Há um cavalo lusitano junto à rebentação do mar, trotando na capa vermelha de Os Memoráveis (D. Quixote, 352 págs.). Será preciso caminharmos muito, pelos ponteiros do tempo e pelos dois lados do oceano Atlântico, até descobrirmos porque está ele ali. Metáforas, jogos de reconhecimento, ajustes de contas, confissões, canções e sacrifícios, com tudo isto se constrói o novo romance (mas será um romance?) de Lídia Jorge, 67 anos, escritora multipremiada, pitonisa, mestra tricotadora que levanta os fios da contemporaneidade, laçando-os, ponto pé de cruz, ponto alvéolo, pontos unidos, até à redenção última (até à vitória final?). Na nova obra, duas gerações confrontamse, através da peregrinação de Ana Maria Machado (nome-metáfora cortante): jornalista de guerra da CBS, filha de um jornalista português e de uma mãe belga, é convencida por um exdiplomata americano, fascinado pelo 25 de Abril sem mácula de sangue, a fazer o episódio inicial de um documentário sobre a Revolução dos Cravos A História Acordada. Acompanhada pela idealista Margarida Lota e pelo cínico cameraman Miguel Ângelo, a «Machadinha» segue a música (agora não tão distante) de Grândola e as pistas de uma Última Ceia revolucionária o jantar de 21 de agosto de 1975, no restaurante Memories, onde estiveram Capitães de Abril, disfarçados com os petits noms que Ana Maria conhece desde a infância: El Campeador, Oficial de Bronze, Charlie 8, Salamida (que partilha o primeiro nome e os «longos cabelos crespos» com Ernesto Che Guevara, e que merecia até «o movimento da câmara mágica do próprio Alberto Korda»)… Figuras reais num jogo de espelhos literário, retrato de um tempo que passou (ou será que não?)
Onde estava no 25 de Abril?
Estava na Beira, em Moçambique. Encontrava-me num meio militar, sabia-se o que estava a acontecer. Apercebi-me das várias sensibilidades que iam reagindo. Ouvíamos os relatos através da rádio não havia televisão, os jornais sabiam o que nós sabíamos.
Para alguns portugueses, os agentes da sublevação eram «agentes do mal». Descreve uma carta da senhora «piedosa», vizinha do Principal Comando Militar da Região de Lisboa, incomodada pela «presença ominosa das figuras militares revolucionárias mantidas em altos postos, receando um recrudescimento das forças vermelhas», que pedia que um avião americano as levasse para o alto-mar. «(…) oxalá eles pudessem desaparecer em silêncio, como se raptados por um óvni, levados por uma luz azul…» O que sentiu em Moçambique?
Foi uma grande alegria. Finalmente, uma página que se ia virar. Onde eu estava, era desejada a mudança, porque se sabia que aconteciam mortes, diariamente, de uma forma inútil. Havia um conflito social latente entre os militares que defendiam a «integridade da pátria», e a realidade gritantemente oposta. Havia um desejo das populações de serem autónomas, quer dos que queriam uma independência de um tipo (a que aconteceu) quer dos outros (que desejavam uma independência como a imaginada na África do Sul da altura). Havia vários modelos, mas todos percebiam que era uma época esgotada.
O antigo regime sobreviveu matando o futuro por muitos anos. Porque não permitiu que as pessoas se organizassem em partidos com diálogo livre, pôs um manto de obscuridade sobre a opinião. Cada dia que passava era mais uma traição ao futuro.
Deve entender-se Os Memoráveis como um romance ou é outra coisa, obra híbrida?
É a primeira vez, com todos os riscos que tal acarreta, que tomo personagens concretas como modelos. Ainda que eu pegue nos ossos desses personagens e lhes ponha uma outra carne. A circunstância literária importou-me pouco. O que me empurrou foi uma espécie de meditação sobre o enigma do tempo. Escrevi motivada pela realidade histórica. Mas Os Memoráveis é um livro aberto, não tem uma conclusão ou proposta, não demonstra apenas mostra. «Como é que tudo aconteceu assim?» Estas figuras [reais] foram como que exiladas da democracia.
