Há dias em que Sandro Guerreiro não tem tempo para dormir. Começa no supermercado às 11h30 e deixa o serviço pelas 21h30, para depois entrar no hotel à meia-noite e completar uma segunda jornada de trabalho até às oito da manhã.
Não ter tempo para dormir é força de expressão, na perspetiva deste algarvio de 47 anos, natural de Tavira. O Minipreço, onde é subgerente, fica em Olhão e o hotel, na Manta Rota, local de residência. As viagens pela Estrada Nacional 125 demoram 40 minutos, mas ainda lhe sobram uns pozinhos na ampulheta das 24 horas diárias para descansar. Depois de jantar, em casa, tem hora e meia até se apresentar no Praia da Lota Resort, onde é rececionista. Após sair do hotel, faltam três horas e meia para voltar ao trabalho no supermercado. Escusado será dizer que dorme em todos os “intervalos”, aproveitando, também, as preciosas duas horas de almoço.
“Descobri um centro comercial próximo, com um parque de estacionamento pouco iluminado, e vou para lá dormir no carro”, conta, sobre o seu mais recente improviso para enganar o sono. Está habituado a tirar o máximo benefício destas pausas de curta duração. Afinal, desde 2001 que Sandro se desdobra nestes dois trabalhos, na certeza de ter dois salários e contas pagas ao fim do mês. “Ninguém tem dois empregos porque quer. Tem porque precisa deles para não viver mal”, salienta.
Precariedade e custos da habitação
Em 2023, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), o número de trabalhadores em Portugal com dois ou mais empregos chegou a 251 mil. Um novo máximo anual, pelo menos desde 2011, ano a partir do qual o Inquérito ao Emprego adotou sempre a mesma metodologia, permitindo a comparação direta – no caso dos empregados domésticos, por exemplo, são contabilizados “tantos empregos quantas as casas onde trabalham”. E a tendência parece apontar para este número continuar a crescer, uma vez que, no primeiro trimestre de 2024, a fasquia já ultrapassou as 262 mil pessoas com mais do que um emprego.
De 2022 para 2023, mais 16 200 trabalhadores (um aumento de 7%) viram-se na inevitabilidade de encontrar uma segunda fonte de rendimento. O impacto da inflação, a subida sucessiva das taxas de juros e os salários baixos compõem a trilogia explosiva de muitas famílias.
“É surpreendente haver este aumento. Seria de esperar que o número de pessoas até diminuísse, já que as empresas estão a oferecer postos de trabalho”, diz Pedro Martins, professor da Nova SBE e ex-secretário de Estado do Emprego. Mas a realidade é, como se vê, bem diferente.

Inês Santos, 37 anos
+ Administrativa
+ Massagista
Três operações ao joelho obrigaram-na a submeter-se a muitas sessões de fisioterapia. Tantas que acabou por ganhar o “bichinho” das reabilitações físicas. Tirou formações e, em 2018, começou a estagiar em clubes de futebol, depois saltou para clínicas e hoje, aos 37 anos, dá massagens por conta própria – ao sábado numa esteticista e, durante a semana, no horário de almoço, no local de trabalho principal. Das 9h às 18h, é administrativa na Adecco e não esconde a alegria por, finalmente, poder viver com “um certo desafogo financeiro”.
Os estudos, tanto “qualitativos como quantitativos”, mostram “uma relação entre precariedade laboral e duplo emprego”, nota Renato do Carmo, sociólogo e investigador do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa (IUL). O também coautor do livro O Mundo do Trabalho a partir de Baixo – Retratos e Percursos (Editora Mundos Sociais, CIES, Iscte – IUL) sustenta que os “salários não aumentaram muito e o custo de vida está demasiado alto”. Muitos trabalhadores que até “tinham uma remuneração razoável”, concretiza, tiveram de socorrer-se de outro emprego devido ao aumento dos “custos da habitação”.
Por outro lado, nas entrevistas que fez para o livro, Renato do Carmo verificou uma “estratégia” para fazer face à insegurança. “Quem tem contrato a prazo ou a termo certo recorre à possibilidade de ter mais um emprego no cenário de perder um deles.” É uma forma de prevenir o futuro, uma salvaguarda “caso se fique sem um deles, e cair na pobreza”. Toda esta incerteza laboral, observa, agravou-se muito com a pandemia. “Muitas pessoas perderam o trabalho e ficaram sem rendimento de um dia para o outro.”
