Eles agridem e ferem jornalistas e desancam mulheres idosas que pensam diferente, eles põem telemóveis em cima da cabeça a projectar luz para o céu, na esperança de obter auxílio de alienígenas, eles choram como crianças, eles ameaçam juízes de morte, eles filmam-se armados a ameaçar matar “petistas”, eles garantiam que o presidente democraticamente eleito não subiria a rampa do Planalto, eles tanto bajulam como xingam os militares à porta dos quartéis, eles afirmam que a cerimónia da posse do novo presidente e do vice era pura encenação, eles juram que quem está no poder é o general Heleno, eles vivem numa realidade paralela.
Por um lado são dignos de dó mas também de preocupação pela sua saúde mental. Depois disto tudo parece que os consultórios dos psicólogos e psiquiatras não vão dar vazão à procura. Por outro lado não admira, quando se sabe que cerca de 30 milhões de brasileiros acreditam que a terra é plana, e considerando a manipulação e o assédio religioso de que foram alvo nos últimos anos por parte de lideranças de muitas igrejas, pela mão de pastores sem escrúpulos e com interesses económicos e fiscais muito particulares.
Entretanto, uma pesquisa realizada aleatoriamente a 2,2 mil indivíduos entre os dias 8 e 9 de Janeiro pelo Instituto AtlasIntel (margem de erro: 2 pontos; nível de confiança: 95%), concluiu que 75,8% dos brasileiros discordam da ação de terroristas que invadiram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o STF. Mesmo entre os eleitores de Jair Bolsonaro na primeira volta das últimas eleições, 48,6% discordam da invasão do Congresso enquanto 38,1% concordam e 13,3% não sabem opinar. Mas dois dias depois em pesquisa com amostra idêntica (Datafolha) 93% condenaram os ataques golpistas, acreditando que Bolsonaro tem responsabilidade neles e a maioria defendeu as prisões (margem de erro: 3 pontos).
O estudo revela também um dado preocupante mas não surpreendente. É que a opinião favorável sobre o terrorismo é maior entre evangélicos (31,2%). “Na visão da maioria desses religiosos (33,5%), as invasões são “justificadas em parte”, sendo que 17% acreditam que são “completamente justificadas”. Mas a situação agrava-se ainda mais por que 67,9% dos declarados evangélicos também não acreditam que Lula tenha conseguido mais votos que Bolsonaro na eleição, o que comprova que aderiram à teoria das urnas falsificadas, mas apenas para a presidência da república. Não contestam a legitimidade dos governadores, senadores e deputados bolsonaristas eleitos exactamente nas mesmas urnas electrónicas, o que retira qualquer credibilidade à sua suspeita, pelo que agem claramente por ignorância, idiotice ou má-fé. Aqui está o resultado de anos de reiterada manipulação levada a cabo nas comunidades de fé por líderes evangélicos sem escrúpulos.
A Igreja Bolsonarista desviou o foco da Bíblia, atraiçoando assim a sua tradição de fé. Tornou-se idólatra ao endeusar um homem. É confrangedor ver como Bolsonaro foi recebido histericamente numa igreja pentecostal histórica, em pela campanha eleitoral, aos gritos de “Mito!”, ou como multidões de fiéis fizeram gestos de metralhadora em pleno serviço religioso. A Igreja Bolsonarista cedeu à tentação do poder político quando devia manter-se à margem de tais processos, cuidando dos assuntos do reino dos céus. Trocou o fruto do Espírito (“amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança” pelas obras da carne, entre elas: “impureza, inimizades, porfias, iras, pelejas e dissensões”. (Gálatas 5:19-22).
A Igreja Bolsonarista desviou os olhos de Jesus Cristo, atraiçoando assim a sua vocação espiritual. Perdeu o sentido do Sermão do Monte, onde são declarados bem-aventurados os mansos, os misericordiosos, os limpos de coração, e os pacificadores (Mateus 5:4-9). Que é feito do princípio cristão que levou S. Paulo a exortar os cristãos de Roma a seguir, mesmo em ambiente adverso à sua fé: “Se for possível, quanto estiver em vós, tende paz com todos os homens”? (Romanos 12:18). Ou das orientações paulinas aos líderes das comunidades cristãs para terem um bom testemunho dos que estão de fora (1 Timóteo 3:7). Confundiram César e Deus: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lucas 20:25).
A Igreja Bolsonarista semeou a mentira, atraiçoando assim a sua história. Como escreveu Gutierres Fernandes Siqueira na Christianity Today: “Nos últimos anos, as igrejas têm nutrido um relacionamento frouxo com a verdade e muitas vezes compartilharam de forma irresponsável teorias da conspiração. Em 2022, alguns cristãos afirmaram que grupos de esquerda lutavam pela legalização da pedofilia. Desde que Lula saiu vitorioso no segundo turno da eleição, em outubro, muitos cristãos se juntaram a vários de seus compatriotas, sugerindo que o segundo turno foi resultado de fraude eleitoral.”
Ainda Siqueira: “Infelizmente, a semente desse extremismo que atingiu seu auge no domingo foi plantada e cultivada, em parte, por igrejas evangélicas que apoiaram e fizeram campanha para Bolsonaro nas últimas eleições, e ajudaram a aprofundar a polarização, o discurso de ódio e a radicalização. Em sua desmedida defesa de Bolsonaro, alguns líderes evangélicos converteram um político rude, violento e avarento em um “homem de Deus”.
Simplesmente lamentável.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ Ratzinger, a vinha, os lobos e as raposas
+Da fábrica à incineradora de heróis
+ Dickens e o Menino que não tinha direito a aniversário
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.