Segundo um estudo realizado pelo Pew Research Center, instituto de pesquisa americano, e repercutido pela revista Veja, cerca de 52% dos brasileiros acreditam que a Bíblia deveria exercer grande influência na elaboração e aprovação das leis, sendo que, em caso de conflito entre o texto bíblico e a vontade do popular, o livro sagrado deve prevalecer na legislação. Apesar disso os dados também apontam que apenas 22% das pessoas ouvidas acham que a Bíblia já exerce bastante influência sobre as leis no Brasil.
Mas o fenómeno não se verifica apenas no Brasil, já que a maioria da população de muitos outros países, mesmo de religião diferente, considera que o seu livro sagrado deveria exercer grande influência sobre as leis. São os casos do Bangladesh (82%), Quénia (68%), Malásia (62%), Indonésia (59%), Colômbia (57%), Índia (52%), Filipinas (51%) e Peru (50%).
Curiosamente, a investigação revelou a existência de uma situação diametralmente oposta nas populações dos países mais desenvolvidos, nos quais mais da metade considera que a Bíblia (ou outros livros sagrados) não deveria ter nenhuma influência sobre as leis. São os casos da Suécia (67%), França (66%), Espanha (61%), Holanda (60%), Austrália (59%), Alemanha (57%), Canadá (55%), Reino Unido (51%) e Itália (50%). A exceção reside nos Estados Unidos, onde 49% dos adultos defendem que a Bíblia deveria influenciar as leis nacionais de forma “razoável”.
Mas este panorama preocupante enferma de vários equívocos. O primeiro deles é saber qual é a autoridade legítima para definir os tais valores religiosos, quem a instituiu e como aconteceu tal coisa? No caso da Bíblia, quem é a autoridade hermenêutica reconhecida por todos os crentes, tanto a nível nacional como universal?
O segundo equívoco é que os valores religiosos e princípios de fé não devem estar na pedra da lei mas na carne do coração, isto é, interiorizados pelos crentes, que deste modo farão a diferença e supostamente influenciarão a sociedade no sentido positivo. No caso da fé cristã, o poder transformador do evangelho não se reflete na letra da lei mas na vivência quotidiana. Mais. A lógica das leis dos homens é que são feitas para encontrar formas de as contornar e infringir, enquanto na lei de Deus é suposto que Ele não se deixa enganar por truques humanos, além disso conhece os corações.
O terceiro equívoco é que ninguém pode nem deve impor aos outros, seja a quem não tem fé, ou aqueles que não têm a mesma fé que a nossa, a sua ética religiosa pessoal. Essa prática tem um nome: abuso religioso, normalmente temperado com fundamentalismo.
O quarto equívoco é que a única forma de se viver numa sociedade harmoniosa e em paz é respeitar as diferenças, e cada indivíduo ter a liberdade de viver segundo a sua filosofia, desde que não atropele os direitos humanos. Será tão difícil entender isso?
Por exemplo, se alguém é contra o divórcio simplesmente não se divorcia, mas a lei permite aos cidadãos em geral que, querendo, o façam. Uma lei que permite o aborto em determinadas condições não obriga ninguém a abortar. Então quem entende que a prática abortiva é contrária à sua fé não tem que o fazer. Apenas permite aos outros, que não têm fé religiosa ou outra forma de ver que o façam se assim entenderem. Quem não gosta do casamento com pessoa do mesmo sexo não é obrigado a fazê-lo, mas permite a outros que o façam se optarem por isso. Por que motivo teríamos de obrigar os outros a viver de acordo com os nossos padrões e escolhas pessoais?
Quem quer ser respeitado tem que começar por respeitar os outros nas suas opções e escolhas, em especial quando são diferentes das suas. Num estado laico, pretender criar uma legislação que obrigue os outros – sob pena de multa, prisão ou morte – a viver de acordo com os nossos padrões pessoais, baseados em interpretações frequentemente discutíveis de um livro sagrado duma religião, é presunção, abuso ou loucura, é confundir a beira da estrada com a estrada da Beira.
No caso da fé cristã, o evangelho não é uma imposição mas uma proposta. Tudo quanto for além disso não tem a marca de Jesus Cristo. Quando enviou os discípulos a anunciar a boa nova do reino de Deus disse-lhes: “E, quando entrardes nalguma casa, saudai-a. E, se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; mas, se não for digna, torne para vós a vossa paz. E, se ninguém vos receber, nem escutar as vossas palavras, saindo daquela casa ou cidade, sacudi o pó dos vossos pés” (Mateus 10:12-14). Ou seja, se receberem o vosso testemunho, ótimo, senão segui viagem.
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