56 horas semanais
Ter duas atividades não é novidade no nosso país, como o exemplo de Sandro Guerreiro o demonstra. Há 23 anos que passou a conjugar um segundo emprego no hotel, duas noites por semana (e outras mais em períodos de férias de colegas), com o do supermercado durante o dia, no qual tem duas folgas semanais rotativas. Ao início, recém-casado e “com a hipoteca da casa às costas”, foi esta a solução encontrada para poder ter filhos. Desde que se divorciou, já passou uma década, e tendo ficado com os dois filhos menores a seu cargo (hoje, com 24 anos, o mais velho já trabalha), ainda mais importante se tornou preservar a situação de duplo emprego.
“Sobrar nunca sobra, mas habituamo-nos a que nunca falte dinheiro ao fim do mês”, confessa o algarvio, que todos os meses leva para casa cerca de €1 200 líquidos. “Sempre com um sorriso na cara”, como nos relatam colegas de trabalho, orgulha-se de ter conseguido juntar o suficiente para pintar a casa, apontando como “maior extravagância” uma ida com os filhos a Lisboa, para assistir à convenção de cultura pop Comic Con. Apesar de nunca ter férias de verdade, na sua cabeça estamos perante outra força de expressão. “Não consigo tirar férias dos dois trabalhos ao mesmo tempo, mas, mesmo que conseguisse, não ia querer. Assim, tiro à vez e é quase como se estivesse de férias durante dois meses”, raciocina, à gargalhada.
Numa semana normal, acaba por completar 56 horas de trabalho, 40 no supermercado, a tempo inteiro, mais 16 no hotel, a tempo parcial. No segundo emprego, posiciona-se um pouco acima da média nacional, que em 2023 se fixou nas 13 horas por semana, segundo o INE. Quer isto dizer que a segunda atividade se caracteriza, regra geral, por um emprego em regime de part-time.

Sandro Guerreiro, 47 anos
+ Subgerente de supermercado
+ Rececionista de hotel
A escala semanal deste algarvio de Tavira é rotativa, na medida em que trabalha cinco dias por semana num supermercado do Minipreço, em Olhão, incluindo sábados e domingos. Uma vez que está sempre na receção do Praia da Lota Resort, em Manta Rota, nas madrugadas de sexta e sábado, há dias em que consegue ter folgas completas e outros em que trabalha sem parar. Anda nesta vida desde 2001 e não pensa parar tão cedo, porque sabe que se sustenta com €1 200 líquidos por mês. “É chapa ganha, chapa gasta. Não sobra, mas também não falta”, salienta.
Nas palavras do sociólogo Renato do Carmo, o duplo emprego, sendo um fenómeno que “sempre marcou” o mercado de trabalho, tem agora “novas roupagens”, mas mantém a mesma finalidade de sempre: fazer face a despesas. “Se antes se trabalhava em fábricas e no setor agrícola ao mesmo tempo, agora é mais na área dos serviços”, indica, suportado nos registos do INE (ver infografia). E em momentos de crise, já se sabe, este “recurso aumenta”.
Bernardo Peixoto, de 30 anos, é disso exemplo. Durante os confinamentos ditados pela pandemia ficou sem trabalho. Enviou currículos “para todo o lado”, lembra, incluindo para cadeias de supermercados, mas não conseguiu nada. Teve de recorrer aos pais.
Bernardo define-se como “contador de histórias reais” e “natural dos bastidores”. Em televisão, teatro, espetáculos e eventos, pode estar na pele de assistente de produção – fez parte da equipa de programas como Portugal Tem Talento e Vale Tudo – ou de entrevistador ou de apresentador, como nas “conferências” para a Fundação Gulbenkian, a fazer Comunicação de Ciência. Fez formação na área do teatro, um curso de Jornalismo e Comunicação Audiovisual e é mestre em Engenharia e Gestão Industrial. A sua lufa-lufa de eventos e apresentações esfumou-se com a chegada da Covid-19. “Para comprar uma cebola tinha de pedir aos meus pais”, ilustra, a rir. A estabilidade financeira haveria de chegar no ano passado, altura em que começou a dar aulas de Matemática.
