Yangon foi a nossa porta de entrada em Myanmar. A cidade marcou o princípio e o fim da jornada, já que a rota que traçámos começava e terminava no mesmo sítio. Aterrámos no aeroporto internacional mais de 24 horas depois do início da viagem. Tínhamos saído da Portela ainda de madrugada, cerca das 6h00 da manhã, fizemos escala em Amesterdão, Cantão, Singapura e chegámos ao destino final sem ter exata noção do que íamos encontrar pela frente. Posso apenas dizer que a maratona de voos valeu a pena e que a estadia no país nos marcou para a vida. Foi uma viagem sem paralelo e que só pode e merece ser contada com o distanciamento necessário de quem já consegue olhar para trás e admirar o conjunto das histórias, dos testemunhos e das diferenças que nos inquietaram e enriqueceram.
Fomos surpreendidos pelo bafo quente e húmido assim que pusemos o pé fora do avião. Bastaram apenas alguns segundos para que a roupa que trazíamos vestida ficasse completamente colada ao corpo. O clima foi por isso, o primeiro contraste entre cá e lá.
Saímos do terminal de chegadas na expectativa de negociar com os taxistas a viagem mais barata, tanto quanto fosse possível, até ao centro de Yangon. De mangas à cava ou de camisa, todos trajavam saias típicas (longyis) e a maior parte deles fumava tabaco enquanto aguardava a chegada de potenciais clientes.
Acabámos por fechar negócio com Ahong, um motorista com cerca de 40 anos. O homem cobrou apenas 5 mil Kyats pela viagem. Tentámos meter conversa com o taxista mas ele não dominava o inglês. Recorremos à mímica e sons mas o diálogo só foi possível depois de usar um tradutor de conversação. O Bernardo escrevia primeiro as perguntas em inglês no telemóvel e punha o aparelho ao ouvido do homem, que ouvia as questões traduzidas em birmanês e respondia a todas elas com um sorriso rasgado e simpatia impressionante.
O trajeto terminou na Bogyoke Aung San Road, junto ao mercado com o mesmo nome, em plena baixa de Yangon. Batemos num par de portas e atravessámos alguns quarteirões até encontrar a Daddy’s Home, guesthouse onde ficámos hospedados na primeira e segunda noite.
A baixa da cidade é servida por um esquema viário desenhado a régua e esquadro, em que todas as ruas e avenidas correm paralelas e perpendiculares umas às outras. Os passeios, em muito mau estado, são ocupados por bancas e barracas onde vendedores ambulantes negoceiam os mais variados produtos. Os peões são, por isso, muitas vezes obrigados a circular junto à estrada, onde o lixo diário se amontoa e o trânsito frenético e ruidoso segue à tangente num vai e vem de poluição e chinfrim difíceis de suportar.
Instalámo-nos num quarto sem janelas, com 3 camas, televisão e um potente ar condicionado, a pagar 35 dólares por noite (pouco mais de 11 dólares por pessoa). Seguimos para a 19th street, também conhecida por Night Market, uma rua estreita, cheia restaurantes, tasquinhas, vendedores ambulantes de porta a porta e onde as sucessivas esplanadas, cheias de habitantes locais, atravancam o espaço reduzido que sobra para peões e carros. Jantámos no Shwe Mingalar onde bebemos pela primeira vez cerveja Myanmar (1.300 kyats cada garrafa).
Nesse mesmo sítio petiscámos espetadas de caranguejo, galinha com vegetais e peixe grelhado que nos soube pela vida. Observámos atentamente o movimento contínuo de mulheres pedintes, comerciantes e crianças a cantar e a tocar instrumentos de percussão, em busca de uns trocos. Enquanto a comida não chegava, ouvia-se o crepitar do carvão, em brasa nos grelhadores, o tilintar das canecas de cerveja que os empregados traziam e levavam, sem mãos a medir, e a atmosfera de fritos perfumava-se com cheiro a jasmim, flor vendida em fios, usada no cabelo das senhoras e que muitas vezes também funciona como ambientador de restaurantes, casas e carros.
Foi neste clima frenético e abafado que conhecemos o Pyone Mg. O empregado de mesa de 30 anos trabalha no restaurante desde os 20. Dele ficámos amigos em apenas alguns minutos. Não tardou para que o desafiássemos a fazer uma pausa no trabalho e a sentar-se connosco para beber umas quantas cervejas. Ainda tentámos convencer o dono do estaminé mas sem sucesso. Ficou a promessa de que lá voltaríamos na última noite da viagem. E voltámos.
