Apesar de a Nintendo Switch 2 só chegar aos mercados dentro de um mês sensivelmente, há um jogador que já chegou ao final da nova versão de Breath of the Wild. O criador de conteúdos Ikaboze publicou um vídeo no YouTube no qual mostra o feito conseguido durante uma sessão de previsualização da Nintendo em Tóquio. Todos os que estiveram no evento puderam jogar uma demonstração do jogo durante dez minutos, tempo suficiente para Ikaboze realizar a façanha.

O criador precisou apenas de sete minutos para conseguir passar o título até ao fim e derrotar Ganon, na épica batalha final. O Engadget clarifica que isto não significa que Ikaboze tenha completado todo o jogo, operação que demora cerca de 23 minutos para os jogadores mais hábeis. Ao invés, Ikaboze carregou um ficheiro de autosave que fez surgir fora do Castelo Hyrule, onde imediatamente largou todo o equipamento e correu em direção a Ganon para o enfrentar (e derrotar).

Os funcionários da Nintendo terão reconhecido que Ikaboze foi o primeiro a concluir o jogo na versão de demonstração. Breath of the Wild e Tears of the Kingdom vão estar disponíveis para a Switch 2 logo na altura do lançamento da consola.

Com tanta incerteza política, económica e até mesmo social no mundo, é fácil perder de vista os muitos problemas que temos à porta de casa. E como diria aquela icónica senhora de uma reportagem da TVI, estes problemas “não é muitos, e não são poucos, não é? Bastantes!“. Portugal está cheio de bombas-relógio, algumas a estourar (como a habitação), outras com o rastilho já a arder.

Posso começar por duas questões pelas quais tenho particular interesse: o envelhecimento da população e a reforma. Portugal é, ao dia de hoje, o quarto país mais envelhecido do mundo. É uma estatística que por um lado me enche de orgulho (os nossos velhotes são rijos e estão aí para as curvas), mas por outro, do ponto de vista do futuro, preocupa-me. Perdoem-me a frontalidade, mas os idosos nunca são o futuro de um país. O que significa que nas próximas décadas Portugal vai ter um conjunto de desafios relacionados com a falta de renovação geracional, baixas taxas de natalidade, falta de mão de obra jovem no mercado de trabalho, maior isolamento social, menor dinamismo da economia… E, claro, uma pressão acrescida no Sistema Nacional de Saúde (cuja própria saúde não está em bom estado) e no sistema de pensões. Com que idade pensa reformar-se? E quanto pensa que vai ganhar na reforma? As estimativas mais recentes apontam para que as pessoas que se reformem em 2050 só venham a receber de reforma o equivalente a 38,5% do seu último salário! Pois, vá começando a fazer contas à vida…

Numa fase em que só agora é que começam a existir planos de apoio do Estado para as creches, já devíamos estar num patamar completamente diferente, com uma aposta séria e reforçada nos… lares. Se vamos ter um país de idosos empobrecidos, ter uma rede pública robusta de lares e outros serviços de apoio à terceira idade não é uma utopia, é uma inevitabilidade.

Se o envelhecimento da população é um dos exemplos mais gritantes dos problemas estruturais que Portugal precisa mesmo de endereçar, há muitos outros e que afetam praticamente todos os níveis da nossa sociedade. O sistema de educação precisa urgentemente de ser revisto. A educação devia ser o verdadeiro desígnio de qualquer país, pois são as crianças e os jovens que um dia vão levar isto para a frente. Quanto mais apostarmos na qualidade da educação, melhor seremos enquanto País. Aquilo que tenho visto nos últimos anos é uma cada vez menor competitividade do ensino público face ao ensino privado (que tem o seu espaço e é necessário), mas que se não for devidamente equilibrado, vai criar uma sociedade ainda mais desigual, na qual os que têm dinheiro são aqueles que acabam por conseguir as melhores oportunidades de acesso aos melhores cursos nas melhores faculdades, perpetuando um ciclo no qual o elevador social deixa de funcionar.

A justiça precisa ser mais célere, prática e acessível. Um país onde a justiça funciona mal, torna-se mais propício para os que têm mais recursos prolonguem quase infinitamente os seus processos, enquanto os mais pobres sentem que não podem sequer recorrer a um dos mais importantes meios de equilíbrio de forças que uma sociedade dispõe (em teoria, um rico e um pobre, um inteligente e um totó, um gordo e um magro, são todos iguais aos olhos da justiça).

Sobre a habitação nem preciso de escrever muitos caracteres, mas vou ‘roubar’ uma ideia que vi num comentário deixado num vídeo do YouTube. A casa que comprei há sete anos vale hoje muito mais, o que em teoria me torna um pouco mais ‘rico’. Mas se o negócio fosse feito hoje, provavelmente eu já não conseguiria comprar a casa onde moro – o que é um claro sinal de pobreza.

A desertificação do interior precisa de ser estancada, sob pena de termos um território ainda mais desigual (e, num país geograficamente pequeno como o nosso, justifica-se sequer tamanha desertificação?).

Na saúde, o SNS precisa de passar de um modelo corretivo, que trabalha maioritariamente sobre os problemas de saúde das pessoas, para passar para um modelo preventivo, trabalhando para evitar tanto quanto possível que os cidadãos precisem de recorrer ao SNS (precisamos de construir uma sociedade mais saudável, no fundo). A este propósito, recomendo a leitura do livro o Suicído da Espécie, que é para o qual andamos todos, de uma maneira ou de outra, a contribuir.

E que áreas estratégicas quer Portugal ‘atacar’ na Ciência e na Tecnologia? Em que domínios queremos ser os melhores do mundo em 2050? É que para isso acontecer, as sementes já deveriam ter sido lançadas ontem – não é amanhã, nem depois. Somos um país de turismo e de mar, mas curiosamente não temos grandes ‘campeões’ digitais e tecnológicos nesta área. Porquê?

Em algum momento, no futuro, um Governo terá de ter a coragem de tomar todas as decisões difíceis que nenhum outro até aqui se atreveu a fazer. E a palavra coragem não é escolhida pela prosa – considerando que muitos dos problemas aqui citados são óbvios, só posso interpretar que sobre eles pouco ou nada está a ser feito pela falta de coragem. Quem é que vai ter coragem para mexer no sistema das reformas? Quem é que vai ter estofo para remodelar o sistema de educação? Quem terá a audácia de taxar eficazmente as comidas ultraprocessadas? Quem vai ser o intrépido que vai decidir canalizar um investimento sério para a educação? Quem é que no seu perfeito juízo arriscaria o seu lindo pescoço político por um problema que só vai ‘estourar’ daqui a 30, 40 ou 50 anos? Quando temos uma classe política que considera um salário mínimo de 1100 euros brutos, em 2029 (!), como um objetivo ambicioso para o crescimento do País, está tudo dito.

