza energética, como IPSS, que depois decidem partilhar o excedente da energia com as comunidades à sua volta.
Até que ponto as renováveis podem ser um fator de atração de empresas para Portugal, sobretudo tendo em conta o nosso potencial de energia solar?
Neste momento, Portugal já é um país muito atrativo para investir em renováveis, precisamente pela disponibilidade do recurso. A Cleanwatts tem vários investidores estrangeiros em diversos projetos. Contudo, preocupa-me o facto existirem algumas falhas que podem fazer com que o investimento deixe de ser atrativo, como toda a componente de licenciamento. Nós temos o recurso e os investidores fazem um modelo de negócio com todo o sentido. Mas depois, desde o momento em que decidem investir até ao momento em que efetivamente o projeto está implementado no terreno, temos várias barreiras para ultrapassar. Desde logo, todo o processo de licenciamento ambiental e energético. Somos demasiado burocratizados, o que pode ser um fator inibidor do investimento externo.
A burocracia é um problema crónico em Portugal, e não só neste setor. Como podemos ultrapassá-lo?
Simplificando e digitalizando todos os processos, insistindo numa maior transparência entre quem quem promove e quem licencia. Muitas vezes, submetemos um projeto para licenciamento e enviamo-lo para as entidades responsáveis, mas depois não conseguimos visualizar o seu ponto de situação, o estado em que está. É necessário trabalhar na sua simplificação e na digitalização para conseguirmos ter processos de licenciamento mais ágeis.
Que impactos está a ter, e terá no futuro, a guerra na descarbonização? Vai acelerar a transição energética?
Sem dúvida, até porque a transição energética permite-nos ser mais autónomos do ponto de vista energético. É isso que os Estados-membros da UE procuram e anseiam neste momento. É fundamental apostar rapidamente na transição energética para que isto se concretize. A tecnologia existe: fontes de energia renováveis, sistemas de armazenamento que permitem um equilíbrio… Acredito que a guerra veio impulsionar esta emergência de transição energética.