Atribui-se a Gouveia e Melo a seguinte frase: “Se eu algum dia for para a política, deem-me uma corda, para me enforcar!” Em 1976, o próprio general Eanes (de quem também não se conhecia um único pensamento político e não foi por isso que os principais partidos o não apoiaram convictamente…), pressionado a candidatar-se a Belém, dizia aos mais próximos: “Deviam ter pensado antes no [Vasco] Rocha Vieira [também militar, recentemente falecido], esse é que percebe de política!” E agora, eis o refluxo de uma época: foi você que pediu um Eanes de segunda geração? Pois aqui o tem.
Se o artigo de Henrique Gouveia e Melo, publicado no Expresso, é, genericamente, uma coleção entediante de lugares-comuns, ele tem o supremo mérito de esclarecer o País de que não estamos perante nenhum bicho-de-sete-cabeças armado em ditador para destruir a democracia. Na verdade, o la paliciano título que fez manchete no Expresso, “O Presidente não está ao serviço dos partidos”, ideia extraída do artigo, é já uma peça do combate político que aí vem: Gouveia e Melo diz uma evidência com a intenção de insinuar que os seus adversários, esses sim, são suspeitos de estar ao serviço dos partidos, uma tese mais desenvolvida, no texto, e que pretende servir de carapuça aos únicos candidatos anunciados, Marques Mendes e Mariana Leitão –, mas que terá alguma dificuldade em encaixar em António José Seguro, visto que este, tudo o indica, se se candidatar, será a contragosto do PS… Portanto, a principal conclusão deste artigo (em larga medida dececionante) é a de que Gouveia e Melo, tão cinzentão como os demais, inicia um combate político corriqueiro, com os argumentos habituais e de forma nenhuma assustadores. A principal desilusão é que também não inova.
Se fizermos, porém, uma análise mais fina à sua primeira grande mensagem, identificamos nela um potencial de conflito entre a Presidência e os partidos que recupera – linha a linha – os tempos áureos do Presidente Ramalho Eanes quando, a partir de Belém, conseguiu exasperar dois primeiros-ministros de dois partidos diferentes, Mário Soares, do PS, e Sá Carneiro, do PSD. É esse perfil demasiado parecido com o de Eanes que está a assustar, de novo, os partidos. E se a História se repete e Gouveia e Melo tiver um projeto bonapartista de formação de um grande movimento, a partir de Belém, como chegou a parecer o PRD de Ramalho Eanes? Embora os presidentes detenham, hoje, depois da revisão constitucional de 1982, menos poder do que no tempo de Eanes, a legitimidade de Gouveia e Melo pode ser ainda maior do que a do seu “modelo”. É que Eanes chegou a Belém com o apoio, precisamente, dos partidos do sistema, enquanto Gouveia e Melo aspira a lá chegar dispensando esse apoio. Se isso suceder, as duas legitimidades, a parlamentar e a presidencial, chocar-se-ão com muito mais estrondo, o que representa, por si só, um risco para a estabilidade. Mas é um risco que Eanes, perante governos minoritários do PS, primeiro, e maioritários da AD ou do bloco central, depois, também sempre representou, afinal.
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Um exemplo: ao sugerir que o incumprimento flagrante de promessas eleitorais possa ser motivo para a dissolução da Assembleia da República (embora nada, na Constituição, o autorize…), Gouveia e Melo invoca os mais duros discursos do Presidente Eanes. Antes de 1982, porém, o PR podia despedir um chefe do governo sem dissolver a AR, enquanto hoje, só interrompendo a legislatura, isso seja (praticamente) possível. Esta terá sido, talvez, a declaração mais inquietante do artigo, mas não deverá passar de uma bravata eleitoralista.
Depois de um ciclo de presidências “doces”, o eleitorado tende a mudar para ciclos de presidências austeras (e vice-versa): Cavaco depois de Sampaio, Marcelo depois de Cavaco. Essa “severidade” é uma aposta clara de Gouveia e Melo para seduzir eleitores fartos de selfies. O seu recado é correspondente: “O Chefe de Estado usa a palavra seguindo a regra da relevância, isenção, equilíbrio, contenção e gravitas.” Este bem podia ser, também, o retrato de Ramalho Eanes ou, pelo menos, o retrato com que os portugueses, retrospetivamente, ficaram dele… Ao assumir-se “entre o socialismo e a social-democracia”, procura seduzir o centrão entre o PS e o PSD, mas revela uma certa candura: sendo frentistas e abrangentes, ambos os principais partidos representam muito mais do que as suas denominações de origem – “socialista” ou “social-democrata” –, quando não se afastaram irremediavelmente delas. Entretanto, para o debate com André Ventura, é melhor que esteja preparado: tendo em conta a forma como privilegia o espetáculo e os gestos de efeito, o candidato do Chega vai, em pleno estúdio, oferecer-lhe uma corda. Vai uma aposta?…
Golpe de Vista
A ironia é um risco, mas lá vai…
Em 1975, em pleno gonçalvismo, com um primeiro-ministro protocomunista e suspeito de simpatias soviéticas, Portugal viu ser-lhe vedado o acesso a informação classificada da NATO. De que está à espera a Organização do Atlântico Norte para fazer o mesmo, agora, com os Estados Unidos da América?…
No mesmo mês em que celebramos os 80 anos da libertação de Auschwitz, um quinto dos eleitores alemães votou num partido neonazi. Esses alemães concentram-se sobretudo no que era a Alemanha de Leste, área que durante quase 50 anos foi uma espécie de protetorado soviético. Digamos que estes vários milhões de pessoas podem ser acusadas de muita coisa, mas não de falta de clareza: gostam de ditaduras e das mais ferozes e sanguinárias que a História regista.
