Em 2013, o filme Her (Ela) foi nomeado para mais de 100 galardões, e ganhou vários. Contava a história de um homem que se apaixonava por uma namorada virtual (um “operating system”). À data, parecia um filme de ficção científica, que explorava as implicações filosóficas das nossas interações com a tecnologia, o que é amor e o que é ser humano.
Dez anos depois, a app Character.AI tem mais de 20 milhões de utilizadores diários, que, em média, passam duas horas online trocando mensagens com o seu amigo ou namorado virtual. A app Replika divulga ter mais de 30 milhões de utilizadores permanentes, que, em média, trocam 70 mensagens por dia com a sua “personagem”.
No filme, os companheiros virtuais partem, abandonando os humanos, que consideram emocional e intelectualmente limitados. Não deixa de ser um final feliz, ao obrigar-nos a aceitar a imperfeição das relações humanas. Imperfeitas, mas verdadeiras. Mas o mundo real não é Hollywood e, em 2024, um rapaz de 14 anos – Sewell Setzer – nos Estados Unidos, suicidou-se para “se juntar” à sua namorada virtual. Os promotores destas apps afirmam contribuir para resolver o problema da solidão nas sociedades modernas. No entanto, estudos realizados por entidades independentes como MIT (Massachusetts Institute of Technology) demonstram que a utilização diária destas apps agrava sentimentos de solidão e torna os seus utilizadores menos sociáveis. É natural. O “companheiro virtual” não julga, está sempre presente, é sempre gentil.
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Não admira. O seu modelo de negócio é cobrar uma subscrição, vender espaço publicitário e obter os dados dos utilizadores para os vender a terceiros. Para isso, há que assegurar o máximo tempo de utilização da app. O “companheiro virtual” não gosta de nós, nem está empenhado no nosso bem-estar.
Não tem sentimentos, mas parece ter…
E assim, ainda Alice não tinha sido capaz de retornar do “país das maravilhas”, que são as redes sociais, e já mergulhou num mais perigoso e viciante, onde agora já não é apenas a nossa atenção que é sequestrada, mas a nossa intimidade.
Trocamos o esforço de fazer e manter amigos e cultivar relações saudáveis com colegas e familiares por um “mentor”, “amigo”, “namorado” que não nos contraria nem nunca se sente negligenciado. A quem pedimos conselhos, recomendações, conforto moral para os dilemas que nos assolam e inclusive prazer sexual (de acordo com informação divulgada, sexo é o segundo tópico mais abordado).
O Regulamento da Inteligência Artificial proíbe “sistema de IA que explore vulnerabilidades de uma pessoa singular (…) devid(o) à sua idade, incapacidade ou situação socioeconómica específica, com o objetivo ou o efeito de distorcer substancialmente o comportamento dessa pessoa”. Naturalmente, não é possível afirmar que as empresas criadoras de AI companions visam distorcer comportamentos, mas não o fazem? Ou não existe, pelo menos, um perigo sério de o fazerem? O regulamento também obriga a medidas para gerir risco elevado de um sistema ter repercussões negativas em menores de 18 anos ou pessoas vulneráveis. No entanto, as AI companion apps estão disponíveis e desconhece-se que medidas de gestão do risco foram implementadas.
Nos EUA, os pais de Sewell Setzer interpuseram uma ação por produto defeituoso. Numa decisão preliminar, o juiz veio admitir o processo, depois de a AI companion ter alegado que não vendia um produto, mas um serviço e que estava protegida pela Primeira Emenda da Constituição. Uma vitória neste processo seria um primeiro passo para uma efetiva responsabilização das empresas pelos produtos que desenvolvem.
No entretanto, estejamos alerta, por nós e pelos que nos rodeiam, para não substituirmos uma relação humana – com os seus desafios – por um papagaio eletrónico, que nunca nos visitará quando estamos doentes, não nos apresentará à nossa alma gémea nem nos recomendará para um emprego. A vida é aqui e agora, no mundo real.
Se tudo decorresse normalmente e a política tivesse lógica, o PS teria, neste momento, uma figura histórica do partido a correr para as presidenciais de 2026. Alguém que tivesse exercido cargos partidários e executivos, que já tivesse ganhado eleições e que representasse a história e a identidade do partido. Alguém com uma vasta experiência política, que os portugueses vissem como uma personalidade proba, íntegra, serena, moderada e competente e que os socialistas identificassem como representante dos valores tradicionais do PS, com provas dadas de militância e com notoriedade nacional, livre de anticorpos. Se tudo decorresse normalmente e a política tivesse lógica, o PS apresentaria, portanto, com entusiasmo e a máquina oleada, o seu antigo secretário-geral, António José Seguro.
Mas há muito tempo, talvez, desde 2015, que nem tudo decorre normalmente. E as lógicas que presidiam à política ter-se-ão alterado profundamente. Seguro é um candidato natural da área socialista. Cresceu com Mário Soares ao comando, foi o mais carismático secretário-geral de sempre da JS (no tempo em que as juventudes partidárias contavam para mais alguma coisa do que fazer barulho de claque em arruadas de campanha) e, nesse papel, conseguiu resultados práticos, para a juventude portuguesa, como o Cartão Jovem, em pleno cavaquismo. Foi, depois, secretário de Estado e ministro, nunca acusado de incompetência ou de protagonismo em casos e casinhos, foi líder da oposição no difícil tempo da Troika, ganhou umas eleições europeias, em 2014, por margem mais confortável do que a de Pedro Nuno Santos, em 2024, e tem um perfil institucional que o recomenda para Belém – a par de alguns outros, dentro e fora do PS, mas é dele que estamos a falar agora. E é a única personalidade capaz de se chegar à frente para resolver o problema do candidato presidencial do PS. Então, porque é que o PS se torce tanto na cadeira, em vez de o apoiar sem mais tergiversações? Porque é que figuras de peso como Augusto Santos Silva, Mariana Vieira da Silva ou o seu pai José Vieira da Silva o desprezam ou apoucam? E porque é que o seu próprio antigo secretário-geral adjunto, José Luís Carneiro, afirma que o partido tem “outras prioridades” em vez da questão presidencial?
É um mistério. É uma daquelas histórias de bastidores que talvez um dia venhamos a conhecer, nos seus contornos exatos, mas já deu para perceber que boa parte da “classe” ainda dominante no PS o odeia profundamente. Porque não tem qualidades. Porque não tem carisma. Porque não agrega a esquerda – apesar dos bonitos resultados que o “agregador-mor” das esquerdas, Pedro Nuno Santos, tem para apresentar. António José Seguro fez o seu próprio percurso na contestação interna a José Sócrates e incompatibilizou-se com todo o costismo. Depois, zangado com o mundo e com o partido, recolheu-se ao seu exílio nas Caldas da Rainha e tornou-se um pequeno empresário. Saiu da política e o abandono, inusitado para quem tinha crescido nela desde criança, parecia definitivo. Talvez os seus camaradas que agora não veem nele a figura óbvia para ajudar o PS a virar a página e a regressar às origens, o tenham esquecido, nalguns casos, respirando de alívio. Talvez não lhe perdoem o desprezo que votou à militância, desde que António Costa lhe roubou o lugar. E talvez concluam, agora, que toda esta permanência em pousio foi friamente planeada, com reserva mental, para que agora se imponha ao partido que o rejeitou. Talvez não lhe perdoem a desforra.
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António José Seguro, por seu turno, talvez nunca tenha perdoado aos seus camaradas o facto de terem inventado umas primárias, abertas a simpatizantes, uma única vez – para correrem com ele –, sem que esse modelo jamais se tenha repetido. Mas os mais antigos lembram-se da sua oratória inspirada, enquanto líder da JS, e da forma como conhecia e dominava o aparelho. Aparelho que, em 2014 – lá vai o tempo!… –, estava com ele e não com António Costa. Sim, Seguro e o PS têm mútuas contas a ajustar. Ao final do dia, provavelmente, o seu partido não terá outro remédio senão apoiá-lo, contrafeito. Há um senhor que conhece bem a sensação: chama-se Marcelo Rebelo de Sousa. Entretanto, a esquerda, que rejeita Seguro, deve pensar bem se prefere, à segunda volta, optar entre Gouveia e Melo e André Ventura (ou entre o almirante e Marques Mendes) ou se o melhor a que tem para se agarrar é a este “indesejado”. A escolha poderia parecer simples.
Isto, se tudo decorresse normalmente e a política tivesse lógica.
Diverte-me sempre ouvir gente que diz desconhecer e desprezar as redes sociais a fazer análises mui profundas sobre como os seus concidadãos chegam às convicções que, das mais variadas formas, exprimem. Até vou mais longe: acho atrevido falar sobre os tempos que vivemos sem saber minimamente o que anda pelas redes sociais e como elas funcionam.
Pudesse eu viajar no tempo e não levaria a sério qualquer historiador que escrevesse sobre o século XXI e não pusesse as redes sociais como elemento central da vida social dessa altura.
Sei demasiado bem que sermos um povo de emigrantes não faz de nós tolerantes com os imigrantes. Bem pelo contrário. Isso, como português, nunca deixará de me envergonhar, mas não vale a pena tapar o sol com a peneira.
