Os cartazes estão espalhados pelo País. A AD diz que “Portugal não pode parar” e o PS garante que “o futuro é já”. Mas para onde irá o País se Luís Montenegro voltar a ser eleito primeiro-ministro? E o que nos reservará um futuro em que Pedro Nuno Santos chegue ao poder? Uma das formas de tentar percebê-lo é lendo os programas dos partidos. Enredados nos soundbites da campanha, distraídos pelos momentos quentes dos debates ou pelas gaffes, nem sempre nos apercebemos do que verdadeiramente une e separa os projetos dos partidos que vão a votos.

Nas 277 páginas do Programa Eleitoral da AD há uma parte substancial dedicada ao que PSD e CDS acreditam ser os grandes feitos de 11 meses de governação. Não é por acaso que o documento arranca com um “Mais do que promessas, resultados”. A ideia é a de que só votar na AD permitirá continuar um caminho que serviu para repor rendimentos em várias áreas da administração pública, baixar impostos, mudar as regras da imigração e chegar ao fim com um excedente orçamental de 0,7% do PIB.

Onde a AD vê políticas que resultaram e precisam de continuar, o PS vê “um ano perdido para o País nas políticas económicas e sociais”. O “Novo impulso para Portugal” que o PS promete em 236 páginas vai aos números para mostrar que o que aconteceu desde que Luís Montenegro chegou a São Bento foi, no fundo, uma desaceleração do que os socialistas tinham conseguido nos últimos oito anos. Para o atestar, lembram que em 2024 Portugal cresceu menos do que a média das governações socialistas e houve um abrandamento na subida dos salários.

Divergências nos impostos

O diagnóstico é mesmo onde mais divergem sociais-democratas e socialistas. Mas não é só: se o programa de Montenegro assenta em grande medida numa continuação da descida do IRS e do IRC, Pedro Nuno quer descer o IVA nos alimentos essenciais e na eletricidade, tentando puxar dos galões da descida de impostos que já aconteceu. “O PS promoveu, nos últimos anos, várias descidas de impostos”, escrevem os socialistas, vincando que a descida de 1 500 milhões de euros em IRS anunciada pela AD há um ano “afinal, já estava concretizada em 80% pelo governo do PS”. O programa eleitoral do PS lembra que foi António Costa quem no IRC “eliminou o pagamento especial por conta” e “reduziu taxas para PME” e que foi Pedro Nuno Santos que, em 2024, “com o voto contra do PSD e do CDS”, conseguiu aumentar de 600 para 800 euros a dedução dos encargos com rendas em IRS e duplicar o consumo de energia elétrica sujeito à taxa reduzida do IVA.

Alinhamento nos salários e na Defesa

Se o diagnóstico e a descida dos impostos separam claramente as águas entre AD e PS, une-os o mantra das contas certas e a promessa de subida dos salários mínimo e médio. O alinhamento é total: Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos prometem ambos fazer crescer o salário mínimo até aos 1 100 euros em 2029, ano em que querem que o vencimento médio esteja nos 2 000 euros, mesmo que não seja muito claro o caminho para fazer subir essa média.

Outro ponto importante que une AD e PS é a promessa de aumentar os gastos com a Defesa para os 2% do PIB até ao final da legislatura. Um valor que foi acertado entre Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos, já depois da queda do Governo, para responder à pressão que vem nesta matéria da União Europeia e da NATO. Apesar deste alinhamento, nem um nem outro põe nos respetivos programas as contas sobre esses gastos nem faz refletir essa despesa nos cenários macroeconómicos que apresenta. Um e outro prometem que a despesa será investimento e que, como se lê no programa da AD, será feita “nunca pondo em causa o Estado social”.

O PS desenvolve um pouco mais o tema com as promessas de “apoiar a criação de um cluster de Indústria Naval de Defesa”, de “participar em consórcios europeus de produção de equipamento militar” e de “fomentar a participação em empresas portuguesas de fundos de investimento associados a capitais de risco”. Como é que isso se paga? A AD não diz, o PS é vago, mas promete “pugnar por um reforço do investimento europeu em Defesa que não coloque em causa as políticas de coesão e o Estado social, privilegiando o endividamento comunitário como instrumento financeiro”.

PS não promete reversões

Não é, contudo, só na Defesa que AD e PS se encontram ao centro. Consciente dos altos índices de popularidade da governação de Luís Montenegro em todos os estudos de opinião, Pedro Nuno Santos está apostado em apresentar-se como “a mudança segura”. E é por isso que o programa socialista não apresenta uma única reversão. O PS defendeu que a isenção do IMT e do imposto de selo aos menores de 35 anos na compra de casa ajudou a acelerar a escalada dos preços da habitação, mas nem por isso pretende mexer nessas medidas. Foi muito crítico do IRS Jovem (que acabou por aprovar no Orçamento para 2025, numa versão diferente da que a AD tinha apresentado originalmente), mas agora a única menção que faz a esse programa é a criação de um ano zero que permita “aos jovens que ingressam no mercado de trabalho, no segundo semestre de um determinado ano, beneficiar imediatamente do regime sem perda do 1º ano de isenção”. E quanto às PPP na Saúde, critica os anúncios feitos “sem transparência e sem que estivessem concluídos os respetivos estudos de viabilidade económica, obrigatórios por lei”, mas não diz claramente que não seguirá esse caminho.

E os outros? As promessas dos mais pequenos…

O Chega tardou em apresentar o seu programa. A IL quer um departamento ao estilo Elon Musk e um seguro de saúde público, o BE quer taxar os ricos, a CDU reclama aumentos de 15% nos salários, o Livre quer um novo imposto sucessório e o PAN a criminalização da remoção não consentida do preservativo

André Ventura repete que quer ser primeiro-ministro e “acabar com a bandalheira”, mas já adiou duas vezes a apresentação do programa eleitoral do Chega. A última das quais nesta segunda-feira, o dia em que se soube da morte do Papa Francisco. À data de fecho desta edição, não havia, por isso, nenhum documento que explicasse as medidas que Ventura considera essenciais, nem como pretende combater a corrupção e regular a imigração, duas das suas principais bandeiras eleitorais.

Mas se o Chega tarda em publicar o seu programa eleitoral, todos os outros partidos já divulgaram as suas ideias. Apenas um ano depois das últimas eleições legislativas, as várias forças políticas não mudaram muito os programas que levaram a votos em 2024, mas aproveitaram para os atualizar e para puxar por alguns temas que dizem mais aos seus eleitorados.

A inspiração em Elon Musk

No caso da IL, há uma grande novidade (pelo menos, no formato), que parece ter sido inspirada por Elon Musk e o trabalho que tem feito na Administração Trump e que, diga-se, lhe tem valido duras críticas pela forma cega como tem cortado departamentos essenciais do Estado. Se os liberais sempre quiseram cortar no que acham ser “as gorduras do Estado”, este ano propõem um novo departamento para o fazer: “Uma estrutura única para liderar a transformação digital e a modernização do Estado.”