Entretanto, nos Estados Unidos da América, a democracia liberal está em rápido colapso e da maneira que todos os regimes soçobram: quando as suas instituições são destruídas.
Não é em vão que Trump coloca à frente dos principais órgãos e agências governamentais gente que não percebe rigorosamente nada do assunto ou mal consegue soletrar o nome. A necessidade de obediência canina é critério básico e é por dentro que as instituições se destroem, nada como a completa incompetência e a cegueira ideológica para o fazer.
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Só a ingenuidade ou a inconsciência criminosa garantiam que a democracia estava sólida porque as instituições eram à prova de bala. Elas dependem do mais destrutivo dos seres: o Homem, ou seja, são a coisa mais vulnerável que há.
O desrespeito pela separação de poderes e pelos checks and balances também já está anunciado e até, em vários casos, concretizado. Aliás, as assinaturas do novo regime estão aí. Um dos ideólogos trumpistas, Jack Posobiec, disse que era impossível Trump violar a Constituição norte-americana porque ele era a sua encarnação. E o próprio Presidente dos Estados Unidos da América deixou tudo claro quando enunciou o novo mandamento: “Quem salva o país não viola qualquer lei.”
A infalibilidade do líder e a sua vontade de ser lei é o traço distintivo duma ditadura. Se a isto juntarmos a capacidade de tudo saber, de tudo controlar, que Elon Musk, Bezos, Zuckerberg e quejandos tentam assegurar, temos uma nova versão do totalitarismo. E desta vez com meios com que os antigos totalitaristas nem sonhavam.
Seja qual for o regime que está a ser instalado nos Estados Unidos da América, há um que de certeza absoluta não é: uma democracia liberal.
Não surpreende assim a nova postura dos Estados Unidos da América no mundo. Aliás, o discurso de JD Vance em Munique não passou de uma afirmação desses princípios.
Os Estados Unidos da América deixaram de ser aliados da União Europeia porque, pura e simplesmente, deixaram de acreditar e de lutar por uma ordem liberal e, sobretudo, repito, deixaram de ser uma democracia liberal.
São agora aliados de Putin, com quem partilham os “verdadeiros” valores cristãos, uma conceção muito própria da liberdade de expressão, o antiwokismo – leia-se desprezo pelas minorias, por direitos fundamentais e pela simples decência –, o combate à imigração e a promoção da extrema-direita.
Zelensky tem razão quando diz que o alvo de Putin é a Europa, essa parte do mundo em que, por enquanto, ainda vigoram os valores e os princípios democráticos e liberais. Neste momento, o maior apoio de Putin nesse objetivo é a América. É com essa nova América que quer dividir e partilhar a Europa. No fundo, a humilhação que os norte-americanos estão a impor aos ucranianos, as acusações de que foram eles a atacar a Rússia e a tentativa de extorsão são todas coerentes manifestações dessa recente aliança.
É preciso destruir a Europa, não só pelos despojos mas sobretudo pelos valores que ainda consegue promover.
Nesse plano estão os traidores que têm sido financiados e/ou promovidos por Putin e agora pelos seus amigos norte-americanos como JD Vance, Bannon e Musk — a AfD na Alemanha, o Reagrupamento Nacional na França, e o Chega, para dar apenas três exemplos, que ajudam a minar a democracia e que pretendem fazer da Europa um conjunto de colónias norte-americanas e russas. Por certo, algo de parecido com o que eram os países do Pacto de Varsóvia num lado e a parte ocidental no outro. A diferença é que desta vez os que eram apoiados pela América não teriam liberdade, nem democracia, nem independência estratégica. A Europa está sozinha e impotente e com os tais traidores. Tem ainda os valores, mas como diria Staline do Papa, isso não tem exércitos.
A amnésia e a perda da consciência pela condição humana fizeram-nos pensar que a bondade e aquilo que ajudamos a definir como direitos humanos e fundamentais eram um dado adquirido e que não haveria retorno possível. E, sim, desse lado estariam sempre os norte-americanos.
Esses estouvados, ingénuos e que se fartaram de promover ditaduras e outras infâmias parecidas, mas que, mesmo assim, eram os campeões de tudo o que de bom e decente tinha acontecido no último século: os direitos das mulheres, das minorias, dos que tinham sido humilhados ao longo dos séculos. Os que tanto fizeram pela cultura e pelo pensamento. Os que desenvolveram a tecnologia ao serviço de todos como nunca na História. Tantos defeitos, tanta desigualdade, tantos erros, mas as qualidades que têm e os valores que defendiam fizeram a diferença.
Os que ainda acreditam na democracia e na liberdade são poucos e estão desarmados. Basta pensar um bocadinho para se perceber que a democracia é um pequeníssimo detalhe na história das comunidades. Pelos vistos, ainda mais pequeno do que pensávamos.
O Presidente francês, Emmanuel Macron, encontrou-se esta semana com o Presidente dos Estados Unidos da América na Casa Branca. Ouviu o que todo o mundo ouviu de Donald Trump. Que a guerra na Ucrânia pode “terminar brevemente, dentro de semanas” e que está “muito próximo” um acordo entre Washington e Kiev para que os norte-americanos possam aceder a recursos minerais ucranianos, nomeadamente a terras raras, minerais essenciais na produção de vários produtos industriais.