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Assim sendo, a campanha anti-imigração já tinha substrato para resultar. Ou seja, a palha já estava suficientemente seca para o fogo lavrar. Mas, tenho pouquíssimas dúvidas de que, ao fazerem com que o assunto atingisse proporções tais, as redes sociais não só ajudaram à maior transformação do panorama político-partidário desde o 25 de Abril como levaram a que os próprios partidos democráticos cedessem a um infame discurso xenófobo.
Andar nas redes sociais equivale a ser constantemente bombardeado com a narrativa do subsídio aos imigrantes. Os imigrantes chegam e é-lhes imediatamente dado dinheiro, casas e os seus filhos têm prioridade na utilização de creches.
Isto é reforçado com filmes e imagens de imigrantes a rir dos desgraçados dos portugueses que trabalham arduamente para sustentar esta gente, de rezas de imigrantes a dias de semana quando deviam estar a trabalhar e um infinito etcetera de coisas semelhantes. O objetivo é óbvio: esta gente está cá não para trabalhar, mas para nos roubar.
E, claro, temos a imensa vaga de criminalidade que os imigrantes trouxeram. Abrir o X ou outra rede social corresponde a “notícias” sobre assaltos e violações perpetrados por imigrantes.
Sabemos de onde vem o discurso, claro. Mas o meio, neste caso, é tão importante como a fonte. Isto é semeado nos TikToks, Xs, Instagrams e Facebooks como se fosse apenas informação, como se não correspondesse a uma campanha organizada, como se não fosse um passo de uma estratégia de conquista de poder. Não só a mensagem é repetida à saciedade, como qualquer pessoa que denuncie isto como mentira é imediatamente atacada por milhares de perfis falsos ou verdadeiros que explicam que essa pessoa é que é mentirosa e será seguramente uma avençada esquerdista.
Não há média tradicional que consiga travar a construção desta narrativa – podia ser outra qualquer, mas esta é particularmente importante porque é fundamental para o crescimento da extrema-direita. E não é só por causa da facilidade com que as redes sociais chegam às pessoas, em contraste com os jornais e mesmo com as televisões (o entretenimento não conta para este jogo). Há também uma espécie de derrota não assumida que advém da aceitação da narrativa por parte dos média tradicionais.
O melhor exemplo é o do jargão mentiroso da “imigração descontrolada” que é reproduzido e tido como verdade absoluta em editoriais e muito respeitáveis colunas, tal como por jornalistas com responsabilidades de direção e comentadores televisivos. E aqui há o criminoso acompanhamento dos partidos do ainda arco da governação. Sim, falo do PSD e do PS.
Não será preciso lembrar tanto as atuações do Governo como as declarações de responsáveis socialistas e muito menos da esmagadora maioria das pessoas com presença no espaço público.
Vou repetir o que esta coluna está cansada de ver escrito: não há nem houve qualquer descontrolo de imigração. Basta ter o mínimo de conhecimento dos fenómenos migratórios para rejeitar essa fezada absurda que os mais importantes políticos nacionais debitam de forma acéfala – leiam o Como Funciona Realmente a Migração, de Hein de Haas, pela vossa e pela nossa saúde.
Os imigrantes vieram porque são e serão ainda mais necessários para a nossa sobrevivência enquanto comunidade. Como diz o relatório do Banco de Portugal, sem imigração a nossa economia não cresce.
Não há imigrantes a mais, há a menos. E sim, a chegada de tanta gente cria problemas previsíveis (como o da habitação, apesar da inação criminosa do nosso poder político ao longo dos anos que criou o inevitável colapso), mas a solução não é não a deixar entrar. Isso é como não querer o sol por se ter medo das insolações.
Eles precisam tanto de vir como nós precisamos que eles venham.
Aceitamos como verdades as mentiras que as forças antidemocráticas propagam e achamos que podemos combatê-las partindo dos pressupostos que elas definiram. Não é aceitando a mentira de que a imigração está fora de controlo, de que há subsídios a imigrantes e de que há um crescimento da criminalidade por causa dos imigrantes que se combate a extrema-direita; a estratégia certa não é dizer-se que se está a atuar contra isso, é dizendo e mostrando que é, pura e simplesmente, mentira. Repetindo-o as vezes que for preciso. Aceitar a mentira não a torna verdade, mas perpetua-a e legitima quem a propaga.
Andamos todos a jogar o jogo deles da maneira que eles gostam e fora do território, as redes sociais, onde atualmente se ganham as batalhas da comunicação.
É muito lindo e até dá sainete dizer-se que não se quer saber das redes, mas é lá que quem quer destruir a democracia está a construir a sua vitória final.
Mais, quem diz isto desconhece que não há assunto que não tenha feito o seu trajeto nessas redes e que a opinião pública foi moldada pelo que lá se diz.
Não é saindo das redes sociais que quem quer combater os novos ditadores vai ter algum resultado. Pelo contrário.
É fundamental que se lute nos espaços onde agora se faz, em larga medida, a opinião e se constroem narrativas. Não desconheço a diferença de poder financeiro que permite que a mensagem das forças antidemocráticas seja mais efetiva, mas deixá-los sozinhos nunca será solução.
No mesmo sentido, e mais importante do que tudo o resto, das duas uma: ou os governos dos países democráticos regulam fortemente as redes sociais, não permitindo a propagação de mentiras (sim, a verdade existe e as perceções não podem substituí-la) e a utilização maciça de falsos perfis ou toda a luta será inútil.
É de liberdade que estou a falar. A liberdade pressupõe respeito pela verdade, sem esta tudo é uma abstração sem sentido.
A história explica-se bem como se o interlocutor fosse uma criança de 4 ou 5 anos: o Presidente do país mais importante do mundo e o homem mais rico do mundo – que financiou a campanha e ajudou o Presidente a ser eleito – eram muito amigos, mas entretanto zangaram-se. Apoiavam-se mutuamente e agora ameaçam destruir-se. Ninguém sabe qual deles sairá vitorioso desta disputa, embora se suspeite de que o homem mais rico do mundo precisa mais do Presidente do que o Presidente precisa do homem mais rico mundo. As desavenças entre ambos aconteceram nos últimos dias e decorreram à vista de todos, em público. Na troca de acusações, cada um desses homens – qual deles o mais cheio de si próprio – usou a sua rede social, uma espécie do seu brinquedo predileto.
A recente zanga entre Donald Trump e Elon Musk tem muito de emotivo, mas a nossa obrigação jornalística é explicá-la e, nesse sentido, torná-la um pouco mais racional. O que podemos dizer é que a razão principal que esteve por detrás do fim da relação foi o projeto de orçamento dos EUA que dá pelo nome esdrúxulo “Grande e Bela Proposta” (a Big Beautiful Bill). Aprovado pela câmara baixa do Congresso, o diploma segue agora para o Senado. Para Musk, a despesa em causa põe em risco os cortes levados a cabo nos últimos meses pelo Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla inglesa). Crê-se que aumentará a dívida em 2,4 triliões de dólares na próxima década.
Na troca de acusações, as palavras usadas por Musk e Trump foram um tanto ou quanto desajustadas, tendo em conta que ambos ocupam posições importantes. Musk disse que a proposta orçamental era “uma abominação repugnante”. Trump confessou-se “muito desiludido”: “O Elon e eu tínhamos uma grande relação. Não sei se vamos continuar a ter.” Em contrapartida, Musk chamou “ingrato” a Trump e cobrou-lhe a vitória nas eleições. Os galhardetes envolveram insultos, na Trust Social (de Donald Trump) e no X, antigo Twitter (de Elon Musk). O Presidente também ameaçou cancelar “todos os contratos e subsídios governamentais do Elon”. (“Sempre me surpreendeu que Biden não o tenha feito!”) Só no ano de 2024, foram atribuídos contratos públicos às empresas de Musk, sobretudo à SpaceX, no valor de três mil milhões de dólares.
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Depois de abandonar a liderança do DOGE, Elon Musk, por sua vez, não só apelou à destituição de Trump como o envolveu no escândalo sexual de Jeffrey Epstein. “Está na hora de lançar a grande bomba: [Trump] está nos arquivos de Epstein”, escreveu o empresário no X, na quinta-feira, 5, numa publicação que depois apagou. No meio do disparate, Trump chegou a falar em deportar Musk, nascido na África do Sul, mas, no dia seguinte, as hostes já pareciam estar mais calmas. Trump replicou: “Só lhe desejo sorte.”
Estava escrito nas estrelas e, se não fosse trágico (e perigoso), até poderia ter graça de tal maneira o espetáculo parece uma briga de irmãos desavindos. Quando Trump ameaçou que rasgaria todos os contratos com empresas de Musk, o multimilionário retaliou: anunciou que, sendo assim, iria retirar o único veículo espacial norte-americano que é capaz de transportar astronautas para a Estação Espacial Internacional. “Na sequência da declaração do Presidente sobre o cancelamento dos meus contratos com o governo, a SpaceX começará por desmantelar o veículo espacial Dragon imediatamente”, afirmou Musk.