Além disso, voltam a pedir a privatização da TAP, da CGD, da RTP e da CP. Também querem revolucionar a Segurança Social, com uma transição progressiva para um modelo de pensões assente em três pilares, “repartição, capitalização voluntária e capitalização obrigatória”, e mudar por completo o SNS, criando uma espécie de seguro de saúde público obrigatório, “com liberdade de escolha de prestador e financiamento público”. Embora não usem a expressão “cheque-ensino”, propõem o “financiamento ao aluno, permitindo liberdade de escolha entre ensino público, privado e cooperativo” e “valorizar a carreira docente com base no mérito e na competência, não no tempo de serviço”.

Tetos para rendas e leques salariais

“Taxar os ricos” é uma das bandeiras do BE nestas eleições. “Queremos gerar receitas para financiar os serviços públicos e salários justos, através de impostos justos sobre as empresas digitais e as grandes fortunas. Este imposto aplica-se a fortunas acima dos 3 500 salários mínimos nacionais – cerca de três milhões de euros (deduzidos de dívidas), sendo aplicada uma taxa progressiva entre 1,7% e 3,5%”, lê-se no programa eleitoral, que também propõe a criação de “leques salariais nas grandes empresas para que um administrador não possa ganhar mais num mês do que um trabalhador num ano”.

O BE quer travar a privatização da TAP e os projetos de mineração contestados pelas populações, reduzir a semana de trabalho para quatro dias e aumentar o salário mínimo para os mil euros em 2026. Outra medida emblemática é a criação de um sistema de tetos às rendas, que calcule em cada zona o valor máximo que pode ser cobrado por tipologia.

Licença parental de 210 dias

A grande prioridade da CDU é aumentar salários e pensões, com o salário mínimo nos mil euros já em julho de 2025 (em Espanha está nos 1 184 euros) e um aumento geral dos salários na ordem dos 15%, através do reforço da contratação coletiva e da valorização das carreiras públicas. Os comunistas pedem a redução do horário de trabalho para as sete horas diárias, sem diminuição do salário ou outros direitos e remunerações, e a fixação do direito de todos os trabalhadores ao subsídio de refeição, nunca inferior ao da Função Pública.

Do programa da CDU fazem ainda parte o alargamento da licença de maternidade e paternidade para 210 dias, paga a 100%, o controlo do preço dos bens alimentares essenciais e a fixação do preço da botija do gás em 20 euros e uma atualização extraordinária das reformas, “garantindo já em 2025 um aumento, com efeitos a partir de janeiro, em 5% e um valor mínimo de 70 euros”. Os comunistas querem incentivar a dedicação exclusiva ao SNS, com uma majoração de 50% do salário base, uma rede de creches públicas, refeições escolares gratuitas e “a fixação de valores máximos das rendas em contratos em vigor e novos contratos” na habitação.

Taxar os fundos imobiliários

O Livre também quer ajudar a resolver a crise na habitação, com o “reforço da tributação do património imobiliário que não se destine a habitação permanente ou seja propriedade de fundos e sociedades de investimento imobiliário”. Para criar uma “herança social” de cinco mil euros para todos os jovens aos 18 anos, propõem recuperar o imposto sucessório “para grandes heranças e grandes doações”, sem especificar montantes. E querem criar uma rede pública de residências assistidas e de estruturas residenciais para pessoas idosas.

O partido de Rui Tavares também pretende subir o salário mínimo até aos 1 250 euros em 2029 e “regular as diferenças salariais dentro da mesma entidade, através da definição de um limite máximo para a diferença entre o salário mais baixo e o salário mais alto de cada empresa, organização ou ramo de atividade”. O Livre pede ainda o “aumento progressivo da licença parental para 16 meses”, sem estabelecer um calendário, mas dizendo querer recuperar a ideia da “iniciativa legislativa cidadã que caducou na legislatura e propunha, pelo menos, seis meses de licença parental inicial pagos a 100%”.

Violação como crime público

O PAN não deixou de ser animalista, mas este ano faz da violência doméstica e de género a sua grande bandeira, naquilo a que chamou o “compromisso violeta”. Inês Sousa Real quer tornar a violação sexual um crime público (com a possibilidade de, a pedido da vítima, o caso ser arquivado a qualquer momento), a criminalização do stealthing (remoção não consensual do preservativo), a criação de um plano nacional para combater a violência sexual baseada em imagens e que as seguradoras passem a estar legalmente obrigadas a incluir “o realojamento por violência doméstica no âmbito da cobertura dos seguros da habitação”.

O PAN volta a pedir a criação de um SNS Animal, a redução do IVA dos serviços veterinários para 6%, a criação de passes sociais gratuitos para os transportes públicos e incentivos fiscais para empresas que invistam em tecnologias verdes, transição digital e emprego qualificado. Sousa Real também quer baixas médicas com remuneração a 100% para doentes oncológicos e o fim dos apoios públicos às touradas.

Palavras-chave:

Os ânimos na zona do Rossio, em Lisboa, estiveram exaltados mas acalmaram pelas 18h00 desta sexta-feira, depois de confrontos violentos, envolvendo apoiantes de movimentos de extrema-direita, e passou a um clima de festa, sobretudo com os manifestantes que desceram a Avenida da Liberdade.

Entre os cravos vermelhos e bandeiras Portugal, partidos e movimentos associativos, os participantes erguiam também cartazes em que era possível ler mensagens como “Em cada rosto igualdade”, “A revolução será feminista ou não será”, “As mulheres ciganas também fizeram o 25 de abril “. Outros dirigiam-se ao Governo, com avisos de que “Se o país continuar assim, a Assembleia voltará a ser um ninho de lacraus”.

Mais de uma hora depois de as duas chaimites marcarem o arranque da marcha, os primeiros participantes chegavam ao Rossio, onde a Associação 25 de Abril encerrou o desfile com um discurso de Adelino Costa, que substituiu Vasco Lourenço nessa tarefa. “Os ideais do 25 de Abril estiveram presentes no nosso percurso histórico nos últimos 50 anos e continuam bem vivos na sociedade portuguesa, (…) porém, há muitas ameaças a surgir no nosso horizonte”, alertou, defendendo que “Portugal tem de continuar a ser um país livre, justo, solidário e amante da paz”.

No final, ouviu-se novamente uma das senhas da revolução, a “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, entoada em uníssono uma última vez.

Em dia de luto nacional pela morte do Papa Francisco, milhares de pessoas responderam ao apelo para celebrar nas ruas o 25 de Abril e encheram a Avenida da Liberdade para o tradicional desfile comemorativo da Revolução de 1974, ladeadas por outra multidão que assistiu nas laterais.

Com a avenida cheia desde a zona do Marquês de Pombal até à Praça dos Restauradores, ouviram-se gritos de celebração da liberdade e da democracia.