Os mais qualificados
A maioria dos trabalhadores que acumulava dois empregos, em 2023, tinha formação superior (141 900), tal como Bernardo, seguindo-se os que têm o Ensino Secundário (55 800) e o Ensino Básico (53 300).
Estes números não surpreendem o economista Pedro Martins. “É a ilustração do fenómeno de o mercado de trabalho ter dificuldade em absorver os mais qualificados.” Não conseguem encontrar empregos ajustados à sua formação e o custo de vida está a “subir mais” do que as ofertas salariais.
O ex-secretário de Estado chama a atenção para um problema estrutural de falta de ligação entre o Ensino Superior e o mercado de trabalho. “Os cursos que têm mais vagas não são aqueles que as empresas mais procuram. É preciso ajustar a oferta e a procura.”
Maria José Chambel, pró-reitora da Universidade de Lisboa e professora de Psicologia do Trabalho e das Organizações, põe a tónica no investimento que as famílias fizeram para terem os filhos a estudar na universidade, o que, depois, não é compensado com a atividade profissional. “Mesmo aqueles que encontram trabalho têm um salário relativamente baixo, e a alternativa é procurar um segundo emprego.”
Hoje, Bernardo Peixoto divide-se entre a Escola Secundária Rainha Dona Leonor e a Escola Agrícola da Paiã (vertente técnico-profissional), ambas em Lisboa, e os trabalhos que vai arranjando como assistente de produção ou contador de histórias. “Não consigo dizer qual é o primeiro e o segundo emprego. Tenho a sorte de gostar muito de ambas as coisas que faço.”

Juliana Ferreira, 39 anos
+ Lojista
+ Empresária
Ao se ver de baixa médica, por complicações pós-parto, Juliana Ferreira decidiu procurar um rendimento extra. Por mero acaso, quando procurava uma recordação para assinalar o batizado da filha mais nova, apercebeu-se de como os preços estavam acima das suas expectativas e criou um negócio de brindes e de lembranças para ocasiões especiais. Com a pandemia, o marido ficou desempregado, mas o orçamento familiar equilibrou-se à custa das vendas online dos artigos que os dois produzem. Agora, com os dois empregados por conta de outrem, ela há mais de 20 anos numa loja da Zara, o trabalho por conta própria “proporciona algum conforto financeiro”.
Em termos de horário, dar aulas será o primeiro emprego, já que é o que lhe “ocupa mais tempo”. Tem 26 horas letivas (o horário completo de professor são 22 horas) para sete turmas de alunos, mas tem pudor em assumir-se como docente. “Tenho muito respeito pelos professores, sempre tive admiração pela profissão e estou a contribuir para aquilo a que mais dou valor, que é a Educação. Mas prefiro dizer que estou como professor.”
O salário como professor não chega para a sua “independência”. “Dos €1 700 que ganho nas duas escolas, mais de metade é para pagar a renda” da casa (vive sozinho). “Só este trabalho não dava para viver, o custo de vida em Lisboa é caro.” Por isso, acumula dois empregos, mas “trabalharia menos horas se pudesse”. Nos próximos meses, tem um segundo trabalho já garantido: a bordo de um cruzeiro no Douro, vai contar “as histórias por detrás de alguns produtos locais, enquanto os turistas os provam”.
Bernardo trabalha desde os 17 anos e tenta seguir sempre a máxima transmitida pela mãe: “Comer bem, dormir bem e fazer tudo com amor.” Fala com orgulho de todos os trabalhos que já teve, como servir às mesas, lavar copos numa discoteca ou vender e “apregoar” numa feira de artesanato, sublinha, com humor. “Gostei de todos e aprendi com todos, adoro o contacto próximo com as pessoas.”
Por vezes, sente-se cansado, claro, são muitas horas de concentração e de deslocações que tenta compensar com o que lhe dá mais prazer, “ir ao teatro e estar à mesa a comer e a ouvir histórias”.
Impacto na saúde
A Grande Lisboa é a segunda região do País com mais pessoas que têm dois ou mais trabalhos – cerca de 62 mil (24,9% do total, no final de 2023). No Norte, ascendem a 79 mil – ou 31,5%. Para a bracarense Juliana Ferreira, de 39 anos, a necessidade aguçou o engenho. Ao procurar uma lembrança para o batizado da segunda filha, deparou com “preços muito caros” e decidiu meter mãos à obra. Sem nada saber sobre o ofício das molduras, caixas ou canetas de bambu, abriu uma empresa de presentes para acontecimentos ou dias especiais, que ela própria produz em casa e vende online.
