Na Índia, o índice de corrupção é encabeçado pelas autoridades policiais, segundo estudos levados a cabo pela ONG Transparency International. Consigo recordar-me igualmente dos romances (ficcionais ou não) que li sobre este país, em que a corrupção constituí o enredo e a polícia corrupta desempenha o papel de vilão. Por vezes, entender a corrupção é fácil – é um modo de sobrevivência. Por esta simples razão, meramente pessoal e que pouco deve importar a quem nunca cá veio, os polícias indianos sempre me intrigaram e interessaram.
Não o conheci na rua ou por mero acaso. Dirigi-me propositadamente à esquadra policial mais próxima e pedi para falar com o inspetor que ocupasse o cargo mais elevado. Sou jornalista e gostava de lhe colocar algumas perguntas acerca do seu trabalho, acrescentei ainda. Os três polícias entreolharam-se, examinaram-me de soslaio e, obviamente desconfiados, pediram um documento que comprovasse o que estava a afirmar. Uma vontade de me rir descontrolada e um nervoso miudinho a percorrer-me o corpo tomaram conta de mim, enquanto pensava na vergonha de ser apanhada. E justifiquei-me dizendo, sem na realidade me dar conta da falta de lógica no que ia proferir, que o deixara no quarto mas que poderia mostrar o passaporte. Eu estava a mentir descaradamente mas de que outra forma conseguiria fazer uma série de perguntas estúpidas a um polícia no seu horário de trabalho e, ainda, tirar fotografias com ele, apenas para meu bel-prazer? Tão-pouco sou jornalista como nunca deixo os meus documentos de identificação no quarto, nunca sei quando vou precisar deles. Preferi arriscar. E funcionou porque dei por mim a entrar na porta da esquadra, que vista de fora mais se assemelha a uma vivenda familiar, onde à minha direita tinha uma cela – suja, exígua, escura e duvidosa – e à minha esquerda a sala do inspetor-chefe.
Deparei-me com um senhor sério, circunspecto e pouco sorridente, sentado atrás de uma secretária de madeira, que afirmou de imediato ter apenas cinco minutos disponíveis. A cadeira onde se encontrava sentado envergava uma toalha de praia às riscas verde e branca, tal qual os carros dos portugueses em dias de praia. O bigode farfalhudo e bem aparado fez-me rir. Qual é o polícia que não usa bigode? O meu tio era polícia e usava.
Entrei na sala e sentei-me na feia cadeira de plástico verde do outro lado da mesa. Estendi-lhe a mão e apresentei-me. Já alguém lhe tinha adiantado que eu era portuguesa e, sem mais delongas, começa a falar de futebol, do Luís Figo e do Pauleta. O futebol ultrapassa toda a minha capacidade de compreensão, não consigo entender como se pode correr atrás de uma bola e ainda ganhar rios de dinheiro; assim, a minha perceção do futebol, por opção, é nula. Com um sorriso amarelo fui acenando pouco convictamente a tudo o que dizia e interiormente agradeci por, pelo menos, não estar a falar do Cristiano Ronaldo. Desinteressada do que ele tão concentrado me tentava ensinar acerca do futebol português, comecei a olhar à minha volta. As paredes caiadas de branco, frias e neutras, ostentavam o seu certificado de apreciação, uma réplica da famosa fotografia de Mahatma Gandhi sentado a meditar e um mapa a preto e branco de Fort Cochin. A mesa exibia um aglomerado de papéis, um telefone bege velho, um jarro de flores falsas, um postal rosa fluorescente emoldurado com algumas regras de um qualquer código de conduta indiano, a lanterna e o chapéu da farda e, por fim, uma pequena campainha semelhante às que se vê nos filmes na mesa da receção dos hotéis. No entanto, esta era vermelha e de plástico e pensei que não funcionasse e servisse apenas o propósito de pisa-papéis. Fiquei demasiado curiosa e toquei nela. O polícia deu um salto, como se houvesse despertado de rompante para o que o envolvia, interrompeu o que tão afincadamente explicava e, muito sério, pediu-me que não voltasse a repetir. Ao mesmo tempo, um polícia solícito vindo sabe-se lá de onde estacou na porta à espera de instruções. E compreendi o uso dado àquela campainha. Pedi desculpa e aproveitei a deixa para começar o que ali tinha ido fazer.
