Noam Chomsky está sentado no seu gabinete da Faculdade de Linguística e Filosofia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), em Harvard, onde ensina há quase cinco décadas. As eleições americanas foram apenas há menos de uma semana, mas parecem ter passado bem longe daquela sala. Para quem se identifica com as linhas tradicionais do anarco-sindicalismo e do socialismo libertário, a contagem dos votos só pode ser encarada com um sorriso e um encolher de ombros. Outro resultado mudaria os EUA assim tanto?
VISÃO: Que consequências tem a reeleição de George Bush?
NOAM CHOMSKY: Nos Estados Unidos vamos assistir à continuação do esforço intenso para desmantelar o sistema de Protecção Social que tem sido desenvolvido no último século.
Basta ver a reacção das administrações das empresas e dos grupos de lobby aos resultados eleitorais. Estão em euforia completa. E vai prosseguir o ataque ao sistema de impostos progressivos. Esta Administração continuará a reduzir os impostos para os mais ricos. E os outros que vão vivendo.
E internacionalmente?
Os planos iniciais deles (a Administração Bush) eram muito ambiciosos.
Tencionavam transformar o sistema militar americano, de forma a pôr o mundo inteiro em risco de aniquilação imediata, sem aviso prévio. Mais tarde houve uma contra-reacção.
A Rússia tratou de se equipar para ficar à altura e muitos estrategos começaram a recear que tudo aquilo podia significar o juízo final.
Vão também continuar a minar tratados internacionais, desde o Protocolo de Quioto, sobre as emissões de dióxido de carbono, aos tratados sobre desarmamento. Os planos iniciais incluíam levar a agressividade e a violência no Médio Oriente não só ao Iraque, mas provavelmente também ao Irão e à Síria, podendo passar ainda pela América do Sul. Mas penso que esses planos ficaram abalados, devido aos extraordinários fracassos da guerra no Iraque. Devia ter sido a ocupação militar mais fácil da História.
Afinal, longe disso…
Devido a uma total incompetência e arrogância conseguiram criar uma resistência, que ganhou bastante força e agora não podem dominar. Se pensarmos na II Guerra Mundial, os americanos estão a ter mais problemas no Iraque do que os nazis na Europa ocupada. Estes resolveram o assunto mais depressa, recorrendo a colaboradores locais, à polícia local, mais o apoio de soldados alemães. No Iraque isto acabou por ter mais custos e sair muito mais caro e, assim, tornou-se improvável o uso directo da força noutros locais.
E sem ser directo?
Vão apoiar-se mais na subversão, como fizeram com o golpe de Estado na Venezuela, e possivelmente também em forças israelitas que estão a ser intensamente apoiadas pelos americanos, como uma espécie de força mercenária e que pensariam utilizar talvez no Irão, embora não me pareça que ainda o façam.
De qualquer modo não creio que possam continuar com a agressividade internacional que tinham planeado, embora os programas militares devam prosseguir.
No entanto, devo dizer que a população se opõe fortemente a todas estas medidas.
De certeza?
As posições do povo americano são muito diferentes das dos dois partidos. A grande maioria da população acredita que devem ser as Nações Unidas e não os Estados Unidos a liderar, para resolver conf litos internacionais.
E opõe-se ao uso da força, excepto em circunstâncias muito limitadas, como se o país for atacado ou estiver em risco disso. As pessoas são a favor da adesão dos Estados Unidos ao Protocolo de Quioto, ao Tribunal Penal Internacional (TPI) ou aos tratados de desarmamento.
Não querem que os recursos que eram dantes utilizados em Saúde, Educação ou Protecção Social vão para o armamento.
Isso são posições que ultrapassam até as fronteiras entre republicanos e democratas. Mas nenhum dos dois partidos responde a estas questões.
Se a maioria da população pensa assim, porque foi Bush reeleito?
Isso não significa muito. Aliás, nem sequer aprendemos nada nestas eleições que já não soubéssemos antes.
Cada candidato conseguiu cerca de 30% dos votos, atendendo ao número total de eleitores. Bush teve um pouco mais de 30% e Kerry um pouco menos de 30 por cento. Só 60% dos eleitores se deram sequer ao trabalho de votar.
E a diferença entre eles foi pequena para um país grande e significa muito pouco. Se esse reduzido grupo de pessoas tivesse votado noutro sentido ou ficasse em casa, Kerry era eleito, sem que o país fosse muito diferente por causa disso.
Realmente?
As pessoas não votaram nas questões de fundo. Quando se vêem as sondagens, só 10% dos eleitores escolheram pelas ideias ou pelas políticas de cada candidato. O resto votou pela imagem.
E quem cria a imagem sabe disso. Bush foi apresentado como um líder forte na guerra ao terrorismo e como alguém com valores. E as pessoas preocupadas com o terrorismo e o que chamam valores optaram por ele. Mas votaram numa imagem, não numa realidade. O mesmo se passou com John Kerry. Foi projectado como um candidato preocupado com a economia ou o sistema de saúde.
Então, as pessoas para quem, de facto, essas são as questões mais importantes votaram nele. Mas é preciso tentar ver as políticas que estão por detrás dessas imagens. Isso só se descobre com práticas, não com palavras.
Uma vitória de Kerry não teria feito diferença no Iraque?