Como foi possível que o País não tivesse aprofundado esta lição? Porque o que aconteceu no 25 de Abril, durante o que não chega a ser 24 horas, é, como diz o Oficial de Bronze, da ordem do milagre: uma série de coincidências, quase inexplicáveis, todas no sentido de que não houvesse sangue derramado mas que se efetuasse uma mudança profunda. Isto aconteceu em vários sítios da Europa e do mundo, mas só depois de nós.
Quis revisitar esse acontecimento, até para me dar esperança, porque este foi um livro escrito do fundo da minha tristeza.
Quis fazer um toque a rebate?
É um livro que acabo por achar que não devia ter escrito porque aproximam-se os 40 anos do 25 de Abril, e eu não queria um livro de efeméride. De rebate, isso sim. Aquilo que senti, durante os seis meses em que o escrevi, é um sentimento comum a muito gente: a ideia de que algo aconteceu há 40 anos, que ainda hoje serve de fermento à esperança.
Como diz um personagem, uma revolução sem «bandeirolas de sangue».
É um capital tão forte… A primeira parte do livro, Fábula, foi escrita há dois anos, antes da Grândola ter voltado a ser um símbolo.
É por isso que Os Memoráveis retrata um esquecimento dos símbolos.
Outra leitura possível é a de que o livro é a sua defesa dos Capitães de Abril, uma forma de fazer justiça?
É, sobretudo, uma homenagem aos 5 mil [participantes na sublevação], a mesma que o Oficial de Bronze quer fazer. Foi uma geração inteira que interpretou o que o Eisenberg designa por «o herói da retirada». Disseram: «Não queremos nada para nós, não morremos e vamos embora, queremos ser o soldado desconhecido.» É algo muito bonito.
Por outro lado, o mito só sobrevive colocando ações nas figuras dos porta-vozes.
São fáceis de identificar, a autora dá pistas…
Dou as pistas mas gosto que eles fiquem um pouco velados, porque há uma certa realidade que não se suporta. Esta fica para o jornalismo.
A ficção trabalha com outro ritmo e intenção. Os factos reais tendem a transformar-se em irreais para conseguirmos tocar na realidade das coisas. Pelo menos, é isso que eu pretendo.
Um dos capitães, aqui batizado como El Campeador [o guerreiro, o valente], é alvo de uma partida: um filme que não acontece.
Ele fala na «história perfeita» que quer ver contada. Em Os Memoráveis, tal não acontece…
É impossível haver esse filme perfeito, desejado por El Campeador. Há uma impossibilidade da História. Os pontos de vista são sempre diferentes. As pessoas esquecem-se, filtram os factos através dos efeitos que estes têm nas suas vidas, e a memória cria factos novos. Portanto, regressar é difícil.
É muito fácil imputar a quem trouxe a liberdade os males que esta sempre implica.
Há figuras mais identificáveis do que outras: El Campeador é Otelo Saraiva de Carvalho, Charlie 8 é Salgueiro Maia… De onde vem Salamida e o seu «olhar guevarista»?
Há, aqui, uma tensão entre memória e esquecimento, entre o partilhar da honra e o reivindicar dos feitos. Salamida representa a junção de várias figuras que fizeram algo mas de que outros disseram: «Não, o tipo não fez nada, não teve importância nenhuma, está-se a armar.» E estas pessoas vão-se calando: «Será que eu participei? Será que foi tudo um sonho?» São os lados caricaturais sempre em confronto numa batalha, num feito histórico, numa eleição polémica.
Há uns que reivindicam tudo! Como Colombo que nem deixou que o rapaz que avistou pela primeira vez a América ganhasse um lugar na História. Os outros ficam de tal forma desapossados que parece que não viveram.
Miguel Ângelo diz haver pessoas destas que pegam numa pistola e se matam. Salamida e outros como ele são os meus pequenos Frankenstein de rostos brilhantes.
Como fez a pesquisa para Os Memoráveis? Falou com os intervenientes?
Fiz, primeiro, um esboço com o que sabia.
Ao longo dos tempos, acumulei informação, estive atenta. Depois, encontrei-me com alguns Capitães, com os seus familiares.