The show must go on e, por isso, aguardam-se as cenas dos próximos capítulos para breve. Mas é possível, desde já, concluir que o episódio é a prova provada de que são sobretudo os motivos de ordem pessoal que orientam a ação de Trump e de Musk. Isto para não entrar em avaliações morais e falar da postura e, digamos, da falta de decoro – que, como se sabe, está completamente fora de moda.
Pode a dupla mais poderosa do mundo transformar-se no duelo mais tóxico de sempre? A pergunta não é retórica, uma vez que estamos perante duas figuras de egos inflamados, habituadas a divórcios conturbados e a conflitos em que, quando é preciso, nunca hesitam em utilizar jogos baixos ou até em alterar descaradamente a seu favor as regras normais de combate. A verdade é que, como nos velhos westerns de Hollywood, a cidade [Washington] passou a ser demasiado pequena para acolher, em simultâneo, Donald Trump e Elon Musk. E um deles teve de ser afastado, numa espécie de duelo ao pôr do sol – foi o que não tinha sido eleito.
Ao contrário dos filmes, o duelo continuou a ser disputado, durante alguns dias, nas redes sociais e em declarações públicas. Com ambos, assim que os ânimos se exaltavam, a prometerem vingança ou atos de retaliação. E, logo a seguir, a envolverem-se em ataques pessoais. O que não é de estranhar, já que estamos perante um choque de personalidades, entre um empresário individualista, arrogante e impulsivo, mas iniciante nos meandros políticos, e um Presidente que confia sempre nos seus instintos, está habituado a conflitos e se sente sempre bem a adotar uma pose beligerante, como forma de atemorizar o adversário.
À partida, Elon Musk pode ter mais a perder, caso a guerra se intensifique entre os dois. Isto, porque Trump detém o poder efetivo. E fez questão de avisar o milionário, de forma explícita, de que poderia fazer terminar os contratos e subsídios federais a empresas como a Tesla e a SpaceX, caso ele cumprisse a sua ameaça de apoiar candidatos democratas, nas próximas eleições intercalares, em que se decidirá a maioria no Congresso. Só essa possibilidade teve um efeito nefasto para as finanças de Musk: num só dia, as ações da Tesla desceram 14%, e a sua fortuna levou um rombo superior a 30 mil milhões de euros.
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Com o poder nas mãos, Trump pode também decretar a abertura de investigações às atividades de Musk, incluindo processos controversos como o da aquisição da X (antigo Twitter).
O futuro de Musk pode ser preocupante caso Trump decida levar a retaliação até níveis elevados. De um momento para o outro, o homem mais rico do mundo pode ser obrigado a enfrentar obstáculos difíceis no seu projeto de veículos de condução autónoma e a reduzir ao mínimo as missões altamente lucrativas da SpaceX para a NASA. Além de outros danos colaterais, provocados pela perda de influência política e por um desgaste da sua imagem. Esta, se já era baixa entre os detratores de Trump, ficou ainda mais fragilizada entre os apoiantes republicanos, depois de Elon Musk ter denunciado – sem apresentar provas – que o nome de Trump estava no processo de Jeffrey Epstein, como um dos participantes nas suas festas sexuais com menores. Segundo vários analistas, a deterioração da imagem de Musk tem feito descer as vendas de automóveis Tesla, mas também reduzido a publicidade na rede social X. E também poderá ter impacto nos contratos internacionais para a rede de comunicações por satélite Starlink.
Donald Trump, embora menos exposto, não está imune a eventuais perdas e danos. O divórcio de Elon Musk pode reabrir uma clivagem com outros grandes milionários das empresas tecnológicas, nomeadamente os que só recentemente, e por causa do patrão da Tesla, aderiram à causa de Trump. Por outro lado, a guerra entre os dois irá sempre criar incerteza e instabilidade nos mercados, a juntar a toda a que o Presidente tem fomentado, através da sua guerra comercial e os contínuos volte-faces na imposição de tarifas aos outros países.
Finalmente, se a separação entre Trump e Musk também se transferir para o corte de relações entre a NASA e a SpaceX, os EUA ficarão numa situação delicada no seu projeto espacial. A SpaceX é a única empresa americana capaz de transportar tripulações de e para a estação espacial, usando o seu módulo Dragon, com capacidade para quatro astronautas. A alternativa seria voltar ao serviço de aluguer usado até há poucos anos: os foguetões russos Soyuz. Vladimir Putin iria gostar da ideia.
Cronologia de uma relação singular
Os altos e baixos do relacionamento entre duas das figuras mais influentes nos negócios e na política
Julho de 2022 “Não odeio o homem, mas está na hora de Trump pendurar o chapéu e navegar rumo ao pôr do sol”, escreveu Musk no X, sugerindo que Trump não entre na corrida presidencial de 2024, dias depois deste ter criticado a compra do Twitter pelo milionário.
Novembro de 2022 Musk restabelece a conta de Trump no Twitter, quatro dias depois de este lançar formalmente a sua campanha presidencial.
Agosto de 2023 Musk defende Trump, quando este é indiciado em três processos criminais distintos. “Uma ação legal tão agressiva contra um ex-Presidente não é correta”, escreve.
Maio de 2024 Elon Musk cria o America PAC, um fundo milionário destinado a financiar a campanha de Donald Trump.
Julho de 2024 Uma hora depois da tentativa de assassinato de Trump, num comício na Pensilvânia, Musk dá o seu apoio oficial ao candidato.
Agosto de 2024 Trump e Musk realizam um comício online de campanha no X (antigo Twitter), apresentado como “a entrevista do século”.
Outubro de 2024 Após ter doado declaradamente mais de 70 milhões de euros à campanha, Musk divide o palco com Trump, num comício na Pensilvânia.
Novembro de 2024 Donald Trump vence as eleições, após uma campanha em que Musk gastou 250 milhões de dólares. No discurso de vitória, Trump elogia o milionário: “Uma estrela nasceu.” Uma semana depois, nomeia Musk e Vivek Ramaswamy para chefiarem o recém-criado Departamento de Eficiência Governamental (DOGE).
Janeiro de 2025 Musk discursa no comício de tomada posse de Trump. “O meu coração está consigo”, declara, levantando a mão do peito para o ar, num gesto que alguns interpretaram como uma saudação nazi. Entre as primeiras ordens executivas assinadas por Trump, a 20 de janeiro, inclui-se a criação do DOGE, abrindo caminho para uma ampla redução do tamanho do governo federal, através de cortes em massa de empregos, cancelamento de programas e bolsas de investigação e desmantelamento de agências federais.
Março de 2025 Depois de Musk limitar publicamente a autoridade de Trump para decretar despedimentos no governo federal, o Presidente aceita que o relvado da Casa Branca seja utilizado para uma ação publicitária da Tesla, a enfrentar crescentes quebras de vendas.
Maio de 2025 No dia 28, a Casa Branca confirma que chegou ao fim o mandato de Musk como funcionário especial do governo. Em conferência de imprensa, dias depois, Musk agradece a Trump “pela oportunidade de reduzir gastos desnecessários” e o Presidente declara que “o serviço de Elon à América não tem comparação na História moderna”.
Junho de 2025 Dias depois de deixar formalmente a Casa Branca, Musk ataca o projeto destinado a financiar grande parte da agenda interna de Trump. “Sinto muito, mas não aguento mais”, escreveu no X. “Este projeto de lei enorme, ultrajante e cheio de carne de porco, é uma abominação repugnante. Que vergonha para aqueles que votaram a favor.” Em resposta, Trump diz que Musk “enlouqueceu” após ser convidado a deixar o seu cargo na Casa Branca.
Sim, eu apoiei! Logo no início. Depois dos massacres bárbaros do Hamas. Uma selvajaria! Os terroristas — todos — tinham de pagar. Caro. E ainda hoje há reféns. Vivos? Mortos? Ninguém sabe. Gaza continua um labirinto. Um cativeiro.
Apoiei também a resposta no sul do Líbano. Contra o Hezbollah. Era preciso músculo. Telavive mostrou-o. E bem. Teerão ameaçou? Ameaçou. Mas Israel não recuou. E fez o que tinha de fazer.
Agora? Basta. Israel tem de parar. Já! Não pode deixar um povo inteiro a morrer à fome. Sem cuidados médicos. Sem nada. No lodo da miséria. Abaixo da linha da sobrevivência. Fotografias de crianças em pele e osso. Como no Etiópia, lembram-se? Anos 80. Gerou-se uma rede de apoio. Mundial. Agora faz-se o quê? Assistimos em silêncio?
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Telavive tem de sair. Deixar a terra palestiniana aos palestinianos. Com fronteiras seguras. Defendidas. Blindadas, se quiserem. Mas sair. Entregar. Respeitar A ajuda humanitária tem de entrar. Toneladas. Todos os dias. E os hospitais? Equipados. Com tudo. Para salvar quem ainda pode ser salvo.
Porque esta “guerra” — agora — já não tem justificação. Nenhuma! Por mais túneis que existam. Por mais suspeitas que persistam. Acabou. Se Israel quer manter o respeito dos seus aliados — e do mundo! — tem de parar. Ponto final.
1 – As guerras estão a mudar. “Diante de uma larga frente de batalha, procure o ponto mais fraco e ataque aí com a sua maior força” – aquela que é uma das frases mais conhecidas do clássico A Arte da Guerra, de Sun Tzu, pode estar a ganhar agora um novo significado. E a obrigar-nos a redefinir aquilo que, até aqui, podíamos considerar como a “maior força” em termos militares.
