Já tínhamos as crianças-soldado, uma tragédia para cuja consciência o mundo ainda não acordou, talvez porque se passa em África nas lutas tribais e ao serviço dos senhores da guerra. Crianças em armas que se tornam nos mais cruéis assassinos que se possam imaginar. Já tínhamos o trabalho infantil que, praticamente banido nos países desenvolvidos, continua a ser uma chaga em vastas regiões do mundo como a Ásia, onde conhecidas multinacionais o encomendam sem quaisquer pruridos ou problemas de consciência.
Já tínhamos os concursos de beleza de meninas de cinco e seis anos, maquilhadas, penteadas e vestidas como se fossem mulheres adultas, extremamente erotizadas, para gáudio das suas mães, que não entendem o crime que estão a cometer contra as crianças. Já tínhamos os papás que querem fazer dos filhos novos cristianos ronaldos do futebol, à força, na expectativa de descobrir ali um pote de moedas de ouro, nem que para isso tenham que insultar os árbitros, as crianças da equipa adversária e tantas vezes agredir os pais da outra equipa.
Só faltava agora o fenómeno das crianças-pregadoras. Aqui e ali vão-se vendo crianças que sobem aos púlpitos das igrejas para pregar a uma audiência de adultos. Trata-se de mais uma aberração da malfadada cultura gospel.
Os teólogos dizem que o sermão consta de duas grandes componentes: a Verdade e a Personalidade. Ou seja, a verdade espiritual que é proclamada e a personalidade do pregador. Ambas constituem o sermão. É por isso que um sermão apresentado a partir do mesmo texto das Escrituras por cem pregadores diferentes resultará sempre em cem sermões distintos uns dos outros. Ainda que a verdade proclamada seja a mesma, a personalidade de quem prega é diferente e única, pelo que daí resultará sempre algo distinto e único.
A personalidade duma criança ainda está em formação pelo que o seu discurso de púlpito não tem condições de substância nem credibilidade. O que se observa nestes casos é outra coisa a que se pode chamar a síndroma do papagaio. A criança tende a imitar. Faz parte dos seus jogos de crescimento e da dinâmica de desenvolvimento que experiencia. Para ela a possibilidade de simular a postura e a vida dos adultos é um jogo de fantasia.
Nem sequer se questiona a sua sinceridade, convicção ou mesmo a correcção daquilo que diz, mas a responsabilidade duma função para a qual não tem maturidade humana nem espiritual para desempenhar. Da mesma forma como os rapazes não têm maturidade para serem soldados, ou para trabalharem numa fábrica como se fossem adultos, ou as meninas para irem a concursos de beleza imitar mulheres adultas, ou rapazes e meninas a carregarem o peso de serem um pote de libras para os pais que as vêm como futuros craques do futebol, ainda mais as crianças-pregadoras estão distantes das competências para o efeito ou da capacidade de suportar a responsabilidade de quem prega o evangelho.
Quando o Mestre Jesus invocou o salmista: “(…) nunca lestes: Pela boca dos meninos e das criancinhas de peito tiraste o perfeito louvor?” (Mateus 21:16), decerto não estava a pensar em crianças-papagaio, mas em crianças que o glorificavam no templo, de acordo com o texto.
Se todas estas aberrações roubam a infância a que toda a criança tem direito, muito mais sucede com as crianças-pregadoras, transformadas em papagaios, que apenas repetem o discurso ouvido e aprendido aos grandes, e seus macaquinhos de imitação ao repetir as inflexões de voz, os trejeitos e maneirismo de púlpito numa tónica essencialmente lúdica.
Mas a responsabilidade da situação recai sobretudo nos adultos que se dispõem a ouvi-los, entrando assim nesse jogo perigoso. Não são as crianças que escolhem ser soldados, nem sujeitar-se a trabalho infantil, nem a concorrer a concursos de beleza, nem são eles que determinam vir a ser craques da bola. E mesmo que o desejassem não tinham maturidade para tais escolhas. São os adultos que escolhem por elas, estribados em interesses particulares, mas que nunca são de facto os reais interesses das crianças.
O que elas precisam é de serem amadas e cuidadas pela família, preparadas para a vida, ir à escola e sobretudo brincarem, pois é no seu mundo de fantasia que interiorizam o mundo, a vida em sociedade e constroem a sua personalidade única. Jesus disse: “Mas, qualquer que escandalizar um destes pequeninos, que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de azenha, e se submergisse na profundeza do mar” (Mateus 18:6).
A infância é coisa séria demais para se brincar com ela.
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