Muni-me de uma bibliografia, duas pilhas de livros que tenho ali. Procurei que não houvesse erros no livro, mas há grandes omissões: não me interessou contar aquilo que grandes repórteres podem narrar. Usei até o que já é mitologia. Por exemplo, Salgueiro Maia assume o que outros fizeram. Quem foi falar com o padre Anselmo foi o Maia Loureiro, e é deste a imagem lindíssima com o lenço na mão. É o tenente Assunção que fica à frente do Junqueira dos Reis, que lhe dá umas bofetadas. E é o Salgueiro Maia que fica na mira do M-47, pensando que vai ser abatido, e leva uma granada na algibeira.
Mas, na memória de hoje, os outros apagamse: é ele que está diante do tanque, no bolso esquerdo tem a granada, e, na mão direita, o lenço.
Aborda essa mitologia através da voz da viúva de Salgueiro Maia…
Faço questão de que se perceba que há liberdade ficcional ainda que os factos sejam completos. Por exemplo, eu tinha a ideia de que quando Marcelo Caetano desce as escadas do Quartel do Carmo para entrar no chaimite Bula [a rendição do presidente do Conselho do Estado Novo], que os seus soldados de guarda tinham capacete na cabeça. Depois, verifiquei que, se eles eram da Guarda Nacional, usavam bivaque. Foi uma pena. Eu imaginara um deles a chorar debaixo do capacete, mas tive que pôr o seu rosto debaixo do bivaque que não cobre os olhos. Se há erros no livro, é porque fui conduzida por alguma fonte errada. Outro exemplo: Tião Dolores retrata Caetano. Na realidade, não há fotógrafo nenhum que tenha gravado esses momentos dentro do Quartel do Carmo.
Deu a ler o livro aos visados?
Dei-o a ler a todos os visados, à exceção de um, que ainda o lerá. Estava com medo de que não se reconhecessem, que não quisessem [entrar no livro]. Porque alguns aparecem fanfarrões, outros surgem doentes… Aparecem, de alguma forma, diminuídos: são vistos por aqueles jovens impacientes e exagerados. Mas apenas houve reticências de uma pessoa. Os outros compreenderam perfeitamente. Eles são modestos.
Não todos, mas são modestos.
Ana Maria Machado diz: «Eu queria ir para os locais onde o tempo explodisse, andar à volta da Terra (…) E poder dizer, eu testemunhei, eu vi, eu reportei, logo, eu tenho o direito de dizer.» É a voz de Lídia Jorge?
É. Acho que só tenho o direito de escrever sobre o que testemunhei. A minha proposta é a de enfrentamento do tempo vivido.
Quando olho para o que escrevo, poderia dizer que é uma crónica do tempo que passa.
Agora, é uma crónica do tempo que voa [risos]. Mas nós temos uma experiência quase extraordinária: somos um país que vivia mergulhado numas brenhas quase medievais, e que, de repente, fica com a esperança de tornar-se um país do primeiro mundo.
Há duas gerações que vivem esse sobressalto extraordinário: pais analfabetos veem os seus filhos serem doutorados nas universidades estrangeiras. Esta batalha da mudança diz-me respeito: em criança, fui testemunha de gente com fome, privada de tudo.
O que lamento é que, passados estes anos, estejamos numa fase tão crítica.
Os Memoráveis é atravessado por uma urgência, expressa em frases como «é esta realidade que é preciso contar antes que seja tarde.» É um apelo aos leitores, ao povo?
É verdade. A história do que aconteceu está passando para o mito; isto é, começa a haver deturpações não voluntárias. A nossa memória é seletiva. Acho que é altura de tentarmos escolher aquilo que nos engrandece e dizer: «Por um momento, nós fomos bons, diferentes.»
Escolher a exceção positiva, defendida pelo ex-embaixador americano.
Corremos o risco de criar, no extremo oposto, uma fábula Disney?