“Venho desde que me lembro de ser gente. É uma manifestação de amor pela liberdade, pela democracia, num tempo em que isso é cada vez mais necessário, dado o ressurgimento da extrema-direita. A única resposta é afirmar a alternativa pela liberdade, pela democracia”, disse à Lusa um dos manifestantes.

JOSÉ SENA GOULÃO/ LUSA

Entre os cravos vermelhos e bandeiras Portugal, partidos e movimentos associativos, os participantes erguiam também cartazes em que era possível ler mensagens como “Em cada rosto igualdade”, “A revolução será feminista ou não será”, “As mulheres ciganas também fizeram o 25 de abril “.

Outros dirigiam-se ao Governo, com avisos de que “Se o país continuar assim, a Assembleia voltará a ser um ninho de lacraus”.

Mais de uma hora depois de as duas chaimites marcarem o arranque da marcha, os primeiros participantes chegavam ao Rossio, onde a Associação 25 de Abril encerrou o desfile com um discurso de Adelino Costa, que substituiu Vasco Lourenço nessa tarefa. “Os ideais do 25 de Abril estiveram presentes no nosso percurso histórico nos últimos 50 anos e continuam bem vivos na sociedade portuguesa, (…) porém, há muitas ameaças a surgir no nosso horizonte”, alertou, defendendo que “Portugal tem de continuar a ser um país livre, justo, solidário e amante da paz”.

No final, ouviu-se novamente uma das senhas da revolução, a “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, entoada em uníssono uma última vez.

Na primeira metade do século XX, agricultores e pastores tinham no fogo um aliado. Consideravam-no um instrumento fundamental para fertilizar as terras e substituir o trabalho braçal na limpeza do mato, de modo a abrir terreno cultivável para produzir cereais e criar novas pastagens. Havia muitos fogos, mas praticamente nenhum incêndio.

Até que começou a ganhar espaço a ideia de que os camponeses não sabiam o que faziam e que o fogo era inimigo da floresta, a nova coqueluche entre a classe dominante. O fogo foi sendo proibido e os campos agrícolas deram lugar a pinhais e, depois, a eucaliptais. Os incêndios começaram, então, a surgir, cada vez maiores, cada vez mais frequentes, cada vez mais imparáveis. E assim chegámos à triste posição que ocupamos hoje: o país que mais arde (de longe) na Europa.

Florestação de Monsanto A serra era um ermo pedregoso, com pastagens, algum trigo e oliveiras, até ser alvo de uma plantação de larga escala em 1938

Esta relação de causa-consequência – da supressão dos fogos agrícolas e da florestação de Portugal ao advento dos grandes incêndios – é a principal conclusão do projeto FIREUSES, Paisagens de Fogo, divulgado nesta quinta-feira, 24, na conferência Paisagens de Fogo: Uma História Política e Ambiental dos Grandes Incêndios em Portugal, na Biblioteca Nacional, em Lisboa. Além do trabalho de pesquisa documental, o projeto incidiu sobre os casos particulares das serras da Lapa e da Nave, no Norte, e de Monchique, no Sul, como dois exemplos diferentes e paradigmáticos de paisagens de fogo.

“A agricultura ocupava grande parte do território e tinha uma relação muito forte com o fogo, com práticas diversificadas”, explica Miguel Carmo, coordenador do estudo e investigador do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. “É impressionante a quantidade de técnicas com nomes e aplicações diferentes. Algumas são relativamente recentes, desenvolvidas já no século XX, no contexto da expansão do trigo, que alterou significativamente as formas de cultivo. Encontrámos uma agricultura do fogo dinâmica e rica.”

Mas o Estado Novo, baseando-se em ilusões semeadas décadas antes, decidiu que Portugal teria de ser “novamente” coberto por florestas. Nesse país, haveria menos espaço para a agricultura e a pastorícia, e menos ainda para uma agricultura e uma pastorícia em que o fogo desempenhava um papel fundamental. O fogo era amigo da agricultura, mas inimigo da floresta.

Um erro que haveria de ter impactos colossais a partir de finais da década de 1960.

Os “camponeses ignorantes”

A decisão de substituir campos agrícolas por florestas tem por trás uma dimensão económica e estética com origem ainda no século XIX, diz José Ferreira, também investigador do IHC e colaborador do projeto. “Há uma ideia de romantismo, do sublime, de que uma serra coberta de verde é inerentemente mais bonita e saudável, enquanto uma serra desbastada pelo pastoreio e pelo fogo é deprimente e insalubre, além de produzir menos riqueza do que uma floresta. Até a arborização de Monsanto [em 1938] nasceria dessa convicção de que uma serra pedregosa não era suficientemente produtiva nem se parecia com a imagem de paisagem ideal que estava na cabeça de uma elite política, intelectual e científica que, muitas vezes, estudou na Alemanha e vira os Alpes.”

A paisagem, acreditava-se, tinha sido vítima de uma degradação ambiental ao longo dos séculos, causada por camponeses ignorantes. A floresta seria um regresso a um (duvidoso) passado idílico em que as árvores cobriam grande parte do território. Com tanta sapiência, ninguém se lembrou de que o clima português não é o alemão.

A teoria é transposta para o papel num relatório que acompanha a primeira carta de uso do solo, de 1868, com uma mensagem de que havia de se rentabilizar o território (com floresta), instruir os camponeses (tidos como responsáveis pela desflorestação) e desenvolver uma racionalidade científica na gestão do território (errada, como se veria demasiado tarde). Esses conceitos seriam recuperados pelo Estado Novo, para justificar o Plano de Povoamento Florestal, que passava pela plantação de árvores (sobretudo pinheiros) nos baldios a norte do Tejo, terras que passariam a ser geridas, não pela comunidade, mas sim pelos Serviços Florestais, gerando, pelo caminho, uma série de conflitos.

Para proteger essa nova floresta, que primeiro alimentava a indústria da madeira e a partir dos anos 50, o ainda mais lucrativo setor do papel, seria necessário excluir as práticas agrícolas baseadas no fogo. Menosprezar e atacar essas práticas seria contraproducente: ao invés de pequenos fogos controlados para queimar a matéria orgânica, passaríamos a ter incêndios devastadores.

Agora é tarde

A transição da paisagem é muito clara na serra de Monchique, aponta Miguel Carmo. “O eucalipto começa a chegar nos anos 50, com grandes incentivos do Estado e uma indústria da celulose a produzir papel de qualidade, o que gera uma revolução: o eucalipto passa a ser uma alternativa viável ao trigo e ao centeio. Nos anos 60, começa o abandono da população, para se empregar nos hotéis do Algarve e emigrar para França, e a economia agrícola e a sua prática de fogo começam a desaparecer. E em 1966 há um primeiro grande incêndio, que chega a Aljezur. No ano seguinte, o comandante da GNR escreve um relatório que envia ao governador-civil a explicar que os grandes incêndios na região se devem às queimadas de setembro, então legalmente autorizadas, e sugere que passem a ser realizadas num período posterior. No final dos anos 60, o fogo reduziu-se por ação desta transformação.”