P.M. Baiju, o seu nome exposto no crachá preto do uniforme. Nasceu a 18 de Maio de 1975 e tem trinta e cinco anos. Espera, pensei entusiasmada, o ano de nascimento bate certo com a idade. É o primeiro indiano que entrevisto para estes retratos que acerta. É muçulmano, casado e tem um filho de quatro anos.
Quis saber porque decidiu ser polícia. Para manter a lei e a ordem pública e ainda aplicar a pena máxima aos criminosos. Resposta pronta e rápida de quem tem a lição bem estudada. Não deves ser para brincadeiras, pensei. Mas não, nestes seis anos de autoridade, nunca matou ninguém nem usou a arma, a não ser nos treinos. Oh não acredito, magiquei interiormente, estamos na Índia e não nas Caraíbas.
Para nós, portugueses, não é de bom tom perguntar o ordenado a alguém que mal conhecemos; na Índia, evidentemente, o conceito de falta de educação está bem longe do nosso e por isso não me contive em perguntar-lhe quanto recebia por mês. Aproximadamente 17 mil rupias, retorquiu. Fiz rapidamente as contas na pequena máquina de calcular que trago na carteira e fiquei espantada. Ele recebe, nada mais, nada menos, do que 290 euros para trabalhar dez horas diariamente. Há muita corrupção na polícia indiana, perguntei precipitadamente. Ele olhou espantado para mim. Que pergunta estúpida, eu sei. Fazer esta pergunta a um polícia indiano é o mesmo que perguntar a um mentiroso se está a mentir e ainda esperar uma resposta afirmativa. Porque era isso que eu esperava. Um leve aceno de cabeça vertical para eu, finalmente, poder comprovar o que tanto tinha lido a este respeito. Mas desiludi-me. Acenou a cabeça, sim – mas horizontalmente – enquanto proferia muito seguro de si “no, no, no”. E acrescentou ainda que a Índia é um país muito seguro. Sim, depende do ponto de vista.
Decidi alterar o rumo da conversa, que por si (não) me tinha dado o que eu queria ouvir e questionei-o sobre cinema. Não fiquei espantada quando me disse gostar imenso dos filmes de Bollywood. Qual é o indiano que não gosta daquela cantoria exagerada e das danças exóticas e bem coreografadas? Mas do que ele gosta mesmo, e esperou alguns segundos para manter a minha atenção, é do Arnold Schwarzenegger. Meu deus, que vontade de rir incontrolável. Nem queria acreditar que ele, mais do que Bollywood, adorava mesmo era o Schwarzenegger.
Pareceu-me que já há muito haviam passado os cinco minutos que me tinham sido concedidos e achei por bem terminar por ali, não sem antes lhe fazer a questão final da praxe. De uma forma muito solene, conferindo-lhe um ar cómico, ergueu o dedo indicador e elevou a voz para afirmar somente e apenas “I’m happy”.
Quando me estava a preparar para vir embora, todo ele se transformou. Sorriu, despiu o papel de autoridade e, inesperadamente, solicitou o meu número de telemóvel e convidou-me para ir jantar a sua casa nesse dia.
Deixei a esquadra da mesma forma como cheguei: de mãos a abanar sem ter conseguido presenciar sequer um resquício da mais pequena corrupção. Tal como já seria de esperar. Permitam-me voltar atrás e corrigir. Não deixei a esquadra da mesma forma como cheguei. Quando já me tinha afastado uns metros, um jipe apita, para ao meu lado e o Baiju pergunta-me para onde vou e prontifica-se a dar-me boleia. No final de contas, a corrupta fui eu: menti para tentar conseguir o que queria. E nem resultou.
Helena Pimentel
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