Este é, no fundo, o grande problema de Portugal. Andam todos preocupados com o seu quintal e ninguém pensa o País como ele precisa de ser pensado. De forma estruturada, com objetivos de curto, médio e longo prazo. A mover-se em diferentes dimensões, a diferentes velocidades. Não deixemos que as bombas que temos em mãos rebentem de forma descontrolada. 

Esta texto marca a minha despedida da Exame Informática. Ao longo destes quase seis anos, tive o privilégio de ter a liberdade para escrever sobre tudo um pouco: visitei o lado negro das redes sociais, revelei as primeiras vítimas de deepfakes em Portugal, mergulhei no mundo das polícias e da videovigilância, entrevistei o melhor dos hackers, troquei o meu carro pessoal por um Ami, descobri um colecionador de íris, aprendi a comprar casas mais baratas, fui barista durante um mês (e nem sequer aprecio café), chamei a atenção para os hackers chineses que andaram a fazer tropelias em Portugal, troquei ideias sobre IA com grão-mestres de xadrez, tornei públicas as confissões de um investigador forense, dormi (algo que sei fazer bem), quis saber como viver para lá dos 100, cruzei-me com o criador do iPod e do iPhoneAté um OVNI consegui meter numa capa da revista! Trabalhos que serviram para informar (espero), mas também para provocar o pensamento dos leitores sobre todas estas transformações que estão a acontecer à nossa volta.

Daí que não podia terminar sem fazer a mais definitiva das provocações: que futuro queremos realmente para Portugal e o que estamos dispostos a fazer para o alcançar? Obrigado a toda a equipa da Exame Informática. E obrigado pelo seu interesse e companhia.

Apesar de a Constituição portuguesa consagrar a separação entre Estado e religiõesa neutralidade religiosa do Estado foi posta em causa com o adiamento das comemorações do 25 de Abril devido à morte do Papa Francisco, consideram os constitucionalistas ouvidos pela agência Lusa.

Sem utilizar o termo ‘laico’, a Constituição da República Portuguesa estabelece inequivocamente, através da Lei da Liberdade Religiosa, no artigo nº3, que “as igrejas e demais comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto” e, no artigo n.º 4, que “o Estado não adota qualquer religião nem se pronuncia sobre questões religiosas”.

Em entrevista à Lusa, a constitucionalista Isabel Moreira disse que “Portugal é formalmente um Estado laico, mas há uma ordem moral informal, de matriz católica, que ainda influencia decisões políticas e sociais”.

Segundo a deputada socialista, o adiamento das comemorações do 25 de Abril são um exemplo de violação clara da separação entre o Estado e a religião, não compreendendo que “a festa da democracia seja condicionada pela morte de uma figura religiosa”.

O presidente da Comissão para a Liberdade Religiosa (CLR), José Vera Jardim, entrevistado pela Lusa, reconheceu avanços a respeito da laicidade do Estado, como a não inclusão de representantes religiosos na cerimónia de abertura do ano judicial deste ano, porém, admitiu também que subsistem práticas institucionalizadas.

Relativamente a cerimónias religiosas, como a bênção de obras públicas como a que aconteceu em 2023 junto à obra do Plano Geral de Drenagem de Lisboa, o presidente disse que estas cerimónias “não deviam ter lugar” e que se trata de “um problema cultural que se vai resolver”, reconhecendo que “há algumas queixas que têm chegado”.

O funeral do Papa contou com a presença oficial do Presidente da República, do primeiro-ministro e do Presidente da Assembleia da República, algo que não se verificou, por exemplo, quando faleceu o Príncipe Aga Khan, líder da comunidade ismaelita, em que também não foi decretado luto nacional.

Para Jorge Miranda, conhecido como um dos pais da Constituição portuguesa, esta decisão não comprometeu a laicidade do Estado.

Em entrevista, o constitucionalista disse que uma ação destas “não põe em causa a laicidade do Estado, uma vez que o Papa era chefe de Estado. É natural que um Estado homenageie outro Estado”.

José Vera Jardim deu conta que a representatividade social justifica diferenças. “A religião católica tem uma implantação em Portugal que mais nenhuma tem. E, portanto, tem de ser tratada, ou tem direito a ser tratada de uma forma diferente em certos aspetos, embora a sociedade deva caminhar para a igualdade. Mas é evidente que o chefe da Igreja Católica tem um posicionamento, face a Portugal e a outros países católicos, diferente do que tinha o Príncipe Aga Khan”.

Segundo a CLR, mais de 80% da população declara-se católico e isso acabará por refletir-se em aspetos protocolares como, inclusivamente, o calendário nacional, que mantém vários feriados religiosos católicos.

Não obstante, a lei prevê que outras confissões possam solicitar o reconhecimento de dias sagrados para efeitos laborais ou escolares, desde que devidamente fundamentados.

Portugal mantém um acordo — a Concordata de 2004 — que garante à Igreja Católica isenções fiscais, como o IMI e o IVA, e direitos como o ensino da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica nas escolas públicas, acordos que, segundo o presidente da CLR, só não são celebrados com outras religiões se as próprias não quiserem, uma vez que todas são representadas e foram “escolhidas pela sua importância na sociedade portuguesa”.

Acerca do ensino religioso, Isabel Moreira defende que o Estado “não se deve ocupar do ensino da religião nas escolas”, sendo “a única forma de garantir verdadeira igualdade e neutralidade”.

Já Jorge Miranda explica que esta disciplina “não é obrigatória, são os pais que escolhem. É uma forma de ensino como outra qualquer. Se fosse obrigatório, aí sim, seria um problema.”

Segundo um comunicado do Governo, o programa de eventos do 25 de Abril que estavam previstos para a Residência Oficial do Primeiro-Ministro realizar-se-ão na quinta-feira.

A Medicina Veterinária há muito deixou de ser apenas a ciência dos consultórios onde se tratam cães e gatos. É um campo do saber e da prática que, apesar de muitas vezes remetido ao silêncio dos bastidores, tem um papel absolutamente central no funcionamento das sociedades modernas. A veterinária não anda de coleira; é livre, interdisciplinar e indispensável.

Num mundo onde as fronteiras entre a saúde humana, animal e ambiental se tornam cada vez mais ténues, os médicos veterinários assumem funções cruciais que vão muito além da consulta de rotina. São eles que, discretamente, garantem a segurança dos alimentos que chegam à nossa mesa, através do controlo sanitário nas cadeias de produção e distribuição. São também sentinelas da saúde pública, ao intervirem na prevenção e controlo de zoonoses – doenças que passam dos animais para os humanos – como a raiva, a leptospirose ou a gripe aviária.

A sua atuação no terreno é apenas uma parte de um universo muito mais vasto. A investigação científica em Medicina Veterinária tem contribuído significativamente para avanços na biotecnologia, prevenção e controlo de zoonoses, saúde pública, desenvolvimento de vacinas, tratamentos mais eficazes e diagnóstico precoce, onde muitos estudos em modelos animais têm permitido melhorias na saúde humana. Este conhecimento, construído com rigor e ética, é um alicerce para a inovação em várias áreas do saber.