A invasão da Rússia à Ucrânia, dando início à guerra, começou há três aos, completados a 24 de fevereiro. Nesta segunda-feira, 24, Vladimir Putin saía de uma reunião do gabinete russo sobre recursos naturais dizendo que está disposto a oferecer aos EUA acordos lucrativos para exploração de minerais, incluindo nos “novos territórios” anexados pela Rússia, ou seja, as regiões ucranianas de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporijia. Além disso, falou também na exploração de alumínio na Sibéria, matéria-prima de que os EUA tanto necessitam.
Parece haver aqui dois tabuleiros em jogo – acordo EUA/Ucrânia e acordo EUA/Rússia –, mas se formos analisar bem, talvez seja sempre o mesmo jogo embaciado por manobras de diversão políticas. Num business as usual poderá encontrar-se uma tal de paz, mas vai custar à Ucrânia literalmente as suas entranhas: os seus recursos naturais, a capacidade de ser dona do seu destino, a sua independência. Anexada à Rússia ou à ganância dos Estados Unidos, tanto faz para os sonhos dos que lutaram e morreram contra a invasão.
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E, na verdade, que país é verdadeiramente independente e vive em plena liberdade? Só nas ilusões dos utopistas.
Ainda na semana passada, Donald Trump tinha chamado ao Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky “comediante modestamente bem-sucedido” e “ditador”. Que ele era dispensável na mesa das negociações da “paz”. “Ele está lá há três anos e faz com que seja muito difícil fechar acordos.” Aquele que o mundo viu emergir como um herói na sequência da invasão está, mais do que nunca, no fio da navalha. Tem aqui uma saída para o atoleiro da guerra, mas, como ele próprio disse, “não posso vender a Ucrânia”. Veremos se não venderá.
O acordo que os EUA lhe propõem implica, segundo Zelensky, dar aos norte-americanos 500 mil milhões de dólares em riqueza mineral em troca do apoio fornecido durante a guerra. Implica ainda que os EUA tenham uma participação financeira de 100% num “fundo de investimento para a reconstrução” da Ucrânia, que fará a gestão conjunta dos recursos do país – minerais, petrolíferos e de gás, infraestruturas e portos. Os tais 500 milhões de dólares serão a contribuição ucraniana para o fundo, 50% das receitas do mesmo. Mas nos territórios agora ocupados pela Rússia, e que eventualmente venham a ser desocupados, a contribuição ucraniana será de 66%.
O que acha Vladimir Putin disto? Segundo Donald Trump, o Presidente russo aceitará o envio de uma força europeia de manutenção de paz para o território ucraniano depois do cessar-fogo. Aliás, a Rússia votou a favor de uma resolução norte-americana para a paz na Ucrânia, apresentada no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Reino Unido e França abstiveram-se.
Será este então o papel da Europa – tema da visita de Macron à Casa Branca –, enviar soldados de paz para a Ucrânia. Para que os negócios decorram sem sobressaltos.
Mal se dá por ele, de tal maneira se encontra bem integrado na margem direita do rio, a poucos minutos de Peso da Régua. O Torel Quinta da Vacaria, numa das propriedades vinícolas mais antigas (1616) da região demarcada do Douro, é um exemplo de como um hotel de cinco estrelas pode dialogar com o seu passado histórico.
O projeto de arquitetura do gabinete de Luís Miguel Oliveira manteve a casa branca original à entrada – onde viveu a avó de Armanda Passos: “Do Douro aprendi, desde pequena, a olhar para dois sítios: para o rio e para o céu”, escreveu a artista plástica –, acrescentando-lhe um edifício semienterrado em tom bordeaux, onde se encontra o núcleo principal do hotel.
É neste edifício que ficam os 33 quartos e suítes (divididos pelas categorias Árvores e Frutos, Rio, Pássaros e Estados de Espírito), os dois restaurantes com a consultoria do chefe de cozinha Vítor Matos, o 16Legoas e o Schistó (ver caixa), o bar Barbus e o Calla Silent Wellness & Spa, que usa produtos biológicos da portuguesa Oliófora nos seus tratamentos e tem uma piscina interior com janela panorâmica sobre as vinhas e o rio.
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Fotos: Lucília Monteiro e Luís Ferraz
O Torel Quinta da Vacaria não é mais um hotel no Douro. Há um apelo ao silêncio e ao desligar do mundo exterior desde que se faz o check-in na belíssima sala com lareira, obras de arte da Galeria Filomena Soares e decoração irrepreensível de Joana Astolfi (trata-se do seu primeiro projeto no Douro). Para todos os espaços, dos quartos às áreas comuns, a arquiteta e designer escolheu mobiliário à base de madeira de carvalho ou nogueira e palhinha, mesclado com peças de origem portuguesa: cerâmica, cestaria e têxtil provenientes de lojas como Burel Factory, Depozito, Oficina Marques, Bordallo Pinheiro, A Vida Portuguesa ou Fabricaal.
Lá fora, além dos terraços e da piscina exterior para os dias quentes, passeia-se entre as vinhas e os jardins da autoria do paisagista João Bicho, num silêncio apenas interrompido pelo comboio que ainda atravessa a quinta, propriedade do grupo português Marec.
Torel Quinta da Vacaria > Vilarinho dos Freires, Peso da Régua > T. 254 240 242 > a partir €295
Comer e beber no hotel
16Legoas O restaurante mais tradicional do hotel (aberto a não hóspedes) a cargo do chefe Vítor Gomes e com consultoria de Vítor Matos, aposta nos produtos locais e na cozinha tradicional. Arroz de robalo de anzol, lúcio do rio Douro e pá de cordeiro de leite são algumas das sugestões servidas com azeite e vinhos da quinta.
