O urso estava na jaula e o palhaço no camarim, mas ambos vinham ao plateau à vez, o palhaço quando era o momento de atuar perante o respeitável público e o urso quando era a vez de se exibir os animais selvagens.
Mas o urso tinha inveja das gargalhadas que o palhaço arrancava à assistência, e especialmente da alegria da criançada pois ele, o urso, só inspirava medo e alguns batiam-lhe palmas no fim da atuação quase por dever, senão parecia mal e o animal podia ficar furioso.
Um dia, o urso decidiu acabar com o palhaço por não conseguir suportar mais a sua presença na companhia. Passou muito tempo a magicar a vingança, mas tinha algum receio da reação dos outros artistas do circo. Então começou por lançar o boato de que o palhaço lhe roubava a comida que o tratador punha à beira da jaula quando estava a dormir.
A verdade é que os outros animais não ligaram muito à coisa excepto um urso mais pequeno seu