Também no domínio do bem-estar animal, a veterinária ocupa uma posição de liderança. A crescente consciencialização social para os direitos dos animais tem sido acompanhada, e em muitos casos impulsionada, pelo trabalho dos profissionais veterinários, que lutam por práticas mais humanas na pecuária, na ciência e no tratamento de animais de companhia. São vozes ativas na defesa daqueles que não têm voz.

Importa ainda reconhecer o papel dos veterinários em contextos de crise, em cenários de catástrofe ambiental, conflitos armados ou surtos pandémicos, são frequentemente chamados a agir em nome da proteção das populações, humanas e animais. A crescente valorização do conceito One Health, que integra a Saúde humana, animal e ambiental, reforça a importância de um trabalho colaborativo onde a Medicina Veterinária é uma peça-chave.

A resposta a todos estes desafios começa na formação. O ensino da Medicina Veterinária tem vindo a evoluir, acompanhando as exigências da sociedade e da ciência. Um bom exemplo disso é o ensino moderno, modular, integrado, intensamente prático e especializado que caracteriza o curso de Medicina Veterinária da Egas Moniz, assim como o lançamento do novo Mestrado em One Health, que vem reforçar a aposta numa formação especializada, capaz de preparar profissionais para contextos cada vez mais complexos e multidisciplinares e para resolver os desafios globais da saúde animal, humana e ambiental.

Reconhecer a Medicina Veterinária é, por isso, muito mais do que valorizar uma profissão. É afirmar um compromisso com a vida, em todas as suas formas. É olhar para uma ciência que se move com liberdade, que se adapta, que pensa o futuro: uma ciência que não anda de coleira porque está na linha da frente, mesmo quando não damos por isso.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

O dia histórico que marca o início da nossa liberdade e democracia merece ser celebrado com dignidade. Mas, desta vez, o Governo parece ter aproveitado a circunstância do falecimento do papa Francisco para descaracterizar a data, adiando-a sem sentido, e com isso fez um favor aos adversários do regime democrático, que detestam tais comemorações.

Mas houve comportamentos verdadeiramente indignos na própria sessão comemorativa na Assembleia da República. Paulo Núncio resolveu aproveitar para fazer um comício em nome do CDS, e até abusando do tempo regulamentar concedido ao seu partido para discursar. Outros centraram o discurso no papa e não na data em comemoração. Já o Chega abandalhou a sessão quanto conseguiu, com os habituais apartes, sonoros e indecentes.  

À tarde, Rui Fonseca e Castro, do partido nacionalista neofascista Ergue-te!, decidiu insistir numa manifestação que estava proibida e que não passou duma provocação aos migrantes da zona. A PSP avisou-o no local de que estava a incorrer num crime de desobediência e, perante a sua insistência, deu-lhe voz de prisão.

Momentos depois do tumulto provocado e em face da intervenção do dispositivo policial para conter a agitação pelos extremistas, Fonseca e Castro acabou por se entregar. Mário Machado e o seu grupo neonazi agiram da forma idêntica. A verdade é que estes grupos extremistas conseguiram desviar a atenção da comunicação social da grande celebração popular para uma reles luta de rua, à boa maneira dos marginais que os integram.

De resto, Marcelo continua a dar tiros nos pés. Por que razão o Presidente duma República, que é um estado laico, teria de dirigir uma comunicação ao País nas televisões, em horário nobre, a pretexto do passamento de Francisco? Quando é que o fez anteriormente por ocasião de qualquer outro chefe de estado? Ou de qualquer outro líder religioso? Marcelo ensaiou uma trôpega tentativa de justificação do ato ao mencionar que a Santa Sé teria sido o primeiro estado a reconhecer o reino de Portugal em 1143. Tal justificação é ridícula visto que os estados europeus eram então reconhecidos por bula papal. E daí?

E o Governo não poderia ter marcado luto nacional sem ser em cima da data fundadora do regime democrático, como outros estados fizeram incluindo o Vaticano? Montenegro adiou as celebrações festivas do 25 de Abril para o 1.º de Maio alegando que o luto nacional pelo Papa Francisco implica reserva nas comemorações. Uma vez cometido o erro, procurou voltar atrás mas ficou muito mal na fotografia. Porém, a forte resposta popular mais uma vez verificada no habitual desfile na Avenida da Liberdade respondeu a estas tentativas de menorizar o “dia inicial”. 

A data de 25 de Abril de 1974 remete para o fim da ditadura, da polícia política, dos “bufos”, da censura, dos “gorilas” nas universidades, do regime de partido único e duma guerra interminável e injusta contra os povos africanos. Com o fim do regime do Estado Novo, os cidadãos ganharam o direito de ler os livros, ver os filmes e ouvir as músicas que quisessem, de poder votar em eleições realmente livres e universais, de se reunirem em associações sindicais, culturais e de toda a espécie, de usufruírem de liberdade de pensamento, expressão e associação política ou qualquer outra. A educação e a saúde democratizaram-se. A economia libertou-se. As mulheres ganharam autonomia. As minorias religiosas passaram da condição de toleradas à de aceites.

Ao aderir à Europa, Portugal passou a existir de facto e a ter voz no concerto das nações. Atualmente, temos um português como secretário-geral da ONU, outro preside ao Conselho Europeu, e já tivemos um presidente da Comissão Europeia.

Nenhuma desilusão ou frustração com as perturbações do chamado “processo revolucionário” ou com o País de hoje justifica o facto de diabolizar Abril. Não insultemos a memória. Se quisermos ser honestos temos de reconhecer que há um mundo de diferenças entre o regime salazarista-marcelista e a democracia, apesar das imperfeições desta. Para muito melhor.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

O debate entra no português por via do verbo francês débattre, que significa bater de forma contínua ou violenta. Mas mesmo na sua língua original, conta a revista brasileira Veja, o uso comum sempre foi o de “querela, controvérsia” no campo das ideias, em vez da violência física propriamente dita. Embora, já vimos historicamente que por vezes as ideias saltam da cabeça e instalam-se nos cabos das bengalas – uma outra forma de “esgrimir” argumentos, por assim dizer.

Hoje há debate grande. Literalmente. Enquanto os confrontos televisivos entre os líderes dos partidos com assento parlamentar, para as eleições legislativas de 18 de maio, tiveram uma duração máxima de 30 minutos, Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro são uns privilegiados e terão 70 minutos pela frente – afinal, um deles será o próximo primeiro-ministro.

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Se reconhecermos no Indie a qualidade de barómetro, o cinema português vive um bom período. Este ano haverá a maior Competição Nacional de sempre: são 25 filmes, incluindo 10 longas-metragens. A direção admite que ainda havia outros filmes que mereciam estar presentes, mas ficaram por selecionar.