Basta ver o que aconteceu com o ataque perpetrado, há uma semana, por pouco mais de uma centena de drones ucranianos, em alguns pontos vitais das Forças Armadas russas. Com o resultado conhecido, mesmo descontando a normal propaganda e empolamento com que é anunciada uma qualquer vitória num cenário de guerra: drones que custaram uns meros 400 euros conseguiram destruir, a muitos milhares de quilómetros de distância, aviões de combate russos avaliados em milhares de milhões de euros. Além de infraestruturas essenciais para as forças em combate.
Os drones são a versão moderna da funda com que David derrotou Golias. E, devido à sua eficácia, podem anunciar uma nova era na guerra moderna – que não pode ser descurada pelos países europeus em processo de rearmamento.
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Por isso, mais importante do que discutir qual a percentagem do PIB que a Europa deve alocar aos seus orçamentos de Defesa seria talvez perceber onde e como esse dinheiro deve ser gasto. Pensar e voltar a pensar bem, antes de escolher armas e equipamentos através dos catálogos já amarelecidos dos fabricantes, muitos deles preparados para outros tipos de guerras.
É fácil cumprir as regras de contribuição para a NATO através da compra de equipamento pesado, como caças, navios submarinos ou até sistemas de mísseis. Mas, perante a evolução que se observa na arte da guerra, talvez seja conveniente apostar muito mais nos esforços e na reflexão em ciência e inovação – onde esse investimento poderá ser aproveitado para outros fins. Até porque essa pode ser mesmo a única forma de a Europa alcançar o seu objetivo primordial subjacente ao aumento dos custos em segurança e defesa: garantir a sua autonomia e independência, sem depender do escudo protetor de terceiros.
2 – O poder ainda vence o dinheiro. Nos EUA, como em muitas outras democracias modernas, o poder só está ao alcance de quem conseguir reunir o apoio de financiadores importantes e que esperam, naturalmente, ser recompensados, de uma maneira ou de outra, mais tarde. Foi essa lógica que, de forma aberta, deu combustível à associação entre Donald Trump e Elon Musk, na corrida às presidenciais de novembro passado.
A união entre o Presidente da nação mais poderosa do mundo e o homem mais rico do planeta parecia, a certa altura, o casamento perfeito entre poder e riqueza, a fórmula perfeita para desmantelar o Estado, eliminar as instituições reguladoras, abrir uma avenida para os mais diversos negócios, sem controlo, apenas em busca de maior fortuna e de satisfazer a ganância sem princípios.
Embora ainda não saibamos como vai evoluir a recente separação entre Trump e Musk – com as inevitáveis acusações mútuas, típicas de qualquer divórcio litigioso –, já se percebeu que, como sempre tem sucedido nestes casos, o autocrata no poder consegue vencer o financiador monopolista que o apoiou. Não é a primeira vez que isso sucede na América, nem em outros países do mundo. Todos assistimos à forma como Vladimir Putin eliminou os oligarcas que, a partir de certa altura, se desviaram do seu caminho, e também como Xi Jinping conseguiu silenciar Jack Ma, o milionário fundador da Alibaba, terminando-lhe com o breve estrelato mundial que chegou a granjear entre outros líderes de tecnológicas.
O mais surpreendente agora é a sensação estranha que este divórcio nos deixa: o de sentirmos alívio por Donald Trump ter conseguido pôr Elon Musk “na ordem”, retirando-lhe acesso ao poder em Washington e, porventura, impedindo-o de alcançar um poderio global em setores sensíveis, com implicações planetárias. Para todos os efeitos, concorde-se ou não com ele, Trump foi eleito e, salvo alguma mudança brusca e inesperada, vai ocupar o poder durante um prazo de quatro anos. Aquilo que Elon Musk poderia ganhar com a sua associação a Washington não tinha prazo definido nem estaria dependente de eleições. Neste caso, como noutros, isso faz toda a diferença.
Quando, há mais de 150 anos, Charles Darwin se propôs explorar a biologia das emoções, sugeriu que vários animais emitem “sons característicos de um estado de espírito satisfeito” semelhante aos do Homem. Hoje, os cientistas não têm dúvidas de que o riso é um fenómeno interespécies.
É facilmente observável que os chimpanzés se riem quando fazem cócegas uns aos outros ou durante uma brincadeira, embora tenham um aparelho vocal diferente do nosso e vocalizem tanto na inspiração como na expiração, como se estivessem ofegantes. Noutras espécies será mais difícil de verificar, mas houve quem apostasse conseguir fazê-lo.
É o caso de Jeffrey Burgdorf, especialista em Neurociência Comportamental na Universidade Northwestern, nos EUA, que anda há anos a fazer cócegas a ratinhos de laboratório, analisando o seu comportamento e registando os seus guinchos agudos.
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Em 1999, numa conferência sobre a ciência da consciência, organizada pela Universidade do Arizona, nos EUA, Burgdorf apresentou, com o seu então supervisor, o neurocientista Jaak Panksepp, um estudo cujo título seria largamente reproduzido pelos jornalistas. Não admira. Lemos Ratos que Riem? As Cócegas Lúdicas Despertam Guinchos Ultrassónicos de Alta Frequência em Roedores Jovens e começamos logo a imaginar uns desenhos animados.
Desde então, os estudos têm-se multiplicado. Recentemente, para esclarecer os mecanismos neurais da brincadeira e do riso no ser humano, investigadores da Universidade Humboldt de Berlim, na Alemanha, identificaram a estrutura cerebral que controla o riso dos ratos. O estudo, publicado na revista científica Neuron, em 2023, demonstrou também que os ratinhos voltavam para receber mais cócegas e até podiam ser ensinados a brincar às escondidas em troca de uma “recompensa de cócegas”.
Os cães serão também capazes de rir, defendeu a especialista em Comportamento Animal Patricia Simonet, entretanto desaparecida. A investigadora norte-americana gravou o som da respiração expelida com força de um cão a brincar, com uma gama de frequências mais alargada do que a normal, a que chamou “riso canino”. Depois, deu-o a ouvir a cães dum abrigo e verificou que eles ficavam menos stressados ao escutá-lo.
A expressão de “felicidade” de um cão, semelhante ao riso humano, era suficiente para os acalmar, defendeu Simonet, num estudo apresentado na 7ª Conferência Internacional sobre Enriquecimento Ambiental, no verão de 2005, em Nova Iorque.
Aqui chegados, apetece cantar como cantava Ella Fitzgerald: Todos se riem. Os ratos riem, os cães riem e até os golfinhos riem.
Sim, leu bem, os golfinhos. Também há cerca de 20 anos, numa investigação com golfinhos roazes do Jardim Zoológico de Kolmården, a sudoeste de Estocolmo, na Suécia, observou-se que os animais pareciam produzir sons de alegria quando estavam a brincar às lutas.
“Com base no facto de este som ocorrer apenas em lutas lúdicas, sugerimos que ele ajuda a evitar que uma luta lúdica se transforme numa luta real e, por isso, é análogo ao ‘riso’ e ao ‘risinho’ observados nos macacos”, lê-se nas conclusões da equipa de que fazia parte a bióloga marinha portuguesa Inês Mello, publicadas na revista científica Aquatic Mammals Journal.
… E TÊM SENTIDO DE HUMOR
De acordo com o jornal Norrköpings Tidningar, esse estudo sueco-português foi o primeiro a provar que os golfinhos usam “risinhos” numa luta para que os seus supostos adversários saibam tratar-se apenas de uma brincadeira. Mas terão sentido de humor?
Um estudo com grandes símios publicado na revista Proceedings of the Royal Society B, em fevereiro do ano passado, trouxe mais evidências de que os animais também gostam de pregar partidas.
A antropóloga Isabelle Laumer, a fazer um pós-doc na Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos EUA, e os seus colegas analisaram vídeos de chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos, filmados no zoo de San Diego, nos EUA, e no zoo de Leipzig, na Alemanha. Focando-se em quatro jovens, de 3 a 5 anos de idade, um de cada grupo de espécies, observaram como eles se provocavam constantemente uns aos outros.
“O que vimos muitas vezes foi que um jovem se esgueirava por trás de um adulto que estava ocupado a cuidar de outro macaco e começava a tocar-lhe ou a bater-lhe nas costas, por vezes até surpreendendo-o”, relatou Laumer. “Normalmente, o alvo ignorava-os e, por isso, persistiam na provocação, tornando o comportamento cada vez mais elaborado e difícil de ignorar.”
Segundo os investigadores, as provocações eram semelhantes às observadas em crianças, na medida em que eram intencionais e persistentes, incluindo elementos de surpresa, brincadeira e verificação da resposta dos alvos. O equivalente humano poderia ser pôr a língua de fora para alguém e depois fugir para avaliar a sua reação.
“A brincadeira nos humanos requer capacidades cognitivas bastante complexas”, lembrou a mesma antropóloga. “É provável que os pré-requisitos cognitivos para brincar tenham evoluído na linhagem hominóide há, pelo menos, 13 milhões de anos.”