Na época, Juliana encontrava-se de baixa médica, devido a complicações pós-parto, e logo chegou a pandemia, que empurrou o marido para o desemprego. Com um rombo no orçamento, ela aprenderia em vídeos do YouTube a fazer os presentes personalizados, em MDF (um derivado da madeira), enquanto ele estudava como criar sites, até conseguir desenhar e operacionalizar, no ano passado, o julianaferreirastore.com. As encomendas nunca pararam de crescer – primeiro, destinadas a amigos e a pessoas próximas; agora, com selos que já chegam a países como a Austrália, o Japão e os Estados Unidos da América.

Bernardo Peixoto, 30 anos
+ Professor
+ Produtor de eventos / comunicador de Ciência
Já serviu à mesa, lavou loiça e vendeu numa feira de artesanato, mas a pandemia deixou-o no desemprego e a ter de pedir dinheiro aos pais até para comprar uma cebola. Deu a volta. Aos 30 anos, está como professor de Matemática, como gosta de dizer, mas o que ganha, na soma de duas escolas, é desviado em mais de 50% para a renda da casa, em Lisboa. Completa o orçamento com trabalhos como assistente de produção ou comunicador de Ciência. A próxima atividade secundária será a bordo de um cruzeiro no Douro, a falar de produtos locais enquanto os turistas os saboreiam.
“Em 2024, nota-se uma procura muito maior por artigos personalizados, principalmente das lembranças para comunhões e batizados”, faz saber esta trabalhadora de uma das lojas da Zara, em Braga, já lá vão 22 anos. “Felizmente, voltei ao trabalho e o meu marido também já arranjou emprego, que conjugamos com o negócio por conta própria. Aproveitamos todas as horas disponíveis e não temos folgas, mas vivemos agora com um conforto que não tínhamos”, afirma, já com o aumento da prestação da casa “para o dobro” devidamente ponderado e com uma semana de férias em Espanha paga, o que seria impensável até ao ano passado.
A certa altura do processo, Juliana e o marido sentiram a obrigação de abrandar. Chegavam a prolongar o horário do segundo emprego até às três da manhã – ora a responder a emails de clientes ora a fazer inscrições a laser nos produtos personalizados –, mas não demoraram a perceber que seria “abusar da sorte”, quando despertam pelas 7h45, para levar as filhas à escola e as encomendas aos correios, antes de iniciarem a primeira jornada laboral do dia. Agora, à exceção dos dias anteriores ao Natal, os de maior azáfama, a hora-limite para o descanso é a uma da madrugada.
A ideia de não ter tempo para nada, de estar sempre a trabalhar e em ritmo de aceleração gera angústia, frustração e ansiedade. O impacto na saúde “é brutal”, salienta Jaime Ferreira da Silva, psicólogo e presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações da Ordem dos Psicólogos. “As pessoas têm de se desdobrar em mais horas de trabalho e em deslocações, por vezes demoradas.”
Os salários não aumentaram muito e o custo de vida está demasiado alto, sobretudo a habitação
Renato do Carmo Sociólogo e investigador do Iscte
Os danos colaterais são o défice de sono e, consequentemente, o “aumento da probabilidade de acidentes de trabalho”. A atenção concentrada e o raciocínio tendem a reduzir-se, quando se está cansado – estudos científicos alertam para uma correlação entre a falta de sono e o aparecimento de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer. Há uma “menor qualidade na tomada de decisões”, sublinha, e menos fluidez expressiva.
Além disso, pessoas cansadas “têm menos resiliência”, são mais impetuosas. O psicólogo aconselha que a opção pelo duplo emprego deve ser “temporária”, não devendo ultrapassar, “no máximo”, 12 meses. Trabalhar e descansar nos intervalos implica menos relações sociais. “Há um empobrecimento da vida”, que passa a estar muito circunscrita ao trabalho, faltando os “momentos de lazer” que geram prazer, alega Jaime Ferreira da Silva.
Ana Isabel Couto, do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, acrescenta que a “erosão do tempo passado em família” tem consequências negativas no bem-estar pessoal.