Segundo Susana Santos, diretora do Indie, não se trata de algo conjuntural, mas sim fruto de uma consistência e diversidade de olhares do cinema aqui feito. De resto, apesar de se assumir um esforço de compactação para dar mais importância a cada filme selecionado, esta edição do Indie conta com 238 películas (incluindo curtas).

Ou seja, não é uma edição que se consiga acompanhar de fio a pavio. Pelo que é importante fazer escolhas. Ou confiar na sorte.

Entre os portugueses, há grandes expetativas para Pai-Nosso – Os Últimos Dias de Salazar, filme de José Filipe Costa, realizador que tem dedicado uma parte significativa da sua obra à Revolução de Abril e aos seus contornos, em filmes como Linha Vermelha e Prazer, Camaradas. Desta vez, apresenta um filme de ficção focado nos últimos dias do ditador, após ter sofrido o AVC que o fez cair da cadeira (real e metaforicamente). O filme conta com Jorge Mota e Catarina Avelar nos principais papéis.

Sandro Aguilar, um dos realizadores portugueses mais premiados em curtas-metragens, mostra aqui a sua terceira longa, Primeira Pessoa do Plural, em que brilha Albano Jerónimo. Uma narrativa flutuante em torno de um casal que celebra o aniversário de casamento, com uma linguagem estética ousada e desafiante.

Primeira Pessoa do Plural, de Sandro Aguilar com Albano Jerónimo

De Cabo Verde, chega Hanami, mais do que auspiciosa estreia nas longas da luso-cabo-verdiana Denise Fernandes. De alguma forma, é o regresso do cinema português à Ilha do Fogo, onde Pedro Costa filmou Casa de Lava. O contexto, contudo, é eminentemente cabo-verdiano, de dentro para fora, centrando-se em Nana, uma adolescente que quer ficar, quando a única solução para os ilhéus parece ser sempre partir. É também o filme que representa o Indie na Smart 7, secção criada em conjunto com outros seis festivais.

Destaca-se ainda a estreia mundial de A Vida Luminosa, de João Rosas; Duas Vezes João Liberada, de Paula Tomás Marques; ou Santa Iria, de Luís Miguel Correia. Isto além de curtas como Sombras de Nós Próprios, de Pedro Serrazina; Sabura, de Falcão Nhaga; Um Dia Bom, de Tiago Rosa Rosso; ou Black Hole Descending, de Rita Macedo.

Acrescentam-se ainda os 12 filmes portugueses presentes na secção Novíssimas, dedicada fundamentalmente a filmes de escola, mas que tem servido de revelação de talentos.

A Competição Nacional também teve um caso – daqueles que já assolaram festivais um pouco por todo o mundo. Balane 3, realizado por Ico Costa, em que este prossegue a sua deriva moçambicana, foi selecionado para o festival. Contudo, após uma denúncia que o acusa de violência doméstica, a direção do Indie decidiu retirar o filme.

Existências e insistências

Caught by the Tides, de Jia Zhang-ke

Ao contrário do que acontece na Competição Nacional, em que há uma mistura entre realizadores experientes e novatos, a Competição Internacional restringe-se a cineastas com um máximo de três obras realizadas.

Entre curtas e longas, procura-se uma certa diversidade geográfica, mas também de géneros e formatos. Segundo nos explicou a diretora Susana Santos, há uma tendência para temáticas existencialistas — embora tal não seja demasiado evidente.

Da seleção fazem parte Vitrival, uma comédia belga da dupla Baptiste Bogaert e Noëllle Bastin; Río Abajo, Un Tigre, do espanhol Víctor Diago; On Becoming a Guinea Fowl, do zambiano Rungano Nyoni; No Sleep Till, da americana Alexandra Simpson; Olivia & Las Nubes, do dominicano Tomás Pichardo-Espaillat; ou Lo que Trajo la Tormenta, do argentino Miguel de Zuviría.

Os realizadores com mais de três filmes passam para a secção Silvestre, que também é competitiva. Assim, é natural encontrar aqui realizadores mais conhecidos, que já passaram por este e por outros festivais portugueses. É o caso do galego Lois Patiño, com Ariel; o japonês Kiyoshi Kurosawa, com Cloud; o americano James Benning, com Little Boy; ou o brasileiro Filipe M. Bragança, com Zizi (ou Oração da Jaca Fabulosa).

Finalmente, na secção Rizoma, criada o ano passado, encontramos algumas das principais antestreias, com filmes que podem eventualmente agradar a um público mais vasto. Estão aqui alguns filmes portugueses importantes, como Memórias do Teatro Cornucópia, realizado por Solveig Nordlund; Casa-Abrigo, um documentário sobre vítimas de violência doméstica de Márcia Laranjeira; ou De Que Casa Éres, de Ana Pérez-Quiroga, em que crianças espanholas exiladas na União Soviética durante a guerra civil respondem a esta pergunta.

Youth, de Wang Bing

Destaque-se aqui também a trilogia Youth, de Wang Bing; The Last Showgril, filme de Gia Coppola em volta de Pamela Anderson; Les Reines du Drame, de Alexis Langois; Little, Big, and Far, do americano Jem Cohen; ou O Último Azul, do brasileiro Gabriel Mascaro.

Isto além das sessões especiais, de abertura e encerramento. Para a abertura, uma comédia muito surpreendente. Matthew Rankin mimetiza a estética do cinema iraniano, em jeito de homenagem, transpondo-a para a realidade canadiana. E no encerramento, Caught by the Tides, em que o chinês Jia Zhang-ke conta a história de um romance falhado que se desenrola ao longo de 20 anos, com uma China em evolução como pano de fundo.

Autores a descobrir

A Sua Última Palavra, de Binka Jeliaskova

O Indie, em conjunto com a Cinemateca Portuguesa, convida-nos a conhecer uma das mais intrigantes e desafiadoras realizadoras búlgaras do século XX.

Binka Jeliaskova é autora de um cinema esteticamente inovador e narrativamente desafiante, ao ponto de quatro dos seus nove filmes terem sido proibidos pelo regime e apenas conhecidos pelo grande público depois da queda do Muro.

Uma dessas obras foi Life Flows Quietly By… (1957). Mas tem outros filmes muito relevantes, que receberam prémios fora da Bulgária, como We Were Young (1961), sobre a resistência ao nazismo, premiado em Moscovo; The Attached Balloon (1967), que passou na Exposição Universal de Montreal; ou The Last Word (1974), que esteve em competição em Cannes.

Falecida em 2011, com 88 anos, a sua obra ganhou reconhecimento internacional, em parte, por figurar no filme de Mark Cousins Women Make Film. Na Cinemateca passa uma retrospetiva completa.

O Indie abre espaço ainda para um foco em Charlie Shackleton. Realizador e crítico de cinema, tem uma obra interessante de curtas e longas, feita em grande parte de filmes-ensaio. Entre outras obras, passa, em formato de instalação, Paint Drying, 10 horas de tinta a secar numa parede — filme realizado em protesto contra a comissão de classificação de filmes britânica.