Pá de cordeiro de leite. Foto: Lucília Monteiro
Schistó Abre em março este restaurante de fine dining do hotel, com assinatura do chefe de cozinha Vítor Matos (duas Estrelas Michelin no Antiqvvm, Porto, e uma Estrela no 2Monkeys, Lisboa). De terça a sábado ao jantar, terá um menu de dez momentos com produtos do Douro.
Adega Quinta da Vacaria 1616 Construída de raiz pelo arquiteto Luís Miguel Oliveira e revestida a xisto, está aberta a visitas e provas de vinhos do Porto e DOC Douro. T. 96 443 0091 > seg-dom 9h-18h > a partir €15
Depois de uma campanha eleitoral dominada pelos temas da crise económica e do crescimento da imigração, Friedrich Merz, que conduziu a União Democrata-Cristã (CDU) ao triunfo nas urnas, não perdeu tempo a mudar o foco do seu discurso. Na proclamação de vitória, no domingo, 23, logo que foram conhecidos os resultados que lhe entregam a cadeira de chanceler, ele anunciou que, sob o comando do governo que pretende formar, “a prioridade absoluta” da Alemanha passa por um objetivo central: “Fortalecer a Europa o mais depressa possível para que, passo a passo, possamos realmente alcançar a independência em relação aos Estados Unidos da América.”
Essa declaração foi lida, de imediato, como uma mudança de paradigma na política alemã, que representa a maior alteração estratégica de Berlim desde a reunificação do país. E ganha ainda maior significado por ter sido proferida por um político que sempre se declarou um “atlantista” convicto e que na sua vida profissional, como advogado, trabalhou com e em grandes empresas norte-americanas. A diferença é que, entretanto, o poder também mudou em Washington e Merz sabe que a Alemanha tem uma responsabilidade acrescida como terceira maior economia mundial e como “motor” da União Europeia.
“Nunca pensei que teria de dizer algo assim na televisão, mas não me restava outra hipótese depois das declarações de Donald Trump na semana passada, em que se tornou evidente que o seu governo não se preocupa muito com o destino da Europa”, justificou o novo chanceler alemão, que promete acelerar as negociações com os sociais-democratas, de forma a conseguir formar uma coligação governamental num prazo mais rápido do que é habitual na política germânica, em que estes processos costumam prolongar-se por vários meses.
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Sem tempo a perder
O sentimento de urgência enunciado por Merz foi rapidamente assimilado pelos restantes dirigentes do partido, após umas eleições em que a extrema-direita da AfD subiu ao segundo lugar, os sociais-democratas sofreram um revés histórico, os liberais desapareceram do Parlamento e a Esquerda, apesar de uma cisão, subiu alguns lugares. Os resultados indicaram que os eleitores jovens foram os responsáveis pelas subidas dos partidos dos extremos. E, em mais uma eleição, verificou-se um outro fenómeno cada vez mais corrente: as mulheres jovens votam mais à esquerda e os homens à direita.
Estes resultados, num contexto geopolítico absolutamente novo, fazem aumentar a responsabilidade sobre o novo governo, formado entre os dois partidos do centro, num país em que um terço dos eleitores depositou o seu voto nas organizações extremistas.
A tarefa de Friedrich Merz, numa Alemanha a caminho do seu terceiro ano consecutivo de recessão económica, é difícil e quase existencial para o futuro do sistema político. Ele precisa de restaurar a confiança na democracia liberal, numa época em que as autocracias começam a dominar o discurso político. E, como líder da maior economia do continente, tem de assumir o papel de maquinista da principal locomotiva europeia, a nível económico, militar e especialmente, também, no campo político. “Desde a reunificação da Alemanha, nenhum chanceler foi confrontado com uma tarefa tão monumental”, sintetizou, a propósito, em editorial, a revista Der Spiegel.
Grandes desafios
São muitos os desafios à espera de Friedrich Merz e da sua capacidade de conseguir formar uma aliança com os sociais-democratas que, de uma vez, termine com a imagem de indecisão e paralisia que marcou a era do seu antecessor, Olaf Scholz ‒ a qual ditou a sua queda.
Embora pareça existir união entre os dois principais partidos do centro para acelerar as reformas necessárias na economia alemã – cuja poderosa indústria está obrigada a transformar-se para não morrer ‒, a verdade é que, nas questões mais vitais e urgentes, vai ser preciso procurar entendimentos com outros partidos. Uma delas é a reforma do “travão da dívida”, uma regra orçamental que, na opinião de conservadores e socialistas, tem contribuído para a estagnação da economia alemã, por impedir maior investimento público. No entanto, isso exige uma revisão da Constituição, que só será possível com uma maioria de dois terços no Parlamento.
A verdade é que esta coligação surge como desejada pelos dois partidos, que, alternadamente, ao longo de décadas, têm exercido o poder. E a maioria dos vizinhos europeus espera que ela resulte, de forma a que a Alemanha assuma o protagonismo que lhe pertence, como país mais poderoso da União Europeia. “Estamos no início das negociações de coligação, com os sociais-democratas. E o que precisamos de fazer, como novo governo, é restaurar a confiança na Alemanha e também restaurar a confiança na nossa democracia”, afirmou David McAllister, dirigente democrata-cristão e presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros do Parlamento Europeu. “A Alemanha é o maior país da União Europeia, a economia mais forte e, juntamente com a França e a Polónia, desempenha um papel crucial na Europa. E o que precisamos é de um governo alemão que seja capaz de tomar decisões, seja capaz de agir a nível nacional, europeu e internacional”, sublinhou. É esse o grande desafio de Friedrich Merz: modernizar a Alemanha e afirmar a voz da Europa, num mundo em rápida convulsão. Estará à altura?
