“Vi cinco orcas debaixo do leme. Logo após o primeiro abalroamento, deixei de ter o controlo da embarcação porque o leme partiu e deixou de funcionar. Ainda lançámos cinco litros de combustível ao mar para afugentar os animais, mas nada os parecia deter”, conta Miguel Nicolau, a descrever a aventura por que passou ao largo de Sines, em agosto de 2022. O veleiro naufragou pouco depois. Miguel e os companheiros foram resgatados por um barco de pesca. Entre os náufragos, encontrava-se uma criança de cinco anos.
Este é um dos exemplos de interações com orcas na costa portuguesa que têm sido relatados desde 2020. Nos últimos três anos, já se registaram 456 ocorrências pela Península Ibérica, das quais 142 na costa portuguesa. Durante as interações, estes cetáceos abalroam as embarcações, danificam os lemes e, nos casos mais extremos, provocam naufrágios. Os veleiros e os catamarãs parecem ser os seus alvos favoritos.
O aumento das interações com orcas preocupa velejadores, as autoridades e cientistas, sobretudo porque estes cetáceos tendem a aproximar-se mais da costa portuguesa entre a primavera e o verão, quando aumentam as atividades náuticas. Esta situação levou o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), a Marinha Portuguesa e a Autoridade Marítima Nacional a realizarem um workshop dedicado à “Interação com Orcas”.
O objetivo foi encontrar soluções para o controlo destes comportamentos e explicar o protocolo de atuação para os que navegam na costa portuguesa, de forma a proteger as pessoas, as embarcações e as próprias orcas.
Porque é que as orcas atacam?
Na Península Ibérica, existem três populações principais com cerca de 50 indivíduos no total. As orcas têm um grande vínculo familiar, pelo que permanecem nos mesmos grupos para toda a vida. Estes cetáceos são muito curiosos e aproximam-se facilmente das embarcações.
A partir das mais recentes observações, estima-se que seja sempre o mesmo grupo de 16 orcas do grupo de Gibraltar/Cádis, dos quais 14 são juvenis e dois são adultos, que interaje com os veleiros.
Os especialistas presentes no workshop, que decorreu no Planetário de Lisboa, apontaram a curiosidade como o fenómeno catalisador das interações. “É como o cão que persegue a roda”, ilustra Alfredo López, biólogo do Grupo de Trabalho da Orca Atlântica (GTOA). “Aquela mania de tocar em tudo.”
“Se forem juvenis, o mais provável é tratar-se de comportamentos lúdicos e de curiosidade. Se forem adultos, talvez signifique uma resposta a um estímulo negativo. Mas não sabemos, não podemos afirmar com certeza uma das explicações, uma vez que tanto adultos como juvenis estão envolvidos no fenómeno”, explica o especialista à VISÃO.
Outra explicação proposta versou sobre a alteração das rotas de migração dos atuns-rabilho e das corvinas, que formam a base alimentar das orcas, junto da costa portuguesa. A diminuição destes peixes na zona do estreito de Gibraltar e o subsequente aumento na costa portuguesa tem vindo a colocar as orcas em contacto mais próximo com embarcações de recreio e de pesca.
As razões para a migração destes peixes pode estar relacionado com a pressão humana (pescas) ou com as alterações climáticas. Mas não há estudos que permitam tirar uma conclusão. “Neste momento, não há dados suficientes para afirmar que as mudanças nas rotas migratórias dos atuns-rabilho são causadas pelas atuações climáticas. Mesmo os especialistas em atuns não o sabem dizer”, diz Ruth Esteban, bióloga do Museu da Baleia da Madeira.
Armas a bordo
O workshop contou com a presença de velejadores que narraram as interações vividas ao largo da costa portuguesa em 2022. Melides, Sines e Cabo Espichel servem de pano de fundo aos ataques experienciados pelos nautas de recreio. Durante estes encontros, as orcas parecem focar-se sempre no leme da embarcação. “Senti uma pancada forte no leme e larguei-o”, diz Luís Oliveira, enquanto mostra uma gravação da roda do leme a girar rapidamente para cada lado. O barco acabou por ter de ser rebocado para terra.
Vários navegadores dizem que têm cada vez mais medo de ir ao mar. Em off, alguns garantiram à VISÃO que ha quem já ande armado, com petardos (comprados em Espanha) e até caçadeiras, para fazer face a eventuais interações.
Mas as orcas são uma espécie protegida – quaisquer ações que possam pô-las em risco ou perturbar o seu habitat são proibidas por lei. Os biólogos presentes alertaram para a imprevisibilidade da atitude destes cetáceos: no caso de uma resposta musculada por parte dos seres humanos, as orcas podem intensificar o seu comportamento em relação às embarcações.
E o problema pode ser ainda maior. Os números oficiais podem estar longe da realidade, visto que há casos que não são reportados às autoridades. Os motivos para essas omissões não são claros, mas é generalizada a fraca confiança nas instituições para o controlo desta situação. Muitos navegadores preferem grupos informais como os de Facebook e WhatsApp para partilhar avisos, imagens e recomendações.
Brincadeira juvenil
Sabendo que as orcas consomem cerca de 250 quilos de peixe por dia, é expectável que, enquanto as suas presas estiverem pela costa portuguesa, as interações continuem.
Já existe um sistema de avisos à navegação, mas está agora em estudo outro sistema, centralizado, que passa pelo alerta em tempo real que forneça dados sobre a presença de orcas. As autoridades recomendam às pessoas que reportem avistamentos e interações pelos canais formais.
O ICNF anunciou ainda acordos com a Marinha e a academia para financiar investigação científica sobre o comportamento das orcas ibéricas e sobre os dispositivos mais eficazes para as impedir de se aproximarem das embarcações.
Tea Törmänen, bióloga e diretora-executiva da RePlanet, uma ONG ambiental internacional, acredita que as interações tenderão a diminuir, uma vez que são levadas a cabo predominantemente por orcas juvenis, ou mesmo a desaparecer, com a entrada destes animais na idade adulta. “É muito provável que seja um comportamento brincalhão, em vez de um ataque. Espero que os jovens machos que demonstram este comportamento parem antes que os humanos se zanguem, ou uma orca se magoe”, diz Tea Törmänen, em resposta por email à VISÃO.
A investigadora e ambientalista acrescenta que este comportamento está provavelmente localizado. “Parece ser um fenómeno muito local, e as orcas são conhecidas por terem culturas e hábitos locais, pelo que não é surpreendente que não seja um fenómeno global”, explica.