Música, erotismo e terror

Paraíso, de Daniel Mota

Uma das secções mais procuradas pelo público continua a ser o IndieMusic, que, como o nome indica, faz a ponte entre o cinema e a música. Também por aqui se encontram vários filmes portugueses.

Catarina Alves faz um retrato de Orlando Pantera, inovador músico cabo-verdiano que morreu prematuramente aos 33 anos. Daniel Mota, em Paraíso, regressa ao tempo das raves que marcaram a cultura urbana portuguesa do início da década de 1990. E, em Filhos do Meio, Luís Almeida faz uma história do rap da Margem Sul de Lisboa.

Destacam-se outros filmes, como o documentário sobre Milton Nascimento, assinado por Flávia Moraes; o flamenco através da guitarra de Yerai Cortés, de Antón Álvarez; o retrato de Meredith Monk por Billy Shebar e David Roberts; ou uma viagem pela música eletrónica em Move Ya Body: The Birth of House, por Elegance Bratton.

Os mais cinéfilos podem deleitar-se com a secção Director’s Cut, em que o cinema se olha ao espelho e onde se apresentam alguns clássicos e filmes de culto. É o caso de Diferente, de Luis María Delgado, musical homoerótico de 1962 que conseguiu escapar às garras da censura do regime franquista.

Diferente, de Luis María Delgado

Também Sealed Soil, uma relíquia do cinema iraniano, assinado por Marva Nabili, tido como o primeiro filme daquele país realizado por uma mulher. Além da versão restaurada de Iracema, Uma Transa Amazónica, obra marcante do cinema brasileiro, assinada por Jorge Bodanzky e Orlando Senna; e Les Lèvres Rouges, filme de culto do belga Harry Kümel.

Café Flesh, de Stephen Sayadian, faz parte do Director’s Cut, mas será integrado na maratona Boca do Inferno que, como é habitual, propõe filmes sem parar madrugada fora, no Cinema Ideal. A propósito deste filme de culto a meio caminho da pornografia, o Indie desafia os espectadores a comparecer na sala de gabardina, oferecendo-lhes um desconto.

Além disso, a secção é feita de filmes de género, sobretudo entre o terror e o erotismo. Entre curtas e longas, filmes como Mads, de David Moreau, O Caminho da Serpente, de Kiyoshi Kurosawa, ou Yaza, de Francisco Lacerda.

Café Flesh, de Stephen Sayadian

Para os mais novos, o IndieLisboa funciona quase como um festival dentro do festival, com uma programação vasta concentrada em cinema de animação (mas não só). Natural destaque para o regresso de Michel Gondry, com o filme de animação (que mistura várias técnicas) Maya, Dá-me um Título. Do IndieJunior fazem parte também ateliers e diversos programas especiais para famílias e escolas.

Para os mais ousados, há ainda o desafio do cinema na piscina, em que se dá a possibilidade de ver um bom filme enquanto se dão umas braçadas na piscina da Penha de França. Entre outros, passam O Que Fiz Eu para Merecer Isto, de Pedro Almodóvar, e O Grande Lebowski, dos irmãos Coen.

E, claro, o Indie também é feito de debates, encontros, um programa especial para a indústria e muitas festas.

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Paulo Teixeira garante que foi uma viagem que mudou a sua vida. No início deste século, concorreu a uma residência literária no estado da Bahia, no Brasil, e a surpresa começou logo na resposta. Foi rápida e positiva.

Quando deu por si já estava mergulhado numa paisagem deslumbrante, num pequeno paraíso que se renovava todos os dias. Ficou e voltou, tantas vezes que acabou por decidir aí viver, durante uma temporada longa, que durou uma década. Ao todo, tem 23 anos de contacto regular com a cidade, apenas interrompido durante a Pandemia.

Mas Paulo Teixeira não foi um turista deslumbrado pela festa de Salvador. Com as amizades que foi criando, de uma forma improvável para qualquer país europeu, tornou-se um verdadeiro baiano, conhecendo os recantos mais inesperados.

Teve, por isso, acesso à verdadeira festa, a espontânea e a de duração imprevista, e acima de tudo ao rebuliço da multidão, com o seu linguajar inventivo. Foi tudo isso, ao jeito do romance modernista americano do início do século XX, como Manhattan Transfer, de John dos Passos, que quis captar em Não Digas o que a Baiana Tem, a sua estreia no romance, depois de um longo e consagrado percurso poético, iniciado em 1985.

Nascido em 1962, Paulo Teixeira tem a sua poesia reunida em O Último Poeta Romano, lançada em 2020, tendo publicado entretanto outros dois volumes de poemas: A Comoção do Mundo e A Boda dos Tempos

Depois de décadas de poesia, um romance. Projeto antigo ou uma vontade recente?

Tive, desde cedo, a ideia de escrever um romance. Fiz uma primeira tentativa, aos 20 anos, que ficou na gaveta. Não sei se foi por ter tido algum reconhecimento como poeta, se foram as rotinas da minha vida profissional a tornar mais difícil essa aposta. Porque, de facto, a escrita do romance exige uma continuidade, dia após dia, para que não se perca o fluxo, o encadeamento das falas e dos episódios. Enquanto que o rascunho de um poema pode muito bem ser escrito numa tarde.

Não Digas o que a Baiana Tem, Caminho, 344 pp, 19,90 euros

Teve agora oportunidade para essa escrita mais continuada ou foi a narrativa que a impôs, sem lhe dar alternativa?

Se a ideia de escrever um romance é antiga, a de escrever Não Digas o que a Baiana Tem não deixa de o ser também. Foi ainda em Salvador da Bahia, alguns anos depois de lá ter ido pela primeira vez, que a ideia ganhou corpo. Tudo começou com uma residência literária, que mudou o horizonte das minhas viagens (até à altura viajava sobretudo na Europa), e culminou comigo a viver na cidade durante 10 anos. É quando me instalo lá e já conheço muito bem a realidade, fruto das muitas amizades que fiz, que surge a vontade de reproduzir num romance aqueles diálogos e aquelas festas que, acredito, são completamente desconhecidas dos leitores portugueses. 

Era uma realidade demasiado sedutora para a literatura ficar à margem?

Era sobretudo um enorme desafio, porque não tinha lido nenhum romance que fixasse essa realidade. Há alguns filmes que a retratam, nomeadamente Ó Paí, Ó, mas mesmo aí não me lembro de aparecer a festa de rua, a que não é a canónica, como a Lavagem do Bonfim ou a de Iemanjá, que fazem parte do calendário litúrgico. Estou a falar da festa espontânea com som de carros. 

A poesia não seria o meio adequado para captar essas festas?