Há vida para lá do trabalho
A necessidade dita a procura por um segundo trabalho. “Ninguém quer estar longe dos filhos”, refere Maria José Chambel, da Universidade de Lisboa e docente de Psicologia do Trabalho e das Organizações. “Um casal que tenha dois ordenados baixos”, exemplifica, “tem de suportar os custos de habitação e de alimentação” e, se tiver filhos, “são mais os custos educativos”. Muitas pessoas não estão a aguentar “este esforço”. Mesmo quem tem um “chamado salário médio de €1 200 por mês” não consegue cumprir com todas as “suas obrigações”.
Numa altura em que se fala tanto na promoção da saúde mental dos trabalhadores e em novos modelos de trabalho, como a semana dos quatro dias, parece contraditório haver uma subida do duplo emprego. “É, de facto, um paradoxo. Já existe essa tendência para reduzir o número de horas de trabalho, por forma a conciliar a vida pessoal e familiar, tendo mais tempo para dedicar a outras atividades”, diz a professora, mas as condições de vida “são desiguais”.
Nos países nórdicos, precisa, é “possível optar por um horário de trabalho de 30 horas semanais, reduzindo o salário proporcionalmente”, porque “conseguem” viver com esse ordenado. Em Portugal, os trabalhadores “dificilmente conseguem sobreviver com um horário de 35 ou de 40 horas semanais e ainda vão à procura de um segundo emprego”.
Inês Santos, de 37 anos, mergulhou de cabeça nessa realidade, em 2018, não só porque precisava de ajudar a mãe nas contas da casa mas também porque ganhara o “bichinho” da fisioterapia, nas reabilitações a que se submetera, após três operações ao joelho. Depois de algumas formações, estreou-se como massagista nas camadas jovens de dois clubes de futebol da zona de Lisboa, o Oriental e o Sacavenense, das 18h às 23h, a que somava os jogos ao fim de semana. À época, acumulava com o trabalho numa empresa de aluguer de automóveis, das 8h às 17h. Era demais.

“O resto do tempo era para descansar. Quando saía à noite, não era a mesma coisa. Já ia cansada, não chegava a desfrutar, mas o pior é que no dia seguinte estava ainda mais cansada”, desabafa a lisboeta, arrependida de ter descurado, por exemplo, as consultas de rotina ou os cuidados com a saúde mental, que aprendeu a valorizar.
Foi só nos últimos dois anos que Inês viu a vida profissional estabilizar. Desde que se tornou administrativa na Adecco, empresa de recursos humanos, diz ter um ordenado que lhe cobre as despesas mensais, incluindo a subida dos juros do crédito à habitação. Uma tia, com quem vive agora, também dá um precioso contributo na gestão orçamental, acrescenta.
Como extra, juntou o útil ao agradável: dá massagens particulares, sobretudo para aliviar dores, nas instalações da Adecco, durante a hora e meia de almoço. Diga-se que o músculo esternocleidomastóideo, celebrizado por Vasco Santana em A Canção de Lisboa, é um dos mais requisitados, uma vez que está na origem dos não menos famosos torcicolos, explica Inês.
“Esse dinheiro dá-me um certo desafogo financeiro, por exemplo para levar a minha cadela Pinscher ao veterinário. Quem tem animais sabe que nunca fica por menos de €80 ou de €90”, partilha.
O impacto na saúde é brutal. Aumenta a probabilidade de acidentes de trabalho e há uma menor qualidade na tomada de decisões
Jaime Ferreira da Silva Psicólogo
Ao sábado, já há quatro anos que Inês dá massagens numa esteticista, mas praticamente deixou de fazer domicílios. Todos os rendimentos enquanto técnica auxiliar de fisioterapia são agora canalizados para poupanças, até porque a vida não pode ser só trabalho.
A primeira viagem ao estrangeiro, no caso à ilha do Sal, em Cabo Verde, é muito recente e está ainda bem presente na memória, mas a próxima também já está no pensamento. “Viajar faz muito pela realização pessoal, a começar logo pelo facto de a conseguirmos pagar a pronto”, atira. Comprar um carro elétrico, para substituir um a gasóleo com 17 anos, do qual já saldou a totalidade do crédito bancário, é outro plano na mente de Inês Santos.
Sobretudo para sobreviver, mas também para aproveitar o que a vida tem de bom, eis duas razões que justificam o aumento do duplo emprego num País de baixos salários.