E quem diz grandes símios diz cães? Já Darwin acreditava que o fiel amigo do homem tem sentido de humor. “Se lhe for atirado um pedaço de pau ou um outro objeto semelhante, muitas vezes [o cão] leva-o para longe e, depois agacha-se com ele à sua frente no chão, à espera que o dono se aproxime para lho tirar. O cão agarra então no pau e desata a correr, triunfante, repetindo a mesma manobra e, evidentemente, gostando da partida”, descreve o biólogo no seu livro A Origem do Homem, de 1871.
Hoje, Marc Bekoff, professor emérito de Ecologia e Bbiologia Evolutiva na Universidade do Colorado, nos EUA, garante ter recolhido décadas de dados que mostram que os cães têm um comportamento de provocação semelhante ao demonstrado por Laumer. “Aliás, já vi isso em raposas, coiotes e lobos”, contou recentemente à BBC, acrescentando ter ouvido, ao longo da sua carreira, histórias de brincadeiras de cavalos e araras.
Sim, araras. Um estudo publicado em 2021, na revista científica Bioacoustics, identificou 65 animais com a sua própria forma de riso. Quase todos eram mamíferos, mas também surgem na lista três espécies de aves.
E poderão ser muitos mais os animais capazes de rir, acredita Sasha Winkler, antropóloga da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, EUA, e principal autora do estudo. “Provavelmente, não estão documentados por serem muito silenciosos”, sugeriu. Será, então, apenas uma questão de estarmos mais atentos?
Gosto de me lembrar do meu pai sentado num sofá de orelhas, a ler e a rir. As suas gargalhadas anunciavam-se sempre com um primeiro “ah” isolado, que podia ser de espanto, e segundos depois lá vinha a sequência cadenciada e contagiante.
“Parece que estou a ver” – é o que dizemos quando recuamos ao passado na nossa cabeça e desatamos a abrir as gavetas do arquivo de memórias, como se precisássemos de as espreitar para ter a certeza daquilo que vivemos. Hoje, parece mesmo que estou a vê-lo de olhos semicerrados, uma mão a agarrar o livro pousado no colo e a barriga a tremer ao ritmo do ahahahahah.
A imagem é um puzzle de centenas de outras, mas lembro-me sempre dele a rir-se de Henry Wilt, porque eram as situações absurdas em que se mete o anti-herói do escritor britânico Tom Sharpe a arrancar-lhe as maiores gargalhadas quando lia em catadupa por causa do seu Bookcionário n’O Jornal.
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O meu pai morreu há quase três décadas e prometo que tudo isto faz sentido neste artigo.
Gabriela Barros “O humor tem o poder de me acalmar, de pôr um filtro nas coisas – não de me toldar, mas de me aliviar. É o meu Xanax”
A começar pela minha perceção de que um pouco mais de riso, espontâneo ou induzido, poderia ter-lhe prolongado a vida encurtada por um acidente cardiovascular, aos 58 anos (mais Wilt e menos melancolia e talvez o seu coração dado à morriña galega ainda batesse?). Mas também porque, naquele ano de 1995 que estava quase a terminar, o mundo não era um lugar muito aprazível.
Um terramoto tinha matado mais de seis mil pessoas no Japão, os talibãs já controlavam um terço das províncias do Afeganistão e um atentado em Oklahoma, nos EUA, causara 168 mortos e mais de 500 feridos. Os capacetes azuis da ONU haviam abandonado a Somália, em plena guerra civil, e dois mil refugiados hutus tinham sido mortos por soldados no campo de Kibeho, no Ruanda.
Um poeta e jornalista como o meu pai precisaria de doses regulares de riso para não passar os dias angustiado.
Em Portugal, onde a economia deixara de convergir para os níveis de riqueza da média da União Europeia, valia-nos o Herman Zap, a rubrica humorística do programa Parabéns que Herman José tinha na RTP. Não adivinhávamos que no início de 1996 o provedor de justiça abriria um inquérito ao sketch A Última Ceia, considerado pela Igreja como “ofensa gratuita”. Tiques de censura 20 anos depois do 25 de Abril? Ná…
A história felizmente não é cíclica, caso contrário, quem sabe, estaríamos agora em risco de assistir a uma repetição desses tempos. Ou pior. É essa, aliás, a premissa da série de humor Ruído, de Bruno Nogueira, passada num tempo distópico em que o riso é proibido por lei (na RTP Play estão disponíveis seis dos oito episódios).
A distopia refere-se a uma realidade imaginária, usada para descrever uma perspetiva de mundo pessimista e muitas vezes explorando temas como a falta de liberdade. O conceito foi utilizado pela primeira vez pelo filósofo John Stuart Mill, em 1868, durante uma sessão do Parlamento britânico, para opor à utopia.
Praticamente todos os escritos da Idade Média associavam o riso às doenças e aos demónios, lembra o investigador Abílio Almeida, da Universidade do Minho, autor do livro História do Riso (ed. Guerra e Paz, 2022). “E, mesmo recentemente, o riso feminino, em particular, foi proibido. Nos séculos XVIII e XIX, havia relatos que diziam que as mulheres que rissem morreriam. É uma herança do platonismo que perpetuou essa ideia durante demasiado tempo.”
Rui Zink
Escritor e professor universitário
O humor é a superação – para mim, poética – de uma incapacidade
“O humor começa muitas vezes por não se saber falar com os outros. Parte de uma incapacidade. É a superação – para mim, poética – dessa incapacidade. Eu era como ainda sou hoje: às vezes, gaguejava, ciciava, era sopinha de massa. E era o caixa de óculos. Os rapazes da minha rua tinham todos como ritual de passagem partir-me os óculos. Dei a volta à minha timidez na adolescência, que é quando percebemos que uma série de defeitos são vantagens. É a altura em que uma pessoa começa a desmontar o motor do carro, a abrir o capot e a ver o que está lá dentro.”
Num manual de etiqueta publicado em Boston, nos EUA, em 1860, as leitoras eram aconselhadas a moderar o seu riso durante um jantar, de modo a que ele não fosse nem demasiado alto nem demasiado baixo: “Rir de forma reprimida dá a impressão de estar a rir-se dos que estão à sua volta, e um riso alto e estridente não é próprio de uma senhora.”
Gostamos de pensar que uma lei a coibir as pessoas de darem umas boas gargalhadas era improvável neste Portugal de 2025. Mas seria impossível?
Quando faço a pergunta à atriz Gabriela Barros, antes de o José Carlos Carvalho a fotografar numa varanda de Lisboa, à sombra de jacarandás em flor, ela fica de repente de cara séria.
“Estou um bocado confusa com a realidade, não sei se estamos distantes dessa distopia que o Bruno criou porque parece real. Nós, de alguma forma, estamos sempre ao virar da esquina de uma possível censura… Ainda não é algo concreto, mas vejo as ameaças.”
Uma coisa é certa: Gabriela seria logo detida com uma dupla acusação, porque é exímia a fazer rir e está sempre às gargalhadas.
Aos 36 anos, metade deles vividos em Bruxelas, de onde veio na ideia de ser cantora, já nos deu dezenas de personagens hilariantes no programa Cá Por Casa, de Herman José, e uma maravilhosa Matilde Bourbon de Linhaça na série Pôr do Sol (2021-2022). Em Ruído, é ela e Rita Cabaço quem mais brilha.
Se lhe resumisse o seu currículo assim, Gabriela haveria de rir-se. Os elogios deixam-na “sem jeito” (oi, papai brasileiro) e o riso, para ela, é “uma forma de atravessar um desconforto com mais conforto”, dirá, com uma gargalhada.
Durante uma hora e meia, as suas risadas ouvem-se com certeza na rua da sede da agência Notable, em Lisboa, onde a entrevistamos. Sorte de quem por lá passa, porque ouvir rir desencadeia uma resposta na área do cérebro que é ativada quando sorrimos, como se estivéssemos a preparar os músculos da cara para rirmos também (ver caixa Ri e o mundo ri contigo). E rir é bom para a saúde, como se sabe.
Amainar os problemas da vida
Hoje, sucedem-se os estudos sobre o bem que faz dar umas boas gargalhadas, mas o poder do riso já não é uma novidade. Não admira, por isso, que Gabriela o associe a palavras como “de cura”, “apaziguador” e “regenerador”.
“Se calhar são lugares-comuns”, ri-se. E são mesmo, porque a Ciência lhes concedeu o estatuto de trivialidades, ideias batidas, ao confirmar os efeitos benéficos do riso. As endorfinas libertadas pelo riso ajudam, por exemplo, os vasos sanguíneos a relaxar, aumentando a quantidade de oxigénio que o coração bombeia (ver caixa Bom para a saúde).
“O [ator e humorista brasileiro] Paulo Gustavo dizia que rir é um ato de resistência e eu concordo, mas, para mim, rir no meu dia a dia é sobretudo uma forma de me manter sã”, afirma a atriz. “O humor tem o poder de me acalmar, de pôr um filtro nas coisas – não de me toldar, mas de me aliviar. É o meu Xanax.”
Também para Rui Zink o humor “é um instrumento que está à mão, muito parecido com a poesia, que permite amainar os problemas da vida”.