Um país, dois dilemas
Após mais de três décadas de reunificação, a Alemanha ainda não conseguiu eliminar velhas divisões. E é no antigo leste comunista que agora cresce mais a extrema-direita
Maioria suficiente? Os conservadores da CDU e os sociais-democratas do SPD conseguiram alcançar a maioria dos assentos no novo Parlamento alemão. No entanto, para decisões importantes, nomeadamente a mudança da Constituição, vão precisar de formar alianças, de modo a garantirem dois terços dos votos.
Zelensky vai a Washington meter-se na boca do lobo. Literalmente. Pensa que vai para uma coisa, mas sairá de lá com outra bem diferente. A ingenuidade não é do presidente ucraniano, mas de qualquer chefe de Estado ou de Governo que tenha de lidar com Trump. Especialmente com este Trump, ainda mais alucinado.
Zelensky acredita que obterá garantias de segurança em troca de minerais estratégicos e terras raras, mas isso não passa pela cabeça de Trump, que já garantiu não estar disposto a prestar esse apoio. Para ele, a Europa que se ponha a caminho.
Kiev também está convencida de que os EUA continuarão a fornecer ajuda militar sob a forma de doação. Mas essa hipótese nem passa pela cabeça do presidente americano que continua a distorcer os números da assistência já prestada à Ucrânia desde o início da guerra: “Foram 500 biliões de dólares e isso tem de ser pago”. Na verdade, foram apenas 124 biliões nos últimos três anos, um valor muito inferior ao que a Europa, tanto coletivamente como de forma unilateral, já entregou. Macron fez questão de o corrigir na Sala Oval.
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Ou Zelensky tem algum compromisso secreto com Trump, garantindo que este não negociará um cessar-fogo e a paz numa posição de total fraqueza, ou arrisca-se a ser humilhado pelo presidente americano, que tem da Ucrânia e da guerra uma visão pouco abonatória e até desprestigiante. O grande Trump (em físico) não quer saber do pequeno Zelensky. E isso diz tudo.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Michelle Trachtenberg morreu esta quarta-feira, aos 39 anos, por causas ainda por revelar. A informação foi confirmada pela polícia à cadeia de televisão americana ABC News, que avança que as autoridades descartaram já a hipótese de crime.
A atriz passou recentemente por um transplante de fígado.
Alguma imprensa norte-americana noticia que o corpo foi encontrado no seu apartamento em Nova Iorque, pela polícia, que terá sido chamada ao local, deparando-se com uma “mulher insconsciente”.
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Trachtenberg começou a carreira ainda na infância, mas a fama chegaria com a participação em várias produções de sucesso dos anos 2000, como a série “Buffy: A Caçadora de Vampiros”, em que interpretou Dawn Summers, irmã de Buffy. Uma das personagens mais importantes da sua carreira foi Georgina Sparks, na série “Gossip Girl”.
No cinema, destaca-se o seu papel em “Sonhos no Gelo”, da Disney, com Joan Cusack e Kim Cattrall.
Publicada logo em 2015, a encíclica Laudato Sí’ deu o tom sobre o modo como Francisco queria ser ouvido, ir para lá dos muros do Vaticano. Tentava compreender o mundo, estava alinhado com a Ciência e com o melhor conhecimento: as alterações climáticas são provocadas pela ação humana, advogou. A Igreja Católica entrava assim no debate contemporâneo, nos temas do ambiente, do desenvolvimento e da sustentabilidade. “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A Humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum”, escreve Francisco na Laudato Sí’. E continua: “Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos.”
Esperança Na Praça de São Pedro, em Roma, fiéis rezam e aguardam notícias sobre o estado de saúde do Papa Francisco Foto: LUSA
Na encíclica, o Papa foi ainda mais longe ao identificar as razões que conduziram ao atual paradigma de desenvolvimento, “o paradigma tecnoeconómico”, promotor do consumo, do desperdício e da sobre-exploração dos recursos naturais. Defendia ainda uma “ecologia integral”, para a qual são necessários pequenos gestos do quotidiano que nos “libertam da lógica da violência, da exploração e do egoísmo”. No entender de Filipe Duarte Santos, antigo professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, “o que mais perturbou os meios dominantes do atual paradigma tecnoeconómico foi o Papa desacreditar a solução do comércio de emissões em que se criam ‘créditos de carbono’, porque ‘não permite a solução radical que as atuais circunstâncias requerem’”. “Não há ambiguidade na mensagem do Papa relativamente àquilo que refere como o atual paradigma tecnoeconómico sem nunca mencionar a palavra capitalismo na encíclica. Porém, não restam dúvidas de que se trata do capitalismo liberal das décadas recentes”, argumentou, então, Filipe Duarte Santos num artigo do jornal Público.
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Em outubro de 2023, o Papa voltou a insistir no assunto. Foi publicada uma nova exortação apostólica, intitulada Laudate Deum, que o próprio Jorge Bergoglio disse ser a segunda parte da Laudato Si’. Nesse texto, lançado dois meses antes da COP28, no Dubai, o Papa apelou à responsabilidade perante a emergência climática. O mundo, alertava, está a “desmoronar-se”, “aproxima-se de um ponto de rutura”. E termina o documento de forma lapidar, sem contemplações: “Laudate Deum é o título desta carta. Porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo.”