Não, porque o relato, diferente, deve guardar também outra memória. Começo a ter medo de dizer a palavra…
Isto é metafórico do tempo atual: já não temos nada nosso. Roubaram–nos [a nós, escritores] tudo. Agora, sempre que digo «narrativa», dou um salto [risos]. Nós somos feitos para a narrativa negativa. Lemos a Ilíada e a Odisseia, e as memórias positivas são escassíssimas. Eu falo com os jovens, e muitos têm a ideia de que a revolução «infelizmente» aconteceu: »Estávamos muito melhor, porque havia ordem, emprego. [Se não tivesse acontecido] teríamos as contas organizadas, a população não teria vivido acima das suas possibilidades, nunca teríamos deixado destruir a família…», dizem. A minha geração sabe que há uma curva na História. Mas os jovens não têm essa memória: dizem que já não se pode ouvir os militares de Abril, que são uns chatos, que enriqueceram, que se tornaram figuras de revista, que são inadaptados… Em parte, Os Memoráveis tem o olhar dos jovens que fazem dessas figuras de Abril criaturas grotescas. Mas o presente não ofereceu nenhuma revolução: estamos a beber ainda do que aconteceu em abril de 74. A proposta do argumento final [que Ana Maria envia para a CBS] é para dizer, aos que vierem, que se escreva algo, que não seja «disneylândia» mas uma trova do tempo que passou. Que valeu a pena. Para nós e para os outros. Até aos anos 70, na Península Ibérica, a Europa livre e progressista vivia entalada entre duas cortinas: a cortina das ditaduras do Leste e a das ditaduras ibéricas. E muita da crítica da altura compreende-se pelo receio de que o mundo de leste avançasse pela Europa.
Descreve-o, aqui, como o «último estertor do grande animal eslavo mortalmente ferido». Por estes dias, temos os olhos postos na Crimeia…
Há um resto disso. A História é assim. Nunca como agora compreendi a perspetiva do anjo da história do Walter Benjamin: a gente olha para trás e vê, de facto, ruínas. Passou este tempo todo e parece que não se aprendeu nada. Mas cada um é militante do que é.
Eu sou militante de uma nesga de esperança.
Se podemos viver a vida toda alimentados por um dia de felicidade que tivemos, na História das nações também é assim: existem momentos em que há um relâmpago que ilumina tudo. Walter Benjamim só vê o relâmpago iluminar ruínas até ao teto. Mas eu prefiro ver o contrário: há relâmpagos que iluminam algo bom para o futuro.
O Oficial de Bronze diz: «Toda a revolução é uma grande alegria que anuncia uma grande tristeza.»
Porque há várias utopias que explodem. São como as paixões: não podem ser mantidas perpetuamente, é preciso entrar num tom de dó menor. Numa revolução, as utopias chocam-se, e, fatalmente, a desilusão que se segue é intensa. Passa a haver uma democracia, que é um braço de ferro permanente.
São tempos cinzentos. Todas as democracias são cinzentas. A gente anseia sempre por um momento em que a alegria possa explodir outra vez. Mas é perigoso, depois vem a tristeza… É melhor mantermos os braços de ferro entre os opostos.
Uma nova geração de escritores olha agora para a nossa história. Há novos arautos?
Parecem-me tímidos. Escrevem muito com a ideia de que a literatura são artefactos puros, e vejo-os falar pouco. Mas não sei se falam pouco porque têm esta visão de que a literatura deve ser tão pura que tem de se servir a si mesma, ou se não há espaço para as vozes dos escritores. Há escritores da minha geração que têm voz ativa: o Lobo Antunes escreve permanentemente, o Mário de Carvalho também fala, assim como o João de Melo, a Luísa Costa Gomes, a Teolinda Gersão, a Inês Pedrosa, o Rui Zink, a Patrícia Reis…
Mas acho que não são tomados a sério. Há um preconceito: «Eles falam sempre mal. Eles são de esquerda.» Eu pergunto-me se o Saramago fosse vivo, e escrevesse o que escrevia, se hoje seria ouvido. O discurso económico e a salvação do dinheiro tomou de tal forma o espaço público que nada mais se ouve. E eu não oiço os mais jovens: eles estão ainda a afirmar-se. Primeiro, têm de ser alguém na arte para, depois, terem autoridade fora dela.
No fim do livro, defende-se que o mundo será salvo por uma (outra) canção.
Deve haver uma geração que está a sair desta ressaca e que fatalmente será idealista, e continuará a lutar também pelo dinheiro.
Ter dinheiro para viver é lutar pela liberdade.
Sinto tristeza quando vejo pessoas qualifi cadas que, há dois anos, se queixavam de ganhar mil euros, e que, hoje, ganham 400 euros. Isto é uma tragédia. Os seus filhos vão ser idealistas: perceberão o que é passar mal, e quererão repartir com os outros.
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