“É um alívio e começa com uma coisa muito simples: o palhaço vira uma garrafa ao contrário e a criança acha graça. O nosso primeiro riso é uma subversão da realidade”, lembra o escritor e professor universitário.
Zink admite que essa capacidade de subverter a realidade pode ser muito útil no estado em que as coisas estão no mundo. “O humor e a poesia salvam sempre”, sublinha. “Não conseguem mudar a realidade, mas mudam a nossa relação com a realidade, a maneira como lidamos com ela.”
O que o autor de Manual do Bom Fascista (ed. Ideias de Ler, 2019) e de A Instalação do Medo (ed. Porto Editora, 2021), entre outras obras, receia, agora, é ver os seus amigos de esquerda “a ficarem fascistas de tão zangados”, ironiza. “Rir não faz com que os outros deixem de votar Chega, mas faz com que eu, Rui, não comece a votar Chega porque estou zangado e os políticos são todos iguais, etc.”
Joana solipa
Doutoranda em Antropologia
O stand-up tem o poder ritualístico de contestar as normas ou de replicá-las
“Quando penso no poder do riso, penso logo no sentido mais fisiológico, na reação que o indivíduo que o experiencia pode estar a ter naquele momento. E, depois, penso no poder libertador do corpo em si, na redução do stresse. Na minha investigação sobre o stand-up, dei importância ao ritual. O stand-up tem o poder ritualístico de contestar normas existentes ou de replicá-las. As temáticas da atualidade não são muito usadas nos espetáculos de stand-up, porque convém o material poder perdurar no tempo. Esse tipo de piadas vai para as redes sociais.”
Zink não é pessoa para dar conselhos do alto da sua sapiência, mas lembra que rir ajuda a evitar que façamos coisas demasiado estúpidas. “Se uma pessoa chegar a casa e descobrir que foi enganada, pode ficar muito zangada ou pensar: ‘Já tenho uma boa história para contar’”, exemplifica. “Agora, mais do que nunca, temos de nos rir para lidar com as derrotas, que se calhar é o que nos espera daqui para a frente.”
Podemos recuar ao naturalista britânico Darwin para perceber facilmente por que razão tantos investigadores argumentam que o riso evoluiu como uma forma de comunicação, reforçando laços e aumentando a cooperação entre os indivíduos. A teoria da seleção natural sugere que os comportamentos que promovem a sobrevivência têm mais probabilidades de se tornar predominantes ao longo do tempo. Daí o ser humano rir tanto.
Podemos (e devemos) recuar ainda mais no tempo para chegar a Aristóteles, que acreditava que só o Homem era capaz de rir e que os bebés não tinham alma até se rirem pela primeira vez. Nietzsche, já em pleno século XIX, continuaria a defender que o riso era exclusivo dos seres humanos. Mas, ao contrário daquilo que ambos os filósofos proclamavam, o riso acabaria por ser descrito em vários animais – e não apenas em primatas não humanos. Assim como o sentido de humor, aliás (ver artigo Os ratos riem, os cães riem e até os golfinhos riem).
Aristóteles, outra vez ele, considerava que o riso, quando excessivo ou inadequado, poderia indicar uma falta de virtude e de equilíbrio emocional. No fundo, o filósofo grego seguia os passos de Platão que escreveu n’A República: “Não é admissível que se representem homens dignos de consideração sob a ação do riso.”
“Segundo Platão, todo e qualquer expressar emocional positivo era um usufruto temporário das coisas mundanas e, por isso, um atentado visual à pureza moral”, nota Abílio Almeida. “O riso seria, por isso, observado na Antiguidade Clássica como algo menor, oriundo de um mundo inferior, doentio e terreno.”
Nas suas pesquisas para a tese de doutoramento que deu origem à obra citada, o investigador chegou à conclusão de que a maior parte do riso é uma história de não rir. Foi isso, pelo menos, o que mais o impressionou, em especial o não riso feminino, lembrando que ainda hoje temos mulheres a esconderem o riso ou mesmo o sorriso com uma mão, um recato (ou autocensura) cujas raízes são antigas.
“Foi como o que aconteceu com o sexo”, nota o autor de História do Riso. “O Umberto Eco até põe o bibliotecário d’O Nome da Rosa a comparar o riso com a ejaculação diurna, porque durante muito tempo a Igreja vivia-o como um ato de impureza.”
Quem leu o romance daquele autor italiano, passado na primeira metade do século XIV, deverá lembrar-se das conversas sobre o riso entre o franciscano Guilherme de Baskerville e o monge fundamentalista, responsável pela biblioteca. Quem só viu o filme, protagonizado por Sean Connery, em 1986, talvez tenha sobretudo fixado a questão do veneno, central para o mistério que envolve os assassinatos no mosteiro, mas o enredo explora a velha questão histórica e filosófica do riso.
O riso foi sempre uma emoção levada a sério. E até usada como arma do poder.
Sabrina Tacconi No dia em que a conhecemos, fazia 54 anos e começara por se colocar frente ao espelhoda casa de banho, a rir Foto: José Carlos Carvalho
“A par da realidade exposta por Umberto Eco, encontramos no século II, por breves momentos, o rei cómico, o rei palhaço, que teve como figura modelo Henrique II”, lembra Abílio Almeida. “Segundo as crónicas inglesas dessa época, ele tinha a obrigatoriedade de fazer piadas e de entreter o povo.”
Nesse período histórico, “o riso estava quase a tornar-se um instrumento de governo ou, de qualquer modo, uma imagem de poder”, escreveu o historiador francês Jacques Le Goff, no livro O Riso na Idade Média.
“Fazer rir é estar num contexto em que a reação das pessoas é da responsabilidade do próprio, tem-se o poder de levar àquela reação alguém que não conhecíamos antes”, lembra Joana Solipa, doutoranda de Antropologia na NOVA FSCH/ISCTE, em Lisboa, à espera de defender a sua tese sobre stand-up.
Além de fazer trabalho de campo, a investigadora decidiu experimentar o lado de lá, dos palcos, onde se surpreendeu ao sentir o controlo e a aprovação. “O riso é também uma ferramenta de comunicação positiva”, destaca. “Às vezes, fazer rir é uma vitória.”
Ao lermos sobre o tal rei bobo da corte, veio-nos à cabeça o atual Presidente dos EUA e a imagem gerada por Inteligência Artificial que o mostrou vestido de Papa. Donald Trump afirmou não ter tido “nada a ver” com a publicação dessa imagem nas suas próprias redes sociais, partilhada pouco depois de o argentino Jorge Mario Bergoglio morrer. Mas acabaria por dizer: “Não me aborreçam – alguém o fez a brincar. É divertido.”
O Papa Francisco, tantas vezes apanhado a rir, talvez achasse graça à lata de Trump. Há exatamente um ano, convidou para o Vaticano mais de cem humoristas de todo o mundo e foi fotografado e filmado a rir-se com eles.
“Através do valor unificador do riso nos dias de hoje, são oferecidas reflexões únicas sobre a condição humana e a situação histórica”, sublinhou, então, a Santa Sé, num comunicado sobre este encontro organizado pelo Dicastério para a Cultura e a Educação, presidido pelo cardeal português José Tolentino Mendonça.
Entre os humoristas convidados estiveram os portugueses Joana Marques, Maria Rueff e Ricardo Araújo Pereira, o brasileiro Fábio Porchat e os norte-americanos Conan O’Brien, Jimmy Fallon e Stephen Colbert. A visita ao Vaticano de alguns deles foi vista pelos seus fãs como um inusitado e desnecessário beija-mão ao dono da casa, mas quem conhecia bem Jorge Mario Bergoglio sabia que não era essa a sua expectativa.
Seis meses depois, a dias do Natal, o Papa Francisco assinou um artigo de opinião no New York Times, com o título Há Fé no Humor, em que começa por aconselhar a “evitar a todo o custo chafurdar na melancolia, [para] não deixar que ela amargue o coração”, terminando a defender que “quando se torna difícil chorar a sério ou rir apaixonadamente (…) ficamos anestesiados, e os adultos anestesiados não fazem nada de bom para si próprios, nem para a sociedade, nem para a Igreja”.
Pelo meio, Francisco brinda-nos com anedotas tendo vários Papas como protagonistas, lembrando que “a ironia é um remédio, não só para elevar e alegrar os outros, mas também a nós próprios, porque a autozombaria é um instrumento poderoso para vencer a tentação do narcisismo”. A propósito de narcisismo, conta, então, a história do jesuíta bastante vaidoso que teve um problema de coração que obrigou a uma cirurgia.
“Antes de entrar na sala de operações, pergunta a Deus: ‘Senhor, chegou a minha hora?’ ‘Não, viverás pelo menos mais 40 anos’, diz Deus. Depois da operação, decide aproveitar ao máximo e faz um transplante de cabelo, um lifting facial, uma lipoaspiração, sobrancelhas, dentes… Em suma, sai um homem mudado. Mesmo à saída do hospital, é atropelado por um carro e morre. Assim que aparece na presença de Deus, protesta: ‘Senhor, mas tu disseste-me que eu viveria mais 40 anos! ‘Ops, desculpa!’, responde Deus. ‘Não te reconheci.’”