2 – ESTEJAM PRÓXIMOS DAS PESSOAS
Carisma é sempre um conceito difícil de definir. Também é verdade que, deste ponto de vista, sucedendo a Bento XVI ‒ o “Papa intelectual” ‒, Francisco tinha a vida facilitada. Não se aconselham as generalizações, mas no caso concreto elas ajudam a explicar “o efeito Francisco”: além de ter sido o primeiro Papa proveniente da América Latina, também foi o primeiro jesuíta a ocupar a cadeira de Pedro no Vaticano. Logo no princípio do papado, em julho 2013, na Jornada Mundial da Juventude que se realizou no Rio de Janeiro, Jorge Bergoglio teve uma enchente digna de uma estrela do rock: 3,7 milhões de jovens reuniram-se na Praia de Copacabana para o ouvir. E ele, não perdendo a oportunidade, exortou-os: “Ide, sem medo, para servir.”
Com as devidas diferenças de escala, o mesmo voltou a acontecer dez anos depois, na Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, em 2023. Mal chegou a Portugal, Francisco responsabilizou a hierarquia eclesiástica por fomentar a “aversão” e a “desilusão” com a religião e fez questão de se reunir com vítimas de abusos sexuais. Depois, ao longo dos dias, privilegiou o improviso e dispensou os discursos previamente escritos. Foi claro, direto, alegre e divertido. Na vigília junto ao Tejo, proferiu uma frase difícil de esquecer: “Só é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo para a ajudar a levantar-se.”
Foto: José Carlos Carvalho
O professor Paulo Mendes Pinto resume esta postura do Papa à palavra “empatia”. “A forma de se relacionar com os outros, que se expressa com um carinho muito grande, quer se trate de católicos ou de não católicos”, diz o coordenador da área de Ciências das Religiões da Universidade Lusófona, sublinhando em particular os “não católicos”. Também Inês Espada Vieira, professora da Universidade Católica Portuguesa e presidente do Centro de Reflexão Cristã, comenta o facto de Francisco ter tentado “construir aos poucos uma maneira renovada de olhar para os temas de sempre”. Recorda uma frase de Frei Bento Domingues que, no seu entender, sintetiza o legado do pontífice argentino: “Nada de novo, tudo novo.” E justifica: “Não há ‘nada de novo’ porque tudo o que o Papa fez foi a partir do Evangelho e do Concílio, mas por outro lado há uma forma de renovação dos gestos, da esperança, de uma coragem cristã que leva à ação.”
3 – OUÇAM AS COMUNIDADES
Convocado pelo Papa Francisco, o Sínodo dos Bispos decorreu entre outubro de 2023 (a primeira assembleia) e outubro de 2024 (a segunda assembleia). A designação manteve-se, mas na verdade a reunião (a palavra ‒ sínodo ‒ tem origem no grego e significa “caminhar juntos”) deixou de integrar apenas bispos ‒ e isso, em si mesmo, já constituiu uma novidade. Contou, por exemplo, com a participação de mulheres como a suíça Helena Jeppesen-Spuhler, especialista em direitos humanos, e a teóloga espanhola Cristina Inogés Sanz, que não só proferiu a conferência de abertura como teve direito de voto.
Na altura, o secretário-geral do Sínodo, o cardeal Mario Grech, conhecido pelas suas posições progressistas, justificou: “A participação dos novos membros não só assegura o diálogo que existe entre a profecia do povo de Deus e o discernimento dos pastores mas assegura também a memória.” As expetativas em relação ao processo sinodal de Francisco eram de tal maneira altas que houve quem o comparasse ao Concílio Vaticano II, promovido por João XXIII. E não era para menos: o primeiro documento em debate falava, de forma explícita, em alguns temas considerados críticos para a Igreja Católica, como os abusos sexuais e as pessoas LGBTI. Mais tarde, as opiniões dos participantes dividiram-se, nomeadamente, no que diz respeito à questão do papel das mulheres. O documento final acabou por ser mais cauteloso: “Não há nenhuma razão para que as mulheres não assumam papéis de liderança na Igreja: o que vem do Espírito Santo não pode ser impedido. A questão do acesso das mulheres ao ministério diaconal também permanece em aberto. É necessário um maior discernimento a este respeito.”
Foto: LUSA
O texto regressou depois às comunidades, a quem na prática compete a sua implementação. No total, integra 155 pontos e é composto por cinco partes: O coração da sinodalidade, Juntos, na barca, Lançar a rede, Uma pesca abundante e Também eu vos envio. Como quase sempre acontece nas revoluções em curso, houve alguns recuos, mas até os católicos mais desiludidos reconhecem que há caminhos que não voltam para trás. Para Juan Ambrósio, professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, a ideia de ouvir as comunidades não terá retrocesso: “O Papa impôs a ideia de uma Igreja que se renova a partir daqueles a quem ela é enviada.”
4 – NÃO TENHAM MEDO DE MUDAR
Frei Bento Domingues também é dos que equiparam a figura de Francisco a João XXIII, o Papa que convocou o Concílio Vaticano II, o maior acontecimento da Igreja Católica do século XX. “Os excluídos passaram a ter uma pátria na Igreja. E esta, para mim, é a grande renovação. Além de que permitiu que a população cristã pudesse exprimir-se nas paróquias, em grupos que se formassem, com a toda a liberdade”, dizia o dominicano, em 2013, em entrevista à VISÃO.
