Os guarda-costas têm, como é habitual, cara de poucos amigos. São três e nem por um segundo largam Albert Uderzo que, em Bruxelas, faz pela primeira vez uma visita à exposição dedicada à sua obra.
Segue a segurança, segue o desenhador francês e seguem também alguns in.ltrados que, por entre cotoveladas, empurrões e algumas pisadelas, lá vão conseguindo intrometer-se na comitiva.
Uderzo aqui feito estrela de cinema vê de trás para a frente a sua própria vida. Pedem-lhe pormenores sobre certos objectos, interpelam-no acerca de determinada fotogra.a, perguntam-lhe quem é o homem por detrás de uma certa dedicatória.
E é quase no final que o criador se espanta com a dimensão que a criatura tomou. «Albert?».
A máquina não pode parar e precisa, uma vez mais, da presença de Albert Uderzo. Quem o chama é Bernard de Choisy, o homem que põe a andar toda a estrutura da Albert René, a editora francesa que gere os direitos de autor do desenhador.
Nesta engrenagem que faz da banda desenhada de Astérix um próspero negócio, não há tempo a perder. «Albert? ». Ainda hoje o autor dará umas quantas entrevistas e a agenda de amanhã também já está carregada.
O desenhador cumpre a função de forma serena. Na companhia da sua mulher, Ada, vê-se que ele não se sente como peixe na água. É o próprio que, à noite, no Conrad Hotel, o confessa. «Não sou uma pessoa muito sociável, por assim dizer», a.rma, já longe das câmaras de televisão, à VISÃO (ver entrevista). Sabe, porém, que a um álbum novo correspondem sempre três ou quatro dias como estes que, aqui em Bruxelas, está a viver.
E sabe também que, depois, a .lha Sylvie e o genro Bernard tomarão conta de tudo. Por essa altura já ele estará sossegado, com Ada, junto dos netos. Com a sensação do dever cumprido. A mesma sensação que perante a repercussão do anúncio do título do 33º álbum da série que chegará às livrarias de 27 países no próximo dia 14 o leva a dizer que, pelo menos, nada foi em vão.
Informação a conta-gotas
A sala principal da Biblioteca Solvay, não muito longe do Parlamento Europeu, está mais que cheia. Há quase um ano que o dia 22 de Setembro está marcado e, agora, à volta da plateia, fotógrafos e cameramen alinham-se para registar a primeira imagem do autor. Bem protegido (são os mesmos três seguranças de há pouco), «Monsieur» Uderzo entra acompanhado da mulher e da antiga agente, agora amiga da família. Ainda antes de subir para o palco, cumprimenta Anne Goscinny, a .lha do falecido René Goscinny, que está sentada na primeira .la. «Estava à espera de duas ou três pessoas.», comenta o desenhador. «Albert?».
Antes das perguntas, há que atender aos patrocinadores do evento. Das companhias de aviação às marcas de telemóveis, das pastelarias às empresas de táxis, Sylvie Uderzo e Bernard de Choisy agradecem a meio-mundo franco-belga. Toda a informação foi gerida a conta-gotas e o segredo mantém-se guardado religiosamente, mas hoje é dia de revelações. De Le Ciel lui Tombe sur la Tête/O Céu Cai-lhe em Cima da Cabeça vão ser publicados oito milhões de exemplares, dos quais três milhões se destinam ao mercado francês (em Portugal, a Asa aposta numa edição de 100 mil exemplares).
«Não estamos aqui para vender», diz Bernard. Uderzo repete a frase e sorri.
Responde às interrogações, contando pormenores das aventuras que, com René Goscinny, iniciou em 1959.
E a.rma que tudo isto lhe parece «um fenómeno novo».
Bernard, o todo-poderoso
O fenómeno dura há quase 50 anos. Para Maria José Pereira, directora editorial das Edições Asa (que recentemente compraram à Meribérica os direitos de Astérix para Portugal), acha que a criação da dupla Goscinny/Uderzo era, na altura, inovadora porque tinha «um lado de humor e, simultaneamente, um lado sério». Além disso, acrescenta, «foi evoluindo para qualquer coisa que estava para acontecer em termos político-sociais com o Maio de 68». Hoje, contudo, existe uma outra dimensão que envolve as receitas do Parque Astérix, com dois milhões de visitantes anuais, a atribuição de 150-200 licenças de produtos de merchandising, a venda de direitos para cinema (está prevista a estreia do terceiro .lme, Astérix e Obélix nos Jogos Olímpicos, em Janeiro de 2008) e a auditoria às 104 línguas e dialectos em que, por enquanto, a BD está traduzida.