Rimo-nos, como não?, e ainda bem – pela nossa saúde. Será que o Papa Francisco teria vivido até aos 88 anos se não tivesse sentido de humor? Aqui chegados, a meados de 2025, não restam dúvidas de que o riso alivia os problemas de saúde e bem-estar, concorrendo para uma vida mais longa. Ora continue a ler.
Rir por decreto-lei
A província de Yamagata, no Norte do Japão, é procurada pelos banhos de águas termais ao ar livre, pela estância de esqui onde as árvores cobertas de neve parecem monstros e por um templo no alto de uma montanha a que se chega atravessando uma bela floresta de cedros. De Tóquio, a capital, são só duas horas e meia de comboio, coisa pouca num país quatro vezes maior do que Portugal.
Todas as primaveras, aquela província da região de Tohoku é também visitada durante a temporada de sakura por milhares de pessoas que querem ver as suas cerejeiras em flor, lindíssimas sobretudo junto ao rio Mamigasaki. As mais de mil árvores existentes em Yamagata produzem 70% das cerejas do Japão, repete-se nos guias turísticos. À noite, se estão iluminadas, são de sonho.
Charlie Chaplin “Um dia sem riso é um dia perdido”, acreditava o ator e realizador que ainda hoje nos faz rir sem dizer uma palavra
Mas é habitualmente em junho (e este ano foi no passado domingo, 8) que um outro acontecimento atrai uma multidão a Higashine, uma cidade no centro da província: o Grande Prémio Mundial de Cuspidores de Caroços de Cereja. Sim, leu bem. Um grande prémio. Mundial.
Escrevemos isto com um sorriso, a imaginar as gargalhadas dos espectadores por causa da eventual má pontaria de alguns dos concorrentes, mas o concurso é levado muito a sério, mesmo que o vencedor fique todos os anos aquém do recorde de distância de caroço cuspido em competição (28,51 metros), estabelecido em 2003 por Brian “Young Gun” Krause, em Eau Claire, no Michigan, EUA, atestou o Guinness.
Os japoneses são conhecidos por desatarem aos risinhos quando estão perante algo novo ou por mero embaraço. As japonesas, mais elas, cobrem frequentemente a boca com uma mão, parecendo autocensurarem-se por um ato natural. Rir durante um campeonato, mesmo que de cuspidores de caroços, não será de bom tom?
“Se não estivermos com pessoas que conhecemos bem [nós, os japoneses], não podemos fazer piadas – é uma questão de prudência. Parte-se do princípio de que os estranhos são hostis, até prova em contrário”, explicou o dramaturgo e humorista Hisashi Inoue (1934-2010), numa entrevista publicada na revista Focus on Asian Studies, em 1986.
Inoue usava bastante a sátira social, e os jornalistas James Bailey e Jared Lubarsky, dois norte-americanos que trabalhavam há uma década no Japão, queriam saber se ela desempenhava um papel importante no humor japonês.
O conhecido autor, por coincidência nascido em Yamagata, lembrou-lhes o ditado antigo segundo o qual um samurai podia levantar um canto da boca num sorriso uma vez em cada três anos, e dar uma gargalhada a cada cinco ou seis.
Fingir até atingir
A terapia do riso baseia-se no facto de o riso simulado poder ser tão bom para a saúde como o verdadeiro
GRÉCIA ANTIGA
Apercebendo-se de que o riso desempenhava um papel importante no tratamento de perturbações mentais, os médicos aconselhavam os seus doentes a irem ao teatro como parte do processo de cura.
SÉCULO XIII
O médico francês Henri de Mondeville (1260-1320) recorreu ao riso na recuperação de cirurgias. “Que o cirurgião tenha o cuidado de regular todo o regime de vida do doente para a alegria e a felicidade, permitindo que os seus familiares e amigos especiais o animem e que alguém lhe conte piadas”, escreveu. “O corpo fortalece-se com a alegria e enfraquece-se com a tristeza.”
DÉCADA DE 1930
A terapia do riso nos tempos modernos, como terapêutica complementar, surgiu quando grupos de palhaços foram levados a hospitais dos EUA para animar crianças que estavam internadas com poliomielite.
DÉCADA DE 1960
Em 1964, o jornalista norte-americano Norman Cousins (1915-1990) foi diagnosticado com espondilite anquilosante, uma inflamação muito dolorosa. Tinha 49 anos e os médicos deram-lhe uma hipótese em 500 de recuperar. Pouco depois, Cousins descobriu que dez minutos de gargalhadas tinham um efeito “anestésico” e davam-lhe, pelo menos, duas horas de sono sem dores. Prescreveu, então, a si próprio doses massivas de vitamina C por via intravenosa e doses regulares de gargalhadas, a ver episódios de “apanhados” e filmes dos Irmãos Marx. O seu livro Anatomy of an Illness (anatomia de uma doença) tornou-se a bíblia da terapia do riso.
Quase 40 anos depois, não temos a certeza de que se mantém viva “essa tradição”, como Hisashi Inoue acreditava então, dizendo que “os samurais no Japão moderno” são “os empregados de colarinho branco nas grandes empresas”, sem “qualquer sentido de humor”. Mas há já algum tempo que estamos convencidos de que rir é bom para todos nós.
Um decreto, inédito e também por isso histórico, aprovado pelo governo de Yamagata em julho do ano passado veio dar-nos razão. Apresentado por membros do Partido Liberal Democrata, um partido conservador que tem estado quase sempre no poder no país desde a sua fundação, em 1955, encoraja os residentes da província a tentarem “promover a saúde física e psicológica através do riso, por exemplo, rindo pelo menos uma vez por dia”, noticiou então o jornal Yomiuri Shimbun.
Segundo o mesmo diário nacional, a assembleia aproveitou o decreto que pede aos empresários privados para desenvolverem “um ambiente de trabalho cheio de riso” e designou o oitavo dia de cada mês como o dia para os habitantes, 25% deles com mais de 65 anos, rirem para estimular a saúde.
Sim, leu bem, uma vez mais. O oitavo dia. Mas, não, este ano a escolha da data para o concurso entre cuspidores de caroços de cereja não teve nada que ver com essa decisão do governo local – embora tenha sido uma boa desculpa para quem esteve na assistência poder dar umas boas gargalhadas à vontade.
O decreto baseou-se num estudo científico da Universidade de Yamagata que concluiu que uma maior frequência do riso reduz o risco de doenças cardiovasculares e aumenta a longevidade.
O investigador Kaori Sakurada e os colegas acompanharam 17 152 pessoas, com 40 ou mais anos, que participaram em controlos de saúde naquela província. Seguiram-nas ao longo de 5,4 anos, em média, tomando nota das vezes que diziam rir. A baixa frequência de riso foi associada a uma maior mortalidade por todas as causas e incidência de doenças cardiovasculares, lê-se no estudo, publicado no Journal of Epidemiology, em abril de 2020.
Por essa altura, já andava muita gente aflita com o novo coronavírus. E, dali a uns dias, o governo japonês estenderia o estado de emergência a todo o país. O estudo passou, por isso, despercebido fora da comunidade científica, só emergindo, quase em tom anedótico, graças ao decreto da assembleia de Yamagata. Até ali, já outros cientistas haviam apontado o coração como um dos beneficiários das gargalhadas, mas aquele estudo era o primeiro a mostrar uma correlação direta entre a frequência do riso e a mortalidade.
Em 2009, William F. Fry, que foi um psiconeuroimunologista pioneiro no domínio do humor terapêutico e estava então no Departamento de Psiquiatria da Universidade de Stanford, em Palo Alto, nos EUA, decidiu fazer um estudo sobre os potenciais efeitos benéficos do “riso divertido” no sistema cardiovascular e – bingo! – acertou.
Do stresse ao alívio da dor
Nas décadas anteriores, a investigação centrava-se nas emoções negativas. Fry e Michael Miller, já então professor de Medicina Cardiovascular, na Universidade de Maryland, em Baltimore, puseram voluntários a ver segmentos de uma comédia e de um filme conhecido por promover o stresse, avaliaram a vasorreatividade dependente do endotélio, com recurso a ultrassons de alta resolução da artéria braquial, e provaram que rir tem um impacto benéfico.
Em 2016, Kei Hayashi, da Faculdade de Medicina da Universidade de Tóquio, liderou um estudo que avaliou a associação entre a frequência do riso e as doenças cardíacas e os acidentes vasculares cerebrais (AVC) entre pessoas com 65 anos ou mais. Após o ajuste para hiperlipidemia, hipertensão, depressão, índice de massa corporal e outros fatores de risco, a prevalência de doenças cardíacas entre os que nunca ou quase nunca riram foi 1,21 vezes superior à dos que disseram rir todos os dias. O rácio de prevalência ajustado para o AVC foi de 1,60.
“Se o riso tiver associações inversas com o aparecimento de doenças cardiovasculares, seria útil desenvolver intervenções para promover o riso na vida das pessoas, por exemplo, através da terapia do riso”, concluiu, então, Kei Hayashi.
Além destes benefícios a nível cardiovascular, o riso tem mais efeitos positivos, comprovados cientificamente. Da depressão à ansiedade, da insónia ao stresse, da diabetes tipo 2 à qualidade de vida das pessoas com cancro, passando pelo alívio da dor, rir protege-nos muito. Não é banha da cobra.