Atualmente, a maioria dos cardeais com poder de voto no Colégio Cardinalício foi escolhido por Francisco. Em dezembro de 2024, o Papa elevou a cardeal prelados provenientes de dioceses remotas ‒ as tais “periferias” de que sempre falou. Rompeu com a prática de destacar bispos de grandes dioceses, escolhendo, por exemplo, figuras provenientes de Teerão (Dominique Joseph Mathieu), Argel (Jean-Paul Vesco), Tóquio (Tarcisius Isao Kikuchi) e Abidjan (Ignace Bessi Dogbo). Só neste último consistório ordinário foram criados 21 novos cardeais, sendo que apenas um não é eleitor (o italiano Angelo Acerbi, que atinge os 100 anos em setembro próximo).
O arcebispo de La Plata, Víctor Manuel Fernández, manteve-se como homem de confiança de Francisco, que o escolheu para prefeito do dicastério mais importante, o Dicastério para a Doutrina da Fé. Mas a presença das mulheres aumentou de forma significativa. Segundo dados que se referem à Santa Sé e ao Estado da Cidade do Vaticano, citados pelo Vaticano News, de 2013 para 2023, a percentagem de mulheres aumentou de 19,2% para 23,4 por cento. No princípio de 2025, pela primeira vez na história da Igreja, o Papa nomeou uma mulher para dirigir um dicastério: a irmã Simona Brambilla assumiu o cargo de prefeita do Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. A posição era, até agora, reservada a cardeais e arcebispos. Na opinião de Elisabeta Piqué, jornalista argentina e correspondente no Vaticano, isto “é algo que nunca aconteceu antes”. “Era impensável, há dez ou há 100 anos, que houvesse uma mulher prefeita na Cúria Romana”, afirmou, recentemente, em entrevista à agência Ecclesia. Em 2022, também a irmã Raffaella Petrini foi nomeada para secretária-geral do Governatorato e, já em janeiro de 2025, para presidente (com efeitos a partir do próximo dia 1 de março).
5 – ESCUTEM OS VOSSOS IRMÃOS MUÇULMANOS
Em matéria de diálogo inter-religioso, há um documento que marca o pontificado de Francisco. Intitula-se A Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum e foi assinado em Abu Dhabi, a 4 de fevereiro de 2019 (entretanto, o dia foi instituído pelas Nações Unidas como o Dia Internacional da Fraternidade Humana). O texto original fala numa “terceira guerra mundial aos pedaços”: “A história afirma que o extremismo religioso e nacional e a intolerância geraram no mundo, quer no Ocidente quer no Oriente, aquilo que se poderia chamar os sinais duma ‘terceira guerra mundial aos pedaços’; sinais que, em várias partes do mundo e diferentes condições trágicas, começaram a mostrar o seu rosto cruel; situações de que não se sabe exatamente quantas vítimas, viúvas e órfãos produziram.”
Não se trata propriamente de um documento paradigmático, antes surge na sequência de uma linha do tempo iniciada pelo Concílio Vaticano II, pela Oração pela Paz de João Paulo II e, depois, prosseguida por Bento XVI, na exortação apostólica Ecclesia in Medio Oriente (2012). “O Papa Francisco tem jeito e talento para restabelecer relações humanas, mas os critérios e a dinâmica desse documento já vêm detrás”, resume Peter Stilwell, antigo vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa e atual responsável pelas relações ecuménicas e diálogo inter-religioso do Patriarcado de Lisboa.
Foto: LUSA
No diálogo com o Islão, porém, existe outro momento recente importante. Em setembro de 2024, o Papa visitou a Indonésia, na mesma altura em que também esteve em Timor-Leste. Entrou na Istiqlal, a maior mesquita do Sudoeste Asiático, e ainda num túnel subterrâneo que liga o interior da mesquita à catedral católica de Nossa Senhora da Assunção. Chamam-lhe o Túnel da Amizade em homenagem à convivência religiosa. Na ocasião, Francisco apelou à fraternidade entre as pessoas de diferentes religiões e culturas. “Anunciar o Evangelho não significa impor a nossa fé ou colocá-la em oposição à dos outros, mas dar e partilhar a alegria do encontro com Cristo sempre com muito respeito e carinho fraterno por todos”, disse.
Peter Stilwell destaca igualmente este discurso de Jacarta por ser exemplificativo do diálogo advogado por Francisco. “Se formos pelas linhas das doutrinas, cada um tem as suas tradições e os seus rituais, não há diálogo. Este só é possível em torno de três ideias que constituem o chão comum entre as religiões: a dignidade humana, a procura do divino e a defesa dos mais frágeis”, justifica Stilwell.
6 – ACOLHAM “TODOS, TODOS, TODOS”
Na questão dos abusos sexuais na Igreja Católica, Francisco foi duríssimo. “Tolerância zero”, profetizou, ao mesmo tempo que defendeu indemnizações e compensações financeiras. Porém, tal como no diálogo inter-religioso, também nesta questão é justo que se diga que desenvolveu o caminho iniciado pelo seu antecessor, Bento XVI. Jorge Bergoglio teve a coragem, isso sim, de falar com os jovens sobre sexualidade e amor. Assim como de abrir alguns dossiers-tabu: celibato, papel das mulheres, homossexuais, divorciados… Perante uma Igreja empedernida e uma cúria bafienta, foi “um Papa sem medo”, nota Anselmo Borges, professor de Filosofia na Universidade de Coimbra.