No dia seguinte acordámos por volta das 10h00 e zarpámos em direção à zona oriental de Yangon, para visitar o Pagode Botataung. Começámos por comprar um maço de Red Ruby por 700 kyats e percorremos de seguida as principais artérias e transversais da baixa da urbe. Nas ruas mais estreias vislumbram-se em perspetiva os emaranhados cabos elétricos e as incontáveis antenas parabólicas e toldos azuis que sobressaem de minúsculas varandas, quase todas gradeadas ao gosto de cada morador, e que muitas vezes são usadas para pôr roupa a secar. As fachadas envelhecidas, cobertas pela fuligem da poluição e carcomidas pela humidade escondem ornamentos e pormenores coloniais que ainda resistem do período sob domínio britânico. Das canalizações saltam autênticos arbustos, alguns deles tão desenvolvidos que mais parecem árvores e que fazem as delícias dos corvos e pombos, as aves mais fáceis de encontrar e ouvir no meio do reboliço de Yangon.
A condução faz-se pela direita mas muitos carros conservam o lugar do condutor à inglesa (também à direita). Explicaram-nos que a maior parte dos automóveis importados são usados e por esse motivo, mais baratos. Apesar do preço em conta, é evidente que as ultrapassagens pela esquerda com o condutor à direita acarretam perigo real e acrescido. Talvez por isso buzinem por tudo e por nada.
Pelo caminho vimos também muitas bancas de jornais. Cheias de jornais. Sabíamos que a imprensa privada do país vive uma fase efervescente, já que no ano passado o Governo pôs fim ao monopólio estatal, ao emitir 16 novas licenças para publicações diárias. A sede de esclarecimento pode sentir-se nas ruas, junto aos vendedores de jornais, quase sempre rodeados por dezenas de leitores que passam em revista as notícias do dia, de uma ponta à outra.
Nos passeios, nas estradas, no chão, eram visíveis inúmeras e pequenas manchas avermelhadas, umas secas, outras frescas. Os dentes da maior parte dos homens e também de algumas mulheres acusam o mesmo tom carregado, negro, avermelhado, consequência do consumo prolongado de uma espécie de pastilha artesanal que os birmaneses experimentam ainda em idades precoces e que acaba por se tornar num vício para a vida. A pastilha revestida com folha de betel, inclui uma pitada de limão, sementes de betel, anis, tabaco e é feita e vendida em cada esquina. Masca-se entre a bochecha e os molares e o suco que daí resulta é para cuspir imediatamente. Por 100 kyats compram-se 3 pastilhas. Nem mesmo os monges budistas escapam ao vício nacional.
Não é o caso de Ashim, o monge que conhecemos em Shwedagon, o pagode mais imponente do país. Mede 100 metros de altura e os tijolos de que é feito revestem-se de camadas e camadas de folhas de ouro. A construção remonta ao ano 600 a.C. e o lugar é sagrado há já mais de 2 mil anos. Nele estão depositadas relíquias de 4 budas, incluindo 8 cabelos de Gautama. É proibido entrar no local de sapatos calçados ou meias vestidas, bem como com ombros ou coxas à vista.
Entrámos descalços e com apenas um guarda-chuva. Chovia a cântaros, quando entrámos no recinto. As gotas grossas, pesadas, de água tépida, quebravam um jejum de 4 meses sem precipitação. A temporada de monções acabara de começar.
Na esperança de que a chuvada acalmasse, abrigámo-nos num dos pagodes secundários. O tempo parecia estar furioso, com relâmpagos e trovões a darem o ar da sua graça. Foi nessa altura que o Monge Ashim nos chamou para conversar um pouco. Falámos durante horas, enquanto o céu nos brindava com um espetáculo de faíscas incandescentes.
Ashim perguntou-nos de onde vínhamos, interessou-se em saber o que nos tinha levado até Myanmar e sorriu quando percebeu as razões que nos moviam. Ficou admirado por estarmos a par da história do país, da ditadura militar vigente nos últimos 50 anos e dos primeiros indícios democráticos. Quis saber o que ele pensava a respeito das eleições do próximo ano, que podem ser as primeiras livres no território mas Ashim não acredita no sucesso do sufrágio e prevê que seja uma fraude eleitoral. Pelo que pude perceber, não é o único descrente em relação ao regime ou transição democrática.
A noite terminou num restaurante 100% birmanês (Hauk Tung) onde fomos regalados com um pequeno banquete a um preço de saldo. Na mesa ao lado jantava sozinho um homem com ar estrangeiro. Moore (não nos lembramos do verdadeiro nome, por isso criamos um fictício) é inglês mas tem ascendência birmanesa pelo lado materno. Decidiu voltar ao país em missão pela ONU, já que integra o departamento de combate ao narcotráfico. Foi ele que nos aconselhou sobre os petiscos a provar e locais a visitar. Acabámos por voltar a encontrá-lo no dia seguinte, no aeroporto de Yangon, antes de embarcarmos num avião a hélices da Air Bagan, com destino a Mandalay.