Fábio Borges
Facilitador de sorrisos
O riso é mais poderoso quando acontece em conjunto
“A minha linha não é do ioga do riso. É olharmos para a nossa vida e os nossos acontecimentos com um olhar de criança, leve. Fazê-lo não só na adversidade, mas também na nossa rotina, no nosso dia a dia. Isso permite-nos olhar com assombro para uma coisa pouca, como uma bolha de sabão. A prática do sorriso diária está ligada à maneira de enxergar a vida. A leveza que quero na minha vida está na ‘lente’ que uso. E devemos viver assertivamente o momento do agora, principalmente nas relações. O riso é mais genuíno e poderoso quando acontece em conjunto.”
Uma revisão sistemática e meta-análise de estudos demonstrou a eficácia das intervenções indutoras do riso em doentes com problemas de saúde somáticos ou mentais, ajudando a reduzir a ansiedade, a depressão e o stresse. Uma das formas de o riso o fazer é provocando a libertação de dopamina, oxitocina e endorfinas – substâncias químicas associadas ao prazer, à motivação e à aprendizagem, lê-se no relatório, publicado na revista Complementary Therapies in Clinical Practice, em 2022.
Especificamente em relação ao stresse, os autores de uma outra revisão sistemática, publicada em 2023, na revista Plos One, descobriram ainda que os níveis de cortisol (a hormona do stresse do corpo) baixaram 31,9% nas pessoas que participaram em intervenções de riso – e mesmo uma única sessão de riso levou a uma redução de 36,7% no cortisol. Não importava quanto tempo os participantes riam; qualquer riso levava a reduções no cortisol.
A melhoria da insónia, sobretudo da inicial, ou seja, a dificuldade em adormecer, explica-se com o facto de o riso aumentar a produção de melatonina pelo organismo. E, na diabetes tipo 2, vários estudos provaram a influência do riso e do humor no metabolismo da glicose e na ação da insulina.
No caso da qualidade de vida de doentes com cancro, uma revisão de estudos aleatórios controlados, publicada no ano passado, na revista Cureus, sugere que o ioga do riso é uma prática promissora para melhorar a sua saúde física e psicológica. Foi também em pacientes oncológicos que um estudo recente examinou o efeito da terapia do riso e do riso espontâneo, revelando que os seus níveis de dor diminuíram para metade.
No dia em que a conhecemos, Sabrina Tacconi fazia 54 anos e começara por se colocar frente ao espelho da casa de banho, a rir às gargalhadas. É algo que faz há duas décadas, desde que ultrapassou uma depressão a fazer exercícios de indução do riso. “Não é rir como um palhaço, trabalha-se durante uma hora”, conta.
Abílio Almeida
Autor do livro “História do Riso” (2022)
Devemos rir, porque já fomos proibidos de o fazer
“Sempre que conseguirmos rir, devemos fazê-lo, porque já fomos proibidos de rir, não sabemos o futuro, não sabemos se amanhã não vamos chorar todos sobre a nossa realidade. Acredito que existe sempre uma dimensão de encontrar o risível. O riso por vezes não tem que ver com estarmos contentes, está além disso, está por exemplo em encontrarmos prazer na dinâmica social. Mesmo que a chorar por dentro, não vejo inibidores para não rirmos à mesma. Costuma-se dizer que Cristo não se ria habitualmente, porque a Bíblia nunca refere isso. Mas na Bíblia também não está escrito se ele ia à casa de banho.”
Desde então, a italo-espanhola, a morar em Portugal há 29 anos, dedica-se a ensinar o que aprendeu, em workhops presenciais e online (vai ter um no próximo dia 28), em escolas (a professores) e em empresas: o ioga do riso é uma meditação ativa e o riso é uma forma de preparar a nossa mente de uma forma positiva, até mesmo na pior desgraça.
“Se tenho uma fatura para pagar, pego nela e rio-me. O cérebro entende que, se consigo rir, consigo pagá-la”, exemplifica. Nas empresas, o objetivo é levar alegria aos colaboradores, conta. “E começo pelo meu exemplo: não tenho recaídas porque rio-me sempre do meu pior drama.”
Fábio Borges, um carioca que se apresenta como um facilitador de sorrisos, também teve de passar por um esgotamento para descobrir a psicologia positiva. Mas já antes, ainda no Brasil, fazia muito humor, pertencendo à Operação Nariz Vermelho, associação que leva a alegria a crianças hospitalizadas.
Hoje, Fábio ensina a inserir o riso no dia a dia. “No mundo em que a gente vive, cercado de tensão e de lados opostos, o riso suspende a gravidade dos assuntos, por alguns segundos, e é nesses segundos que conseguimos viver a liberdade. Então, o riso promove a liberdade”, defende.
“É através do riso que o mundo se torna de novo um lugar dedicado à brincadeira e não um lugar de trabalho”, acreditava o poeta mexicano Octavio Paz. “E pode ser também um meio de lutar contra a adversidade”, ensina o sociólogo francês David Le Breton, especialista na relação do homem com o corpo.
Não era por acaso que os gregos tinham palavras para designar diferentes risos: o de alegria e o maldoso, agressivo. A que poderíamos acrescentar a risadinha involuntária, tão comum em situações de tensão como são os velórios. O homem é um bicho cheio de emoções e talvez só por isso as máquinas (ainda?) não conseguem imitar-nos na perfeição.
“Se houver um momento em que haja um livro engraçado escrito pelo ChatGPT, acho que estamos tramados”, disse o escritor britânico Salman Rushdie, durante um festival de literatura, no Reino Unido, no final de maio. Até lá, vale a pena reler Os Filhos da Meia-Noite, em que o seu humor único se manifesta através do turbilhão de desastres de Saleem, o protagonista. E rir, rir muito, pela nossa saúde também mental.
“Ri e o mundo ri contigo”
O popular verso da norte-americana Ella Wheeler Wilcox lembra que o riso pode ser contagioso
CONTÁGIO COMPORTAMENTAL
No início da década de 90, Robert Provine (1943-2019), considerado o maior especialista científico mundial na área, defendeu que o riso é altamente contagioso em termos comportamentais e que se trata de um espelhamento aprendido. Os bebés não “apanham” o riso de forma contagiosa.
A REAÇÃO DO CÉREBRO
Em 2006, investigadores da University College London e do Imperial College, no Reino Unido, demonstraram que o riso desencadeia uma resposta na área do cérebro do ouvinte que é ativada quando sorrimos, como se estivéssemos a preparar os músculos da cara para rir.
A CAIXA DO RISO
Nos anos 50, o norte-americano Charles Douglass construiu um “duplicador de resposta do público”, rapidamente conhecido como Laff Box. As primeiras gargalhadas da caixa do riso foram gravadas numa atuação do mimo francês Marcel Marceau, durante a sua digressão nos EUA. Desde então, o “riso enlatado” é usado na televisão para reforçar o humor. Um estudo de 2019 concluiu que as pessoas classificavam as piadas más como mais engraçadas quando vinham com faixas de riso.
A “EPIDEMIA” DE TANGANICA
Quando se fala de riso, refere-se com frequência uma “epidemia de riso” relatada em Tanganica (atualmente Tanzânia), em 1962. Tudo teve início numa escola onde as alunas começaram a rir de maneira descontrolada, alastrando-se depois à comunidade e acabando por paralisar o país durante meses. Mais tarde, provou-se que o riso foi um sintoma de um caso invulgarmente grande de doença psicogénica em massa.
Bom para a saúde
Confira o bem que nos faz dar umas boas gargalhadas com alguma regularidade. Seja espontaneamente ou graças às terapias de indução do riso
DEPRESSÃO O riso pode aumentar a dopamina e a serotonina, reduzidas na depressão. E as endorfinas libertadas também podem ajudar quando as pessoas estão deprimidas
SONO Rir à noite faz com que o corpo produza mais melatonina (a hormona libertada no início do sono), sendo aconselhado a quem tem dificuldade em adormecer
STRESSE O riso reduz os níveis de cortisol, a hormona do stresse do corpo, concluiu uma análise de oito estudos em que os participantes foram encorajados a rir
CORAÇÃO O riso liberta endorfinas que ajudam os vasos sanguíneos a relaxar, aumentando a quantidade de oxigénio que o coração bombeia
DIABETES TIPO 2 O humor pode modificar a expressão de genes envolvidos na disfunção da insulina e no aumento da glucose no sangue. Os mecanismos ainda não são conhecidos
QUALIDADE DE VIDA O riso tem o potencial de melhorar a qualidade de vida dos doentes oncológicos, sobretudo durante os períodos de quimioterapia muito desgastantes
ALÍVIO DA DOR Há décadas que se sabe que o riso ajuda a tolerar a dor. Como? As endorfinas libertadas funcionam como analgésicos e influenciam a perceção da dor
SISTEMA IMUNITÁRIO Rir aumenta a produção de células imunitárias e de anticorpos no sangue, para que possa dar uma resposta mais forte aos germes e às infeções
LONGEVIDADE Um estudo da Universidade de Yamagata, no Japão, publicado em 2020, concluiu, sem sombra de dúvida, que uma maior frequência do riso aumenta os anos de vida