John Kerry não tinha um programa diferente para o Iraque. Isso era uma coisa correcta que Bush dizia. Internamente, Kerry não iria atacar o limitado mas existente sistema de taxação progressiva do código fiscal. As administrações das empresas não estariam muito preocupadas, se ele ganhasse, mas não ficariam a festejar como estão.
E é possível que tivesse uma política menos agressiva internacionalmente.
Há algumas diferenças entre ambos, mas não era sobre isso que estávamos a falar, mas sim por que razão votaram as pessoas. As posições da população não eram representadas por nenhum dos candidatos. As pessoas preocupadas com o terrorismo votaram em Bush. Ele vai protegê-las disso? Não. Ele aumenta a ameaça do terrorismo. Bush e os seus conselheiros sabiam perfeitamente que era provável que a invasão do Iraque .zesse crescer o terrorismo. Mas eles tinham outras prioridades.
Então?
Se todos os iraquianos sabem isso, não há razão para que nós ignoremos tal facto. O Iraque fica exactamente no coração dos recursos energéticos mundiais. Tem imensa energia intocada e barata.
Quem controlar o Iraque terá uma alavanca poderosa para controlar o mundo. Além de todos os lucros que isso representa para as corporações americanas, quem controlar a energia fica com uma inf luência enorme sobre os principais rivais dos EUA, isto é, as economias da Ásia e da Europa. Logo a seguir à II Guerra Mundial se percebeu isso. Quem controlasse o petróleo ficaria com o que o Departamento de Estado chama «uma enorme fonte de poder estratégico». Não se importam se aumenta o terrorismo.
Mas muita gente acreditou nisso…
As pessoas que escolheram Bush a pensar que se defendiam do terrorismo, estavam completamente erradas. Votaram no aumento do terrorismo sem saber. E o mesmo se passa, quando as pessoas dizem que votaram Bush por causa dos seus valores. Mas que valores? Se olharmos para as administrações das empresas, estão eufóricos. Porquê? Porque Bush é contra o aborto? Não, porque vai dar-lhes presentes. Isso é que são os valores.
Enriquece os mais ricos e faz pagar os custos disso aos trabalhadores e também aos nossos filhos e netos. São eles que vão pagar a conta da destruição do ambiente e do aumento do défice. Se olharmos para Kerry, não era assim tão diferente.
Não?
Dizia que ia melhorar a Saúde, mas não defendia o que a maioria da população quer, isto é, um sistema nacional de saúde, semelhante ao que existe nos outros países industrializados. E isto nem sequer era uma opção, porque ninguém apresentava esta proposta.
Na maioria das questões, a população está mais à esquerda do que os dois partidos.
Ou, em termos europeus, mais ao centro, deixando os dois partidos à direita. Apenas votam em imagens que são falsas ou enganadoras.
A reeleição de Bush que consequências terá em todo o Médio Oriente? A guerra no Iraque não vai parar tão cedo…
Não é claro. Como disse, os nazis na II Guerra Mundial e até os russos na Europa do Leste resolveram o assunto muito mais facilmente. Isto que se passou no Iraque é invulgar. Possuem tanto poder, a desproporção de meios é tão grande que é difícil acreditar que não funcione. Vejamos Fallujá, que estão outra vez a atacar. Já conseguiram eliminar grande parte da população enquanto bombardeavam a cidade. Os marines atacaram em grande força. É uma incompetência enorme que não tenham sido capazes de conquistar a cidade em poucos dias. Mas como têm uma força enorme nas mãos, talvez acabem por conseguir derrotar a resistência…
E se conseguirem?
Arranjarão para o Iraque uma solução semelhante à que já encontraram para outros, em que são teoricamente independentes.
Na América Central, os países são autorizados a tornar-se independentes, desde que façam o que lhes dizem. Caso contrário, são esmagados. Toda a História americana nos mostra isso. É preciso ser cego, para não ver essa realidade. É o que estão agora a tentar conseguir no Iraque ou, então, não faria sentido ter invadido o país. Se fizer o que lhe dizem, será livre. E tentarão chegar tão longe quanto puderem no resto da região.
No caso de Israel, a escolha é clara. Israel é tão poderoso e os palestinianos tão fracos, que eles partem do princípio de que Israel os esmagará. Os palestinianos não possuem riquezas nem poder. Portanto, não têm direitos, pelos mais elementares princípios da força das nações.
Se Arafat vier a ser substituído, qual pode ser o papel de Bush?
É interessante porque, quando Bush fez o seu discurso visionário a anunciar que ia levar a democracia ao Médio Oriente, Yasser Arafat era já um líder democraticamente eleito, ao contrário do que sucede em quase todo o Médio Oriente. Foi imediatamente posto de lado. Decidiram que não o queriam, porque não fazia o que lhe diziam. É por isso que estavam encantados com Portugal e Espanha, mas não com a França e a Alemanha. No caso de Portugal, não conheço os números, mas sei que a maioria da população era contra a guerra. Em Espanha o Governo deu o seu apoio contra a esmagadora vontade da população. A certa altura só 2% se mostravam favoráveis à guerra.
Em França e na Alemanha agiram de acordo com a vontade das pessoas. Por isso, em relação a Arafat, se arranjarem alguém que permita a Israel ficar com a maioria dos territórios ocupados, muito bem. Será pura democracia.