Foi em Lisboa, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, que mandou o discurso que tinha escrito às urtigas, evitou as partes mais entediantes e afirmou: “Quando [Jesus] manda os apóstolos chamar para o banquete daquele senhor que o preparara, diz: ‘Ide e trazei todos’, jovens e idosos, sãos, doentes, justos e pecadores. Todos, todos, todos! Na Igreja, há lugar para todos. ‘Padre, mas para mim que sou um desgraçado, que sou uma desgraçada, também há lugar?’ Há espaço para todos! Todos juntos…” Aos jovens de todo o mundo que enchiam o relvado do Parque Eduardo VII pediu que repetissem um slogan em uníssono: “Peço a cada um que, na própria língua, repita comigo: ‘Todos, todos, todos’. Não se ouve; outra vez! ‘Todos, todos, todos’.”
Lampedusa Na primeira viagem que realizou, foi ao encontro dos migrantes que tinham acabado de atravessar o Mediterrâneo Foto: LUSA
No final de 2023, o Dicastério para a Doutrina da Fé publicou também uma nova declaração doutrinária segundo a qual os padres podem conceder bênçãos “espontâneas” a casais homossexuais. Juan Ambrósio lembra, no entanto, que estas mudanças não tiveram “tradução evidente no direito canónico” durante o pontificado de Francisco. “Ainda não se mexeu nesse setor porque, já se sabe, vai provocar tensões enormes”, argumenta o professor na Universidade Católica. E continua: “Francisco não é um teólogo encartado. Não entrou no debate puro e duro, na formulação escrita dos temas. Preferiu a prática e a ação.”
Na autobiografia que acaba de lançar (ver caixa), Francisco recorda a primeira vez que um grupo de transexuais foi ao Vaticano. “São filhas de Deus! Podem receber o batismo nas mesmas condições dos outros fiéis e nas mesmas condições dos outros, podem ser aceites na função de padrinho ou madrinha, bem como ser testemunhas de um casamento. Nenhuma lei do direito canónico o proíbe”, argumentou, provocando o choque entre os mais conservadores. Assumiu as resistências dentro da Igreja e defendeu divorciados e homossexuais: “Na Igreja, são todos convidados, mesmo as pessoas divorciadas, mesmas as pessoas homossexuais, mesmo as pessoas transexuais. Se o Senhor diz todos, quem sou eu para excluir alguém?” Lembre-se também o que escreveu Francisco na encíclica Fratelli Tutti, publicada durante a pandemia: “Ninguém se salva sozinho, só é possível salva-nos juntos.”
7 – COMBATAM “A ECONOMIA QUE MATA”
Francisco também faz a diferença, num mundo onde os líderes, políticos ou religiosos, costumam acautelar o discurso e medir bem o alcance das palavras. É por isso que, no meio de tantas guerras e tensões, desde que há duas semanas o Papa foi internado no Hospital Gemelli, em Roma, persiste a sensação de uma voz em falta. Ainda assim, há notícias que dão conta de que o Papa, apesar da fragilidade em que se encontra, tem telefonado para a paróquia de Gaza com regularidade. “Crentes e não crentes sentem necessidade de vozes lúcidas, capazes de abrir caminhos de esperança”, sustenta o teólogo Juan Ambrósio. “O Papa tem uma presença ativa na geopolítica internacional”, contrapõe, por sua vez, Anselmo Borges. Paulo Mendes Pinto diz ainda que Francisco tem “causas muito atuais”: “Transformou-se na caixa de ressonância do Ocidente.”
Logo em 2013, foi publicado um documento que acabou por ser uma espécie de programa oficial do papado de Francisco: na exortação apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), Bergoglio referiu-se, pela primeira vez, à ideia da “economia que mata”. Foi assertivo na denúncia do “fetichismo do dinheiro” e da “ditadura de uma economia sem rosto”: “Tal como o mandamento ‘Não matarás’ impõe um limite claro para defender o valor da vida humana, hoje também temos de dizer ‘Tu não’ a uma economia de exclusão e desigualdade. Esta economia mata.”
Parque Tejo “Só é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo para a ajudar a levantar-se”, disse Francisco, na vigília, na Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa Foto: José Carlos Carvalho
Também no princípio, a 8 de julho de 2013, o Papa surpreendeu ao deslocar-se à ilha de Lampedusa, no Sul de Itália, para se encontrar com os migrantes que tinham conseguido atravessar o Mediterrâneo. Foi a primeira viagem do seu pontificado e, se quisermos encontrar coincidências felizes, de certa maneira, essa viagem “rima” com uma das suas últimas iniciativas, antes de ser internado. Três dias antes de entrar no hospital, o Papa não poupou o programa de deportações em massa do Presidente Trump. Escreveu uma carta aos bispos católicos dos EUA e chamou a atenção para o sofrimento imposto a migrantes e refugiados. “Tenho acompanhado de perto a grande crise que está a acontecer nos EUA, com o início de um programa de deportações em massa. A consciência retamente formada não pode deixar de fazer um juízo crítico e de manifestar o seu desacordo com qualquer medida que identifique, tácita ou explicitamente, o estatuto ilegal de alguns migrantes com a criminalidade”, declarou.
Nessa missiva, o Papa também pediu que se rejeitem as “narrativas que discriminam e causam sofrimentos desnecessários aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados” e apelou ao “rigoroso respeito pelos direitos de todos”, argumentando que uma política que regule a migração “ordenada e legal” não pode ser feita “com o privilégio de uns e o sacrifício de outros”. E sentenciou: “O que se constrói com base na força, e não na verdade sobre a igual dignidade de cada ser humano, começa mal e acabará mal.” Como os católicos costumam dizer, enquanto há vida, há esperança. Por isso, para todos os efeitos, Francisco ainda é uma referência viva ‒ para os crentes e, graças à sua arte de chegar aos outros, também para os não crentes. Mais tarde ou mais cedo, contudo, vai fazer falta no mundo que se avizinha.