O papel do fogo como ferramenta de prevenção de incêndios também se foi perdendo. “Um equívoco ecológico que permaneceu até muito tarde”, descreve o investigador. “Só nos anos 1970 aparecem os primeiros profissionais a apontar que os fogos que excluímos da paisagem estão a voltar na forma de grandes incêndios.”

Quando os Serviços Florestais se aperceberam de que o fogo era importante, já não havia gente para o fazer. O conhecimento perdera-se

Nessa altura, surgem algumas teses no Instituto Superior de Agronomia sobre o fogo como forma de gerir a paisagem, normalmente de investigadores que haviam passado pelos EUA, onde o fogo controlado era estudado desde os anos 50. Mas era tarde demais. Primeiro, porque décadas de demonização dos fogos criaram desconfiança nos silvicultores, que se recusavam a aceitar as teorias americanas. Segundo, porque os “camponeses ignorantes” que sabiam usar o fogo estavam a desaparecer. José Joaquim Moreira da Silva, engenheiro silvicultor que dirigiu o Parque Nacional da Peneda-Gerês (onde fez experiências com fogo controlado) em finais dos anos 70, ainda defendeu inquéritos na população rural para que não desaparecessem esses conhecimentos, mas em vão.

“Quando os serviços se aperceberam de que o fogo, afinal, era importante, já não havia pessoas para o fazer”, diz José Ferreira. “Há quem tente reintroduzir o fogo controlado nos Serviços Florestais, mas isso não se traduz em políticas públicas. Persiste a desconfiança a nível político e administrativo. A ideia do fogo com mão criminosa, aliás, nasce no Estado Novo. Todos os verões ouvimos que o uso do fogo é mau, queimadas são más, e pelo caminho a paisagem foi-se tornando muito mais combustível.”

Nem toda a culpa estrutural pode ser imputada às políticas do Estado Novo, sublinha Miguel Carmo. “Os Serviços Florestais eram uma instituição com uma presença enorme no território, mas a estrutura vai sendo reduzida e, a partir dos anos 80, desmantelada. Hoje, há muito pouca gente para fazer fogo controlado.”

Palavras-chave:

Em junho de 1974, quem abrisse o Diário da República iria deparar-se diretamente com uma nova fase de progresso em Portugal. Por via do decreto nº251/74, de 12 de junho, promulgado pelo Presidente da República, António de Spínola, assumiu-se, pela primeira vez, e sem hesitações, a evidência de que a discriminação baseada no sexo é contrária aos princípios democráticos. Deste modo, o diploma em causa afirmou em tom solene que se impunha dar início à reparação de uma injustiça histórica, começando pelo setor da Justiça, mas com o desejo de que essa reparação se tornasse sistémica.

Decretado por um governo ainda provisório, os novos ventos de Abril determinaram que “o acesso aos cargos judiciários ou do Ministério Público e aos quadros dos funcionários de justiça [fossem] facultados a todos os cidadãos portugueses, independentemente do seu sexo”. Do mesmo modo, se firmou que até ao final do ano de 1977 poderão ser admitidos aos concursos para juiz de direito e para delegados do procurador da República e nomeados interinamente delegados do procurador da República os cidadãos do sexo feminino que não tenham mais de 45 anos de idade”.

Volvidos menos de dois meses sobre o dia inicial, inteiro e limpo, nas palavras eternas de Sophia, foi no setor da Justiça que, simbolicamente, se abriram as primeiras portas para uma consagração do princípio da Igualdade, vertendo-se em letra de lei a possibilidade de acesso das mulheres a poderes soberanos do Estado. Porém, Abril não se fez de uma vez só. Na verdade, nenhuma lei, por si só, muda automaticamente as mentalidades, sobretudo num país atormentado, durante largas décadas, por uma escuridão que levou Jorge de Sena a suplicar pela cor da liberdade.

De facto, enquanto boa parte da Europa se refazia do pós-guerra, progredindo na sua legislação e na sua visão do mundo, Portugal afundava-se num fechamento, vivendo ensimesmado e reprimindo quaisquer tentações desestabilizadoras” através dos horrores da guerra, da polícia política e da censura. Essa vivência assentou, além do mais, em legislação retrógrada que desenhou as relações familiares e sociais com base em padrões do século XIX e que perdurou imutável por quase um século. Entre 1868 e 1967, vigoraram em Portugal normas que deixaram marcas profundas na mentalidade coletiva. Com efeito, o Código Civil, também conhecido como Código de Seabra (aprovado pela Carta de Lei de 1 de julho de 1867, em pleno reinado de D. Luís), determinava expressamente que ao marido incumbia a obrigação de proteger e defender a pessoa e os bens da mulher, sendo que a esta incumbia o dever de lhe prestar obediência. A mulher não podia publicar os seus escritos sem autorização do marido, ao passo que a este cabia a administração de todos os bens do casal. A mulher casada não podia recorrer ao tribunal sem autorização do marido, a menos que fosse ré, tal como não podia adquirir bens ou contrair obrigações. A separação de pessoas e bens apenas era justificada caso se verificasse adultério da mulher, sendo que no caso de adultério do marido este apenas era causa de “interrupção da sociedade conjugal” se se verificasse uma situação de “escândalo público”.

Após quase cem anos de imutável legislação, normalizadora de relações sociais desiguais em função do género e sem as alterações progressistas próprias da nova era surgida após 1945, ceifaram-se gerações sedentas de futuro, com muitos jovens a “fugir a salto”, na clandestinidade rumo à Europa central.

Porque é de novo abril, tenhamos consciência de que a tão almejada democracia apenas subsiste numa sociedade que seja verdadeiramente humanista, assente nos valores da liberdade e da dignidade

Neste contexto, a Revolução constituiu a “madrugada” que todos esperavam e de que todas as gerações seguintes são beneficiárias. Contudo, apesar da evolução espelhada, por exemplo, na consagração do sufrágio universal e na abolição de várias discriminações impostas às mulheres, a verdade é que, volvidos 51 anos em democracia, somos hoje confrontados, tal como noutras democracias estabilizadas, com um adormecimento coletivo. Após a euforia da liberdade, a que se seguiu um período de grande labor em torno da construção e estabilização do nosso edifício legal e constitucional, surgiu a fase da paz, do progresso económico e educacional, da integração europeia e da criação de novas infraestruturas. Mas aqui como em diversas democracias liberais, o decurso do tempo gera erosão do entusiasmo fundador. Paradoxalmente, a esperança inicial tende a esmorecer perante a estabilidade alcançada, ao que não é alheio o descontentamento gerado pela constatação de que os objetivos progressistas não se cumpriram na sua plenitude.