Na minha reunião de poemas, O Último Poeta Romano, incluí, como inédito, um livro de poemas brasileiros, Calepino. Alguns são retratos a cru da realidade de Salvador. Um sobre a praia, a partir do que se vê da balaustrada do Porto da Barra, com o movimento permanente dos ambulantes e os seus pregões. E há outro poema sobre a Festa de Santa Bárbara, no qual a violência irrompe, com um rapaz que aparece morto no final. É possível captar esta realidade em poesia, em poemas mais extensos e descritivos. Mas era um romance que eu queria escrever. 

Iniciou-o ainda em Salvador?

Fui recolhendo material ao longo dos meses e dos anos. A partir de certa altura tinha um acervo que me permitia trabalhar. 

Fez uma recolha como se fosse um antropólogo?

No prólogo do romance, o narrador diz que Isabel, a personagem principal, não queria ser uma antropóloga. Mas claro que foi preciso ir além da Salvador dos turistas. Para escrever um romance sobre aquela realidade é preciso ir muito mais longe, o que leva muito tempo. Não é numa visita ou em três semanas que se fica a conhecer Salvador. Desde logo porque é preciso ultrapassar o medo, é uma cidade perigosa, tem de se perceber onde se pode pôr o pé e temos de ser aceites. É necessário possuir amigos e amigas que vão connosco ou esperam por nós. A partir desse momento estamos seguros, podemos participar e assistir a tudo. A mim, levou-me anos. 

Se a Salvador do turista já é exuberante, a que descreve neste livro é muito mais….

Sim, sim. São momentos de grande intensidade. Porque a violência ronda e nunca se sabe bem o que vai acontecer. O risco faz parte da experiência. Em determinado momento do romance fala-se em adrenalina: a Isabel procura momentos em que a possa libertar. São de facto momentos únicos, também por serem breves. Estas festas de rua começam e podem ser interrompidas pela polícia ou por um tiroteio. Também há as que se prolongam inesperadamente, mas como dá a entender o narrador: “É melhor não ficar para o último autocarro da noite…”

A linguagem também foi determinante para a escrita deste romance? Ela também é uma festa…

Um dos propósitos iniciais era justamente dar a conhecer essa riqueza e criatividade da linguagem popular. O vernáculo, a gíria, a capacidade natural do baiano de produzir metáforas originais. Neste romance, o ato da fala situa-se no centro da própria narrativa. Foi sem dúvida um ponto de partida, eu queria reproduzir a maneira como os jovens falavam e o papel que a metáfora aí desempenha, porque eles são grandes criadores de imagens. 

Às vezes, até parece que estamos perante uma outra língua.

No momento de escolher o seu destino de expatriação, a Isabel, como nos conta o narrador [risos], escolheu uma cidade em que desconhecesse pelo menos um terço dos vocábulos que a população fala na rua. Procurei que o leitor passasse por essa experiência de fricção linguística, deparando-se com palavras que não conhece. Depois de as ler muitas vezes pode descobrir o sentido, ou talvez não. Mas isso faz parte da experiência de Salvador. Eu já domino esse vocabulário, poderia perfeitamente escrever um conto em baianês [risos]. É uma gíria complexa, que varia de bairro para bairro. E há muitas palavras com mais do que um sentido. 

Consegue dar um exemplo?

Rango, que à partida designa comida, uma refeição, mas noutros contextos usa-se quando se está com fome. Estou com um rango… Aliás, uma alemã que conheci em Salvador dizia-me que só precisava de uma palavra para comunicar na cidade: comer. Pois com ela podia designar o ato de comer e de beber (usa-se muito a expressão “comer água”, que normalmente se refere a beber álcool), sem esquecer que comer também é aquilo que nós sabemos muito bem o que é [risos]. Com uma única palavra todas as suas necessidades estavam satisfeitas.

É um movimento poético, esse de criar imagens e metáforas, de fugir à norma?

Há uma grande capacidade imaginativa e de efabulação. Estamos perante fantasistas naturais que ficcionam permanentemente as suas vidas, criando micro-narrativas que, na Bahia, ganharam o nome de resenha. São disputas verbais, acompanhadas de bebida, que podem durar horas. A única arma é a criatividade linguística, numa permanente tentativa de superação do outro. Tudo com muito bom humor. As metáforas e as comparações são ousadas. Não se trocam elogios. 

É um exemplo do idioma como um ser vivo? Não há norma que o domine?

No Brasil, sim. Ano após ano, surgem novos vocábulos, num movimento que é próprio da gíria. Também se apropriam de palavras existentes, atribuindo-lhes novos significados.

As desgarradas portuguesas são sempre mais contidas…

No romance, fala-se poucas vezes de Portugal. Mas é quase sempre apresentado como um país triste. Refere-se a melancolia de que falam os turistas. A minha opinião não é diferente [risos]. Portugal é um país mais próximo de um velório do que de uma festa. Não tem nada a ver. Também é evidente que Salvador não é todo o Brasil. Suponho que o sul do país seja muito diferente. Nem todos os brasileiros são tão divertidos e extrovertidos como os baianos. 

Uma realidade tão diferente, como é a de Salvador, também pedia um romance diferente?

Não tive qualquer preocupação em ser original ou desejo de fazer experiências. Esse tempo, parece-me, de alguma maneira já passou. Quis ser fiel à realidade e à linguagem falada nas ruas. Também quis captar a velocidade a que as coisas se passam numa grande cidade brasileira, em particular o movimento caótico da multidão. Foi por isso que tentei reproduzir os pregões, as interjeições, as frases soltas, os insultos, a música dos carrinhos de café. Como se a cidade fosse, ela própria, uma personagem. 

Quis ser fiel à realidade e à linguagem falada nas ruas. Também captar a velocidade a que as coisas se passam numa grande cidade brasileira, em particular o movimento caótico da multidão

Podemos dizer que este livro é uma educação sentimental da Isabel?

Sim. A Isabel representa uma jovem portuguesa, que não é pretenciosa, que é simples e discreta. Contrasta com a exuberância da mulher de Salvador, com Jamile, capaz de verbalizar as histórias mais incríveis e escabrosas. E, na verdade, ao longo da sua estadia na cidade, a Isabel passa por um período de aculturação. Até ao ponto de se tornar na Isabéu. É toda uma educação sentimental que vem acompanhada de um desdobramento da sua figura, sobretudo no modo como é vista pelos seus novos amigos. Acaba por aderir àquela realidade e por transformar a própria vida em fábula.

E como chegou à protagonista, à Isabel?

Procurei uma personagem global deste século XXI. Se o romance se passasse hoje ela seria seguramente uma nómada digital [risos]. Mas a narrativa decorre noutro tempo. Embora não seja referido diretamente, estamos no primeiro governo de Dilma Rousseff, quando a cidade teve um prefeito evangélico e estava um pouco abandonada. Nesse contexto, quis uma pessoa como as outras, não uma heroína ou anti-heroína, nem alguém que fosse porta-voz da agenda do trauma ou de qualquer ideologia dominante. Alguém quase anónimo para poder desaparecer e dar lugar à realidade envolvente. A Isabel umas vezes é protagonista, noutras figurante. Acredito que já não há heróis, no verdadeiro sentido do termo. 