É o casal Sylvie Uderzo/Bernard de Choisy que cuida da máquina ao pormenor. Antes de casar com a .lha de Uderzo, De Choisy já tratava do marketing de Astérix e, actualmente, é a pessoa que controla a Albert René, fundada por Uderzo em 1993, após ganhar um processo contra a Dargaud.
«Acreditamos estar abertos a todo o tipo de propostas sem que isso implique que tenhamos a ideia de ter todo o poder», a.rma. É Bernard que estabelece o calendário, é Bernard que marca as entrevistas individuais com o autor, é Bernard que licencia (ou não) determinado produto. E é Bernard que, com a máxima urgência, chama Uderzo pelo nome próprio. «Albert?».
Gaulesa ‘Place’
Explicam da Albert René que Bruxelas foi a cidade escolhida para a festa de lançamento do novo livro por ser considerada a capital da banda desenhada e, sobretudo, por ter sido o lugar onde Goscinny e Uderzo iniciaram, nos anos 50, a sua colaboração.
Até 15 de Janeiro de 2006, no edifício Tour & Táxis, estará patente Le Monde Miroir d’Astérix (qualquer coisa como O Mundo-Espelho de Astérix) que, em 2006, passará por Lisboa. A exposição ocupa uma área total de dois mil metros quadrados e integra pranchas originais, fotogra .as, objectos, revistas e capas de todo o mundo (a última a chegar foi a da edição em mirandês de Astérix, o Gaulês). Marc Jallon, um coleccionador que contribuiu com muitos dos materiais expostos, nota que a ideia é que «alguém que não seja especialista possa admirar esta exposição».
Está dividida em dez áreas, e cada uma delas pretende representar uma qualidade do argumento. Da resistência à coragem, da amizade à utopia, da tolerância à liberdade, sustenta o também comissário Bernard de Choisy que se trata de «valores universais »: «Essa é uma das razões do êxito de Astérix.» Num bairro mais afastado do centro histórico, Uderzo visitará depois um «fresco» dedicado a Astérix. O mural .ca no campo de jogos de uma escola e a inauguração coincide mesmo com a hora de saída das aulas. Uma belga de origem marroquina veio buscar os seus três .lhos, dois rapazes e uma rapariga.
A menina, Yasmina, de 7 anos, vê Uderzo a posar para a fotogra.a e pergunta quem é. «É o autor», julga responder a VISÃO. «Mãe, o que é o autor?». Mãe e .lhos seguem, depois, para a Grand Place onde já deverá estar instalada uma aldeia gaulesa.
Os rapazes mantêm-se irredutíveis e só querem ver o menir carregado às costas por Obélix. Junto da mãe, Yasmina, por sua vez, já conhece uma das personagens: «Um é grande e gordo. E o outro, também é grande?» Na encenação que ocupa a praça mais conhecida de Bruxelas, há barraquinhas com crepes, cidra e cerveja, jogos para todas as idades e alguns só para adultos, que os menires (ainda que não maciços.) são mesmo de pedra.
Não muito longe daqui, o Manneken Pis, a maior imagem turística da capital belga, é mascarado para a ocasião, num costume que, a julgar pela quantidade de fotogra.as, muito diverte os excursionistas japoneses. A uma belga que por acaso ali passa, porém, a estátua tornada Obélix é que parece não agradar por aí além. No dia seguinte, a festa continuará na Grand Place com as noivas a passarem (de manhã), Astérix e Obélix a des.larem em formato gigantone e Panoramix a servir poção mágica com uma boa dose de aguardente (à tarde). À noite, haverá também banquete ao qual, para ser gaulês, faltará o javali.
A essa hora, contudo, já Uderzo deveria estar em casa com os seus dois netos. «Albert?».
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