De facto, volvidas escassas cinco décadas, direitos que se proclamaram logo no dia da Revolução estão hoje novamente sob ameaça. No que ao género diz respeito, para além das chocantes discriminações ainda verificadas, à luz do que deviam ser os critérios e os valores em pleno século XXI, afiguram-se especialmente perturbadores e merecedores de atenção coletiva os dados relativos à disseminação dos crimes sexuais, de ódio e de violência de que mulheres e meninas são vítimas, facilmente divulgados e incentivados através da partilha de conteúdos on line, perante a passividade generalizada dos destinatários de tais informações. Numa era em que a igualdade não devia ser uma questão a discutir, preocupa o surgimento de correntes de pensamento que se movem num submundo digital e que se materializam na banalização do mal na vivência diária off line.

Para que se cumpra Abril nesta matéria, e porque as mentalidades não se mudam por decreto, sobretudo numa era de populismo crescente e de proliferação descontrolada de perigosos doutrinadores, importa que os valores iniciais não se repitam ano após ano em discursos meramente proclamatórios. Impõe-se uma aposta séria na formação integral, não firmada apenas na dimensão estritamente académica, mas também na valência da educação para a igualdade. A título de exemplo, a Dinamarca já pratica desde os anos 90 com a implementação de aulas (Klassens tid) destinadas exclusivamente à discussão e à busca de soluções, em contexto de turma, para problemas reais que afetam os alunos, assim se fomentando, em grupo, a tão necessária empatia como uma componente estrutural das crianças e jovens.

Em 1932, Aldous Huxley no seu Admirável Mundo Novo descreveu uma sociedade que, quase cem anos volvidos, não pode deixar de nos fazer refletir face às similitudes do mundo atual. Uma civilização marcada pelo progresso científico, em que se renega a História, em que se vive segundo uma filosofia utilitarista, em que tudo se destina à felicidade e ao prazer imediato, em que se predestinam as pessoas através de mecanismos pavlovianos e em que o passado e o futuro não têm qualquer relevo.

Porque é de novo abril, tenhamos consciência de que a tão almejada democracia apenas subsiste numa sociedade que seja verdadeiramente humanista, assente nos valores da liberdade e da dignidade. Nas palavras do recém desaparecido Papa Francisco, na sua vertente de pensador das questões da educação, do direito e da justiça, na Mensagem para o Pacto Educativo (de 2019): Nunca, como agora, houve necessidade de unir esforços numa ampla aliança educativa para formar pessoas maduras, capazes de superar fragmentações e contrastes e reconstruir o tecido das relações em ordem a uma humanidade mais fraterna.”

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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Morreu o Papa. E em poucas horas, nasceu uma biblioteca. Um quiosque tonitruante. Artigos, vídeos, teses, beatificações instantâneas. Não por ele, note-se. Mas por nós, pobres diabos com uma compulsão súbita para dizer seja o que for. Miguel Tamen, com uma clarividência que só os justos conservam, já o explicara, comparando opiniões com galochas: confundimos liberdade de expressão com obrigação de expressão.

Opina-se. Chora-se. Inventa-se doutrina. Mas é tudo projecção. E, nesse gesto, Francisco deixa de vestir de branco, para passar a usar colete reflector. Reflecte ideologias. Reflecte sentimentos. Reflecte — sobretudo — o vazio.

E, contudo, a unanimidade é desconcertante num ponto: a adesão com que tantos recordam a sua prioridade pela pobreza. É genuína, talvez. Mas é também projectiva. O Papa preferia os pobres (preferia mesmo!) — e isso cai bem. Mas todos fugimos da pobreza como o diabo da cruz. O nosso corpo rejeita a pobreza como rejeita o rigor, o jejum, o silêncio.

Hoje, a burguesia cultiva uma contenção estilizada — chamemos-lhe assim. Um certo minimalismo ou ascese performativa. Mas isso não tem nada que ver com o mau cheiro no rosto dos outros. A esmola é mal vista. O discurso político liberal trata a pobreza como algo que deve ser erradicado, não tocado.

E, no entanto, há na calidez de um homem que retoma a proximidade física, qualquer coisa que toca num nervo antigo. Uma alegria alegre. Uma pobreza pobre. Como diria Santa Teresa d’Ávila, no desarmante pleonasmo das coisas como elas são. E é isso, talvez, que tanto se projecta sobre ele. Não o Papa real. Mas o reflexo do que se perdeu. Ou do que nunca se chegou a ter.


Basta ligar a televisão. Logo ali, no calor dos painéis, começa o ritual. O Papa transformado em holograma progressista. Um Che Guevara de branco. Um Subcomandante litúrgico enviado para libertar Roma do latim e do Inferno. E se alguém disser “Blaise Pascal”? Se alguém recordar que a última coisa que Francisco escreveu foi uma condenação clara e contundente do aborto e da eutanásia? E se, por absurdo, mencionar que ele punha papelinhos aos pés de São José? Silêncio. Troca de canal. Este Papa — o que fala da velhice como vocação de sabedoria e acredita no Diabo — ninguém quer ver. Porque esse exige e divide. Esse escapa às alegorias.

Desaparece. E sobra o Papa de todos. Que é, evidentemente, o Papa de ninguém.

Eis o que quero dizer: quanto menos soubermos sobre alguém, mais nos é útil como espelho: é a cruz que é de prata, o apartamento em Santa Marta, a expressão cromática do calçado. Tudo é sinal de outra coisa qualquer. Qualquer que seja a virtude do dia. Era o Papa do Povo. Dos Ateus. Dos Ambientalistas. E até a tumba escolhida em testamento foi lida como homenagem à mulher contemporânea. Chega a ser
admirável, na sua lógica delirante.

Para o mundo, ele não era um homem — era uma metáfora.

Mas na fúria de projectar as suas ânsias, os meios de comunicação ignoram a realidade: o povo de Deus não quer saber dessas coisas. Quer ir à Missa, tentar ser bom como Jesus foi bom. Cumprir os sacramentos. Educar os seus filhos. Protegê-los do mal. E que o deixem em paz.

Quando a História resolve acontecer, é natural que todos queiram aderir. É magnético. Ninguém quer ficar para trás. Mas haveria outro tipo de participação possível. Li um título que dizia assim “Multidão em silêncio no velório do Papa”. E pensei: “Ah, bom.”

Na sua coluna da Revista do Expresso do fim-de-semana passado, o Pedro Mexia citava um tal William James. Dizia assim: “(…)o modo patético de viver certos desastres é mais natural às pessoas que estão distantes do que às vítimas imediatas.” Isto era a propósito de um sismo. Mas poderia ter sido sobre a morte do Papa Francisco. Que não estremeceu a terra — mas desencadeou um terramoto palavroso.

Hoje, o silêncio é suspeito. Há dois modos de fugir à realidade de Francisco: exaltá-lo como símbolo. Amá-lo como ilusão. Ambos o usam. Ambos valem mais para nos fazer sentir bem do que para nos obrigar a mudar de vida.


O Papa, coitado, serviu-nos uma última vez como espelho. De unanimidades artificiais. De carências inconfessas. De uma fé sem risco. Não que isso diga muito sobre ele. Mas diz tudo sobre nós.


Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

A liberdade não tem cheiro, nem cor, nem ocupa espaço. Mas é ela que nos dá caminho e chão, que nos dá largueza e segurança. A liberdade é frágil, difícil, instável. Mas é também o ar que nos enche o peito, que nos faz funcionar. O problema da liberdade é que, quando existe, não se vê. Quando a conquistamos, parece de pedra, natural como o céu e o sol. Não percebemos quando começa a desabar, porque ela nunca acaba num só dia. Vai desaparecendo devagarinho, debaixo de muros e sombras, de mordaças e interdições pequenas, esvaindo-se aos poucos, sem que demos por isso. Todos os dias nos custa mais a respirar, mas os pulmões habituam-se à rarefação e, mesmo que tudo seja mais lento e pesado, não nos apercebemos logo do que está a acontecer.

A liberdade vai escasseando. E quase ninguém dá por isso. O espaço está mais estreito, mas nós vamo-nos encolhendo e achamos que continuamos a caber. Pior: convencem-nos de que a liberdade é um problema. A liberdade é tão elástica que pode ser usada pelos seus próprios inimigos. E eles não têm problemas nenhuns em usá-la para nos privarem dela.

Quando ouvirem alguém dizer que “agora já não se pode dizer nada”, saibam que é um inimigo da liberdade que o diz. Porque esse tempo antes deste “agora” era o momento em que muito poucos tinham toda a liberdade de esmagar todos os outros debaixo da repressão e da censura. O que antes se podia dizer, continua a ser dito, porque a liberdade também é isso. A diferença – e é isso que eles não suportam – é que agora o que dizem podem ser desdito, contraditado, questionado. Podem dizer tudo o que quiserem, deixaram foi de poder calar os outros.

A liberdade não funciona no vazio. Ela precisa de estruturas, feitas de leis que protejam os mais fracos, de uma igualdade material que a sustente. Não há liberdade a sério quando se tem a barriga vazia e se está à mercê de quem tem tudo e faz as regras.

Não se é livre sozinho. A liberdade constrói-se em comum, numa sociedade em que os direitos são respeitados e os mais fracos protegidos. Não há liberdade a sério quando é cada um por si e ganha o mais forte.

Os libertários são inimigos da liberdade. São os que a querem só para eles, sem limites, nem freios, porque se acham mais fortes do que todos os outros e querem usar essa posição de domínio para crescer esmagando os que ficarem por baixo.

Precisamos de falar de liberdade. Precisamos de nos lembrar do que é não a ter, precisamos de ver como ela está a desaparecer, deixando-nos as mãos mais atadas e as bocas caladas. Precisamos de saber que a liberdade não é só festa, é luta. E que não basta andar com um cravo na lapela e descer a avenida, se no dia a seguir nos calamos e encolhemos e fechamos os olhos às injustiças e deixamos que os novos donos da liberdade a vendam como flexibilidade, precariedade e competição pura.

O 25 de Abril é o dia da liberdade porque foi a revolução que nos trouxe “a paz, o pão, habitação, saúde, educação”. Precisamos de voltar a cantar essa canção do Sérgio Godinho, porque está tudo lá. Não para celebrar o passado, mas para construir o futuro.

O 25 de Abril já aconteceu, mas ainda está a acontecer, se tivermos a força de nos agarrarmos a essa liberdade. O 25 de Abril é um dia que ainda não veio, que é preciso construir todos os dias. Porque a democracia e a liberdade nunca acabam de se fazer, a não ser quando morrem.

Aos que acham que está tudo feito, aos que se agarram ao passado, aos que acreditam que antes é que era bom ou que a revolução é só uma coisa ultrapassada, aos que fingem que não aconteceu nada, aos que sentem saudades do que foi ou do que podia ter sido, aos que chegaram agora e não sabem nada porque vêm com a ignorância de quem não precisou de aprender tudo da maneira mais difícil, aos que acham graça aos desfiles e usam cravos como adereços de moda vazios, aos que fazem comércio e aos que fazem escárnio. A todos esses precisamos de falar de liberdade, da liberdade a sério, construída em luta e festa, feita com todos e para todos, mesmo para os que não gostam dela, para que até esses possam dizer o que querem e que não lhes falte a saúde, a educação e a habitação quando o azar lhes bater à porta e descobrirem que, afinal, a liberdade não é um substantivo individual, mas só é plena quando se escreve no coletivo.

Aqui estou resignado na bicha que me coube para ser eleitor. Confesso que saltei da cama mal-humorado e sonolento. Tomei um banho rápido, escanhoei-me com o civismo rabugento matinal e fui ocupar com lentidão diligente o lugar na bicha da minha secção.

É esta. Bem. Tive sorte. É das mais curtas do local, constituída totalmente por Josés, associação a que nunca pertenci. Mas pertenceu o meu amigo, já morto, embora continue vivo em alguns discos. José Paradela de Oliveira (e, ainda bem que me lembrei dele agora), sempre tão amoroso de tudo o que deixava na boca o sabor popular a canções que ele cantava com tanto gozo de amar a vida e a liberdade. Um dia –  contou-me o poeta Edmundo Bettencourt, que também entoava com volúpia cantigas do Povo com puríssimos agudos de tenorino – um dia, o Paradela proferiu na sede dos Josés uma conferência sobre José Régio, Armindo José Rodrigues e José Gomes Ferreira.

Por acaso – continuava o Edmundo – nessa sessão um dos associados presentes, elogiou com veemência as “inesquecíveis páginas dos Ceifeiros” de José Fialho de Almeida, desta maneira, pouco mais ou menos: quando leio essa obra-prima que capta os hórridos trabalhos forçados dos ceifeiros naquele inferno de suor e fel, digo sempre de mim para mim: quantos Josés não estarão ali a penar, na ceifa…”

Bem. Felizmente que me recordei destes meus dois amigos para me aquecerem a impaciência de esperar. Agora estou a fitar com atenção psicológica os Josés que me rodeiam, na tentativa de descobrir os partidos em que irão votar. Apuro o ouvido e ouço sobretudo falar dos cafés fechados.

“Que chatice! – exclamava um rapaz de boné à Lenine: tenho uma fome de lobo! Vinha com a intenção de tomar o pequeno-almoço num snack-bar, mas afinal…” – Respondi-lhe com doçura burguesa: “Pois eu roí as minhas torradinhas em casa.” Olham-me com inveja. (Até o extremista do boné, implacável.) Caramba!

Como a bicha se desloca com pernas de tédio rastejante, vale-me a imaginação. Por exemplo, deviam construir o Palácio do Voto com cadeiras instaladas em tapetes rolantes que nos levassem com delicadeza democrática até às urnas. Seria tão bom poupar as pernas. Mas que remédio senão continuar de pé e, para não desistir, invoco a coragem com que alguns presos políticos, no tempo do salazarismo, se mantinham hirtos, duros, terríveis: sem quebras nem choraminguices, durante a terrível tortura da estátua. Em 1958, aquando das eleições de Humberto Delgado, a espera foi bem mais longa, pois naquela altura jogava-se a comoção de outro destino, posto que eu, pessoalmente, nunca acreditasse em qualquer libertação pelo voto. E então, para aquietar a impaciência, resolvi entregar-me à poesia. Reparando que a maioria dos eleitores em redor de mim traziam escondidos nos envelopes da União Nacional, os votos da oposição com o nome do Delgado, pus-me a magicar mentalmente:

De repente desato a rir
do último arrojo
do Grito Plural
agora silêncio de cobra em filas

Combate astucioso
com armas de papel
em bainhas inimigas

Cólera de abelhas
que só picam em segredo
por indústria macia
de cera e mel.
etc., etc., etc.

O mais curioso (ou melhor, como era lógico) é que estes versos, insertos em Grito Plural da minha Poesia V, foram cortados pelo Exame Prévio, quando uma revista de Lisboa tentou publicá-los nas últimas eleições para a Assembleia Nacional Caetanista.

E se eu agora também fizesse versos para entreter estes últimos momentos de espera? Para quê? Não vale a pena. Não falta muito tempo para terminar o sacrifício. Com toda a franqueza, estas eleições, depois da assinatura da plataforma com as Forças Armadas, não possuíam para mim qualquer aspecto de dramatismo poético especial. Talvez fosse preferível organizar um referendo com a seguinte pergunta: “Quer ou não quer que se instale o Socialismo em Portugal?” Seria porventura mais apaixonante e útil. Mas, agora, não temos outro remédio senão ir para diante. Aliás, já não me restam minutos para meditar. Cheguei à mesa e o presidente lê o meu nome em voz bem timbrada.

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No dia 25 de abril de 1975, eu tinha 30 anos e votei pela primeira vez. Era repórter na RTP e, nessa condição, andei por secções de voto da Grande Lisboa, orientando a captação de imagens, obtendo declarações, realizando pequenas entrevistas.

Um ano antes, em 25 de abril de 1974, trabalhava na redação do Diário de Lisboa. Estive no Largo do Carmo, onde Marcello Caetano se tinha refugiado no quartel da GNR, cercado pelas forças da Escola Prática de Cavalaria, comandadas pelo capitão Salgueiro Maia, com quem mantive um diálogo intenso ao longo de muitas daquelas horas de espera. Um ano depois, repórter de televisão, via como a revolução, através do voto, se transformava numa democracia.

Os muitos milhares que em 25 de abril de 1974 iam surgindo na rua, à medida que as horas passavam, apoiando os capitães que os libertavam da ditadura, apresentavam-se um ano depois junto das secções de voto.

Em 1974, no Largo do Carmo, eu pedia às pessoas que moravam ali perto para me deixarem usar o telefone e assim poder enviar as notícias para a redação, finalmente liberta da censura. Um ano depois, as imagens captadas na rua e nas secções de voto tinham que chegar às instalações da RTP no Lumiar cinco ou seis horas antes de serem emitidas.

Filas de gente para votar

Nas várias secções de voto onde estive havia, em todas, longas filas de gente para votar. O ambiente era de descontração, um ou outro interrogava-se se ia correr tudo bem, mas o clima era de grande confiança. A única noticia que abanou um pouco este otimismo veio de Braga. Arnaldo Matos do MRPP foi preso por estar a lançar panfletos a apelar ao boicote das eleições e por posse de arma ilegal. Porém, o eco da notícia pouco durou e a votação prosseguiu.

Uma senhora que entrevistei, numa secção de voto próxima de Mafra, disse-me que ia votar numa mesa de voto onde estava o seu filho. Perguntou-me se eu sabia que partido ia ganhar, disse-lhe que não sabia, e respondeu: “Deixe lá, vamos ganhar todos, isso é que importa.”  Alguns perguntavam aos elementos da mesa como é que se votava. Davam-lhes todas as explicações, mas depois via-se como se sentiam hesitantes no momento de ficarem sozinhos na cabina onde deviam preencher o boletim de voto.

Os jornalistas que andavam por terras mais distantes eram transportados em helicópteros da Força Aérea. Fora dos grandes centros, afirmavam, havia mais dificuldades. Muita gente não conseguia identificar alguns dos doze partidos que faziam parte das listas. A grande maioria nunca tinha votado, o que não espantava. No final do dia, foram contados cinco milhões de votos (4 736 666 válidos, 333 000 nulos) quando, no tempo da ditadura, o número de votantes pouco passava de um milhão, os mortos não eram retirados dos cadernos eleitorais e contavam como votos válidos e favoráveis ao regime.

Repórteres da RTP como eu, o Joaquim Furtado, o Adelino Gomes, o Joaquim Vieira, iam e vinham nos carros de reportagem ou nos helicópteros da Força Aérea porque as imagens deviam chegar fisicamente aos estúdios do Lumiar. Não havia ainda condições para as emitir à distância. As câmaras de reportagem gravavam em filme de 16mm. Depois da equipa chegar, a película ia para o laboratório e a revelação demorava quatro horas. Só depois era possível fazer o visionamento, escolher as imagens e os sons a emitir e passar para a mesa de montagem. Em dias normais, para uma reportagem entrar no Telejornal, a equipa devia chegar até às 15 horas.

Jornalistas de 35 paÍses

Além do Lumiar, a RTP contava com um estúdio na Gulbenkian, onde a Comissão Nacional de Eleições instalou um centro de imprensa. Pela Gulbenkian passaram grande parte dos dirigentes políticos. Mário Soares chegou lá ao fim da tarde do dia 25 e ficou por ali muitas horas dando entrevistas, participando em longas conversas. Na Gulbenkian, o pivot no estúdio da RTP era o jornalista António Borga. Um jornalista espanhol do semanário madrileno Triunfo confessava que tinha chegado a Lisboa muito apreensivo à espera de um clima pesado e muitos distúrbios, o que, de facto, não acontecia. Na Gulbenkian, iam e vinham os correspondentes da imprensa estrangeira de 35 países, em especial de França, Alemanha, Itália e Espanha. Foi no contacto com os jornalistas espanhóis que soubemos de manifestações de apoio à revolução portuguesa em Madrid e Barcelona, reprimidas pela polícia. Franco morreu em novembro de 1975 e só a partir dessa data começou a longa transição espanhola para a democracia. 

Naquele tempo, a RTP era a única estação de televisão. Emitia regularmente a partir da tarde, com um primeiro jornal, e durava até cerca da meia-noite. A emissão terminava com a exibição da bandeira e o hino nacional. Naquela sexta-feira, 25 de abril de 1975, a emissão de eleições começou ao início da tarde e só acabou no dia 26 à meia-noite. Pela primeira vez, a RTP esteve mais de 24 horas no ar. O laboratório e as cabinas de montagem trabalharam toda a noite, de tal maneira que, em cantos separados das instalações, foram colocadas camas para quem quisesse bater uma soneca.

De toda esta longa emissão, que culminou com a divulgação dos resultados finais, a grande figura foi o jornalista Joaquim Letria. Do minuto inicial ao minuto final, ele esteve sempre no ar, entrevistando, apresentando comentadores, lançando reportagens.

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De par com muito trabalho e algum baralho havia, se bem me lembro, expectativa e preocupação nos velhos estúdios da RTP do Lumiar, nessa tarde de 25 de Abril de 1975. Expectativa e preocupação que não excluíam, pelo contrário, entusiasmo ou até alegria. Um certo clima de festa, que era o dominante lá fora, no dia em que os portugueses pela primeira vez em meio século votavam em liberdade. Em que era mesmo a primeira vez na nossa História que havia umas eleições em liberdade por sufrágio universal. E com uma lei que se esmerara, até ao exagero do impraticável, em assegurar a igualdade de todas as candidaturas.

Eram os últimos preparativos para o que seria uma emissão também ela histórica, única, de 30 ou mais horas, planeada fundamentalmente pelo Carlos Cruz (ainda por incumbência do anterior presidente da RTP, e futuro Presidente da República, Ramalho Eanes) e por ele muito bem coordenada. Carlos inclusive presente no estúdio, sentado numa mesa, e por vezes intervindo, mesmo em diálogo com o pivot Joaquim Letria, jornalista/apresentador da emissão, cujo “êxito” a ele muitíssimo ficou a dever – excelente comunicador e entrevistador televisivo, com uma intuição e uma empatia raras. 

Eu também lá estava, vivi e participei, por vezes com emoção, nessas longas inesquecíveis horas. Porque era, com o Letria, diretor de informação – ou da direção de Informação, nessa altura todos os departamentos tinham como titular um militar, no caso o tenente Bargão dos Santos (que, além do mais, tirou depois o curso de Medicina e como major-general viria a ser diretor do Hospital Militar).

Mas posso falar à vontade do “êxito” da emissão porque em nada participei no seu planeamento, e nada ou pouquíssimo na sua preparação, pois estava naquelas funções há muito pouco tempo. De facto, após o 11 de março recusara continuar na direção, e ser diretor, do Diário de Notícias, por motivo que não vem para aqui. E como tal motivo não se aplicava à RTP o MFA quis-me nela, de que era comentador desde o 25 de Abril. Assim, considerando-me do que chamava o “MFA civil”, senti-me obrigado a aceitar, mas pondo três condições: uma delas a de não ser remunerado, para ficar claro tratar-se de uma “missão” e transitória…

Abordagens variadas

Para imaginar hoje tudo o que significou essa excecional cobertura televisiva das eleições, para a Assembleia Constituinte, de há meio século, convém lembrar que, após a frustrada tentativa de golpe de 11 de março e a conturbada “aceleração revolucionária” que se lhe seguiu, a realização do sufrágio esteve ou pareceu estar ameaçada. Mas também aí o MFA se manteve fiel e cumpriu as suas promessas e o seu programa, do qual constava eleições no prazo máximo de um ano.

Ora, sendo a RTP a única televisão, se a sua audiência normal, quando havia grandes acontecimentos de qualquer género, já era de milhões de espectadores, até para os então poucos e selecionados comentários (posso testemunhá-lo), obviamente a dita cobertura, pelo menos até meio da madrugada, deve ter batido recordes.

Batido recordes, obviamente pelo “tema”, pela extraordinária participação no sufrágio, quase 92% de votantes, e o correspondente interesse em saber os resultados. Mas, para manter audiência, também pela qualidade da emissão: com uma assinalável variedade de abordagens, no estúdio e a partir da Gulbenkian, então centro da CNE e da contagem de votos, com reportagens feitas durante todo o dia em diversas regiões e terras do País, mesmo as mais interiores e longínquas (ou no meio do mar, nas Berlengas, ouvindo os faroleiros…). O que só foi possível com deslocações de helicóptero, graças ao apoio da Força Aérea, e noutros casos da GNR. E, depois, com o intenso trabalho, mormente de montagem, dos profissionais em serviço em Lisboa. Aliás, uma coisa que saliento é não ter havido, que recorde, nenhum conflito ou problema entre jornalistas e técnicos afetos aos principais partidos e numerosos grupos políticos, em especial de extrema-esquerda: praticamente todos – ao contrário do que aconteceu em outras ocasiões… – trabalharam muito e bem para essa emissão histórica.

Sem computadores como hoje os conhecemos, com meios rudimentares, os resultados, e de mesas eleitorais de pequenas localidades, só começaram a ser conhecidos muito tarde e pingo a pingo, o Adriano Cerqueira a mostrá-los numa geringonça constituída por uns pequenos cubos de papelão. Mas, mesmo assim, a emissão com muito bom ritmo, com surpresas – incluindo uma espécie de “intervalos” com participação de artistas e programação avulsa – foi suscitando interesse e curiosidade sobre o que viria a seguir.

Lembro-me bem da chegada dos primeiros resultados, e dos que foram indiciando por um lado uma clara vitória, por outro um resultado abaixo do esperado do PCP e do MDP. E lembro muito em especial da notícia da eleição do primeiro deputado, por Macau, lá para as quatro da madrugada. Ao anunciá-la, o Joaquim disse uma piada ou fez uma observação e começou a rir-se, o riso propagou-se a toda a gente no estúdio (o Carlos, o Megre, salvo erro o Fialho Gouveia, etc., etc.), todos se riam e não se conseguia parar, decerto um momento único na televisão portuguesa,

E só lá pelas sete da manhã – disso tenho a certeza, porque a antecipá-lo o Letria disse que íamos na 12.ª hora de emissão – existiu o primeiro “comentário” aos resultados conhecidos, em conversa minha com o Augusto Abelaira. Não muito depois, lá entre as 8h e as 9h da manhã, um grande estrondo e susto: o calor era imenso, os holofotes da iluminação desse tempo não estavam preparados para tanto, e dois “rebentaram”…

Mas a emissão prosseguiu. E a mim coube-me, com mais três camaradas, entrevistar os líderes dos até então considerados os principais partidos: Mário Soares, do PS, Álvaro Cunhal, do PCP, Magalhães Mota, do PPD (Sá Carneiro estava no Porto), Pereira de Moura, do MDP (que eu recorde só uma vez, meses antes, eles – mas Sá Carneiro, não MM – tinham estado juntos na televisão, numa mesa moderada por mim).

Enfim, uma emissão que coroou um acontecimento da maior relevância para a nossa democracia e para o nosso país. De tal forma, que no último JL, Jornal de Letras, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa diz, sobre esse dia 25 de Abril de 1975: “Constitui o mais importante de todos na minha existência de cidadão. Até hoje.”

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