Essa convicção aplica-se só ao romance ou também ao nosso tempo?

Ao nosso tempo, claro. Não temos grandes modelos. Basta olhar para a política… Mas também em termos literários… Já não encontramos aquelas figuras que no século XIX se destacaram. Um Victor Hugo, por exemplo, ou um Charles Dickens. Há, sim, demasiados nomes em todos os domínios – na música, nas artes plásticas, no cinema. Hoje é muito mais difícil sobressair. Somos todos personagens secundárias.

Nascido em plena pandemia, sob a direção artística de José Pinho, que tinha o sonho de torná-lo um “festival de referência da língua portuguesa”, como sublinhou em entrevista ao JL [ed. 1346], em maio de 2022, o Festival Lisboa 5L chega à sua 5ª edição pronto a reinventar-se.

Em 2025, aquele que é o único festival literário nacional organizado por uma rede de bibliotecas, a Rede de Bibliotecas de Lisboa, propõe-se “pensar a Língua a partir da ideia de inovação”. Para isso, desafiou três curadores, Carlos Vaz Marques, Catarina Magro e Jorge Amorim, a desenharem uma programação que refletisse o tema Inovação: Utopia / Distopia.

“Inovação sugere o entusiasmo da “utopia”, mas carrega também em si a ameaça da “distopia”. Entre estes dois pólos, a literatura permite-nos explorar sonhos e receios, anseios e angústias”, explica Carlos Vaz Marques relativamente ao programa que, segundo Edite Guimarães, Chefe de Divisão da Rede de Bibliotecas de Lisboa, quer-se “caminho de reflexão, de capacitação, de combate à desinformação e a outras formas de censura, nestes dias que, sendo reais, muitas vezes nos parecem ficção”.

Inovação sugere o entusiasmo da “utopia”, mas carrega também em si a ameaça da “distopia”. Entre estes dois pólos, a literatura permite-nos explorar sonhos e receios, anseios e angústias

carlos vaz marques

De olhos postos no futuro, a grande festa da língua portuguesa arranca a 5 de maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa, na Biblioteca Palácio Galveias, com um programa educativo que leva as mediadoras da Rede de Bibliotecas de Lisboa às escolas da cidade para propor leituras e atividades em torno de livros escritos por autores portugueses. Nos restantes três dias (9, 10 e 11), porém, segue para um novo palco: o Beato Innovation District.

O programa destinado a este espaço, “de pensamento livre e esclarecido que olha o português do futuro como o produto saudável de um sistema dinâmico em constante mudança”, nas palavras de Catarina Magro, conta com vários concertos, conversas, espetáculos, exposições, oficinas e palestras, todos de entrada livre e gratuita.

[É um programa] de pensamento livre e esclarecido que olha o português do futuro como o produto saudável de um sistema dinâmico em constante mudança

catarina magro

Haverá tempo para discutir “acerca do que só ao humano é possível”, promete Carlos Vaz Marques, debater “os novos desafios linguísticos colocados pela revolução tecnológica e cultural em curso”, assegura Catarina Magro, e ainda, revela Jorge Amorim, refletir sobre “como podemos preservar a originalidade, o conhecimento e o pensamento crítico”, numa era em que as máquinas começaram a gerar textos e a Inteligência Artificial está na palma da mão de quem quer que tenha um telemóvel.

[vamos refletir] como podemos preservar a originalidade, o conhecimento e o pensamento crítico

Jorge amorim

Palestras, conversas e debates

Centro da programação pensada para o Beato Innovation District são as palestras, conversas e debates, que juntam linguistas, especialistas em filosofia da linguagem, cientistas da computação e criativos.

No dia 9, na Sala das Massas, Tracie D. Hall conduz a palestra “Desinformação, censura de livros e o fim da democracia” (17h), e Patrícia Anzini, Beatriz Santana e Inês Anta de Barros abordam o tema “Inteligência artificial na escrita e educação — pontes para o futuro”, numa conversa moderada por Jorge Amorim (18h).

A 10, na Sala da Amassaria, Rui Torres, responsável pelo Arquivo Digital da Literatura Experimental Portuguesa, fala sobre “5Ls alternativos para entender as práticas literárias experimentais” (12h), Robert Berwick conversa (por videoconferência) com Pilar Barbosa sobre “Língua e mistério: as origens da faculdade da linguagem” (16h), e Carlos Fiolhais, Luís Filipe Silva e Rui Cardoso Martins questionam-se se “A ficção científica já deixou de ser ficção?”, num debate moderado por Luís Ricardo Duarte (17h30).

Também a 10, na Sala das Massas, Cristina Flores, Joana Teixeira e Joaquim Segura debatem “O Português do futuro”, com moderação de Ana Costa (12h30), Amin Maalouf conversa com José Mário Silva (15h), António Feijó e Pedro Mexia debatem se “Ainda há vanguardas literárias?” (16h30), Antónia Coutinho e João Veloso, moderados por João Costa, falam de “Palavras com mau género” (18h), enquanto que Ricardo Araújo Pereira e Francisco José Viegas abordam o tema “Os novos luditas”, num debate moderado por Isabel Lucas (19h30).

Na Sala da Padaria Velha, João Paulo Silvestre e Isabel Macedo, moderados por Henrique Monteiro, questionam-se se “Na ortografia não se mexe?” (17h) e Valério Romão, Sandra Guerreiro Dias e Sal Nunkachov discutem se “A experimentar a poesia experimenta-nos”, com moderação de Manuel Portela (18h30).

No último dia de evento, 11, a Sala das Massas recebe a palestra de Alberto Manguel: “A ficção distópica a imaginar desastres” (12h), a conversa de Juan Villoro com José Alberto de Carvalho (15h), o debate entre Samuel Úria e Capicua, com moderação de Nuno Artur Silva, “O ofício da língua” (16h30), uma conversa entre Paul Lynch e Isabel Lucas (18h) e o debate entre Dulce Maria Cardoso e Lídia Jorge, com moderação de Ana Sousa Dias, “O que só aos humanos é possível” (19h30).

Na Sala da Amassaria, decorrerão a palestra “A língua portuguesa na era da IA”, com António Horta Branco (12h30), os debates “Novilínguas”, com Inês Duarte, Teresa Botelho e Teresa Marques, e moderação de Patrícia Fernandes (16h), “Reler Utopia de Thomas More”, com Rui Tavares e Miguel Morgado, e moderação de Bárbara Rei (17h30), e “A língua da máquina”, com Arlindo Oliveira e Robert Clowes, e moderação de Raquel Amaro (19h).

Esposições, concertos e espetáculos

Uma componente do Festival 5 L que sempre foi muito importante é a ligação do evento a outras artes. A edição de 2025 não é exceção. No espaço exterior do Beato Innovation District, estarão patentes, ao longo de todos os dias do festival, as exposições Desenha-me uma Máquina, que nasceu do desafio lançado a vinte ilustradores portugueses para representar uma máquina imaginária acompanhada do respetivo manual de instruções, e Todas as coisas são mesa para os pensamentos, a qual, a partir do acervo de máquinas de escrever do Banco Santander, apresenta obras de poesia visual de artistas como Mané Pacheco, Xavier Ovídio, Ed Ruscha, Fernando Aguiar, Dom Sylvester Houédard, Ana Hatherly ou Leonora de Barros, entre outros.

Estão previstas também diversas propostas na área da música. No dia 9, Drumming – Grupo de Percussão, Beatriz Batarda e António Jorge Gonçalves sobem ao palco com o espetáculo multimédia “São feitas de palavras as palavras” (21h), depois do qual arranca o DJ set (23h) preparado pela Associação Rimas ao Minuto.

A 10, Ana Sofia Paiva, Jorge Cunha Machado e Simon Franke apresentam “Unicórnios e Violetas” (21h), um concerto narrativo sobre a língua e o amor, seguido de “Cidade Nua” (22h), pela Lisbon Poetry Orchestra.

A 11, Cristina Paiva serve “Poesia à la Carte” (16h) numa performance com propostas poéticas para todos, e Ana Lua Caiano encerra, com a sua música, a presente edição do evento.

Lançamentos, apresentações e oficinas

A decorrer um mês antes do arranque da Feira do Livro de Lisboa, a 5ª edição do 5L incluirá também, no dia 10, o lançamento dos livros “Nós” (16h), com a presença do autor David Machado e do ilustrador João Fazenda, e “A Pequena Comunista que Nunca Sorria” (17h30), com a presença da autora Lola Lafon e do tradutor Luís Leitão.

Apresentam-se ainda “A Arte de Gostar de Ler” (9 às 16h), com o autor Carlos Nuno Granja e o escritor José Fanha, e “Salvar o Tempo” (10 às 11h), com os autores Ricardo Fonseca Mota e Rachel Caiano.

Por fim, estão previstas diversas oficinas, tanto para os profissionais do setor, como “Literatura infantojuvenil e sociedade”, como para o público em geral, como “Poemas mecânicos” e “Explorar o ChatGPT para a escrita do dia-a-dia”.

A primeira utiliza máquinas de escrever para desafiar os participantes a descobrir os “poemas mecânicos” escondidos em cada tecla e funcionalidade, enquanto que, na segunda, munidos do seu próprio computador, estes poderão experimentar IA na produção de texto e técnicas para melhorar as respostas.

Palavras-chave:

Revisitar a prática, o património e si mesmo, que é como quem diz refletir sobre “histórias pessoais e culturais – histórias de migração, trabalho, género e propósito”. São estas as linhas orientadoras da 9.ª edição do Festival DDD – Dias da Dança, a decorrer até 4 de maio, no Porto, em Matosinhos e Vila Nova de Gaia.

Hoje, 30 de abril, às 19h30, sobe ao palco do Teatro Rivoli, no Porto, C. C. (Crematística e Contraforça), uma peça de Vera Mantero e Cúmplices que explora as contra-forças da vida e um universo no limiar do sonho enquanto lugar onde se ensaia a nossa capacidade de mudança.

À mesma hora, na black-box da CRL – Central Elétrica, no Porto, apresenta-se também e nunca as minhas mãos estão vazias, nova criação de Cristian Duarte em companhia, que, num Brasil de constantes transformações, “propõe um olhar sobre como estar junto na diferença e reafirmar a vida diante das adversidades”, diz o coreógrafo paulista.

No Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery, Sónia Baptista apresenta, às 21h30, KING SIZE, espetáculo que confronta os dispositivos de criação de performances drag contemporâneas com os códigos rígidos de representação de género na dança e no teatro tradicionais. Por fim, às 21h30, no Teatro Municipal do Porto – Campo Alegre, William Forsythe explora as raízes e as origens da dança folclórica, do hip-hop e do ballet através de Friends of Forsythe.

A 2 de maio, às 17h, no Parque das Águas, no Porto, Aboreus, da Ordem do O de Pedro Ramos, faz da árvore cosmos, casa, caminho, um portal para o sistema nervoso, um livro, uma biblioteca ou uma catedral. O mercado do Bulhão recebe a companhia Demolition Incorporada, de Marcelo Evelin, com a ópera Bananada: OPERANTÍPODA (parte I) (2 e 3, às 19h30), primeiro momento de Bananada, uma criação para 24 intérpretes. Ana Isabel Castro leva o seu Adoçar ao palco do Auditório Municipal de Gaia, dia 2, às 21h30, e dia 3, às 15h.

Adoçar, de Ana Isabel Castro, sobe ao palco do Auditório Municipal de Gaia, dia 2, às 21h30, e dia 3, às 15h FOTO: João Octávio Peixoto

A única regra da Festa que as Fylhas do Dragão dão, dia 3 de maio, no palco do Teatro Rivoli, às 22h30, é não parar de dançar. Já Marco Oliveira funde as danças urbanas com a riqueza da música tradicional portuguesa e os ritmos do breakbeat em P_Z_L_S, às 15h, no Parque da Pasteleira, no Porto.

Nos últimos dois dias, no Auditório de Serralves, às 17h, André Uerba, investiga estruturas, políticas e práticas de intimidade, em Æffective Choreography, enquanto Eisa Jocson e Venuri Perera sobem ao palco do Teatro Municipal do Porto – Campo Alegre com Magic Maids, uma luta contra as estruturas que desprezam as mulheres, dia 3, às 19h30, e 4, às 15h.

Nos mesmos dias às mesmas horas, no Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery, Camilo Mejía analisa a relação intrincada entre o seu corpo e a salsa, no esptáculo VAIVÉN.

Mont Ventoux, do coletivo KOR’SIA, em cena no Teatro Rivoli, dia 3, às 21h30, e 4, às 19h30 FOTO: Maria Alperi

Vagabundus, uma performance de Ídio Chichava, no Teatro Municipal do Porto – Campo Alegre, dia 3, às 21h30 e 4, às 17h, junta 13 intérpretes que dançam e cantam músicas moçambicanas antigas e atuais, gospel e motivos barrocos. Com Mont Ventoux, o coletivo KOR’SIA revisita Ascesa al monte Ventoso, de Petrarca, no Teatro Rivoli, dia 3, às 21h30, e 4, às 19h30.

A 4 de maio, às 16h, Elisa Miravalles realizará a performance Encontros instáveis, especificamente criada para o espaço situado na Rua Sra. das Dores, no Porto, onde se encontra o complexo habitacional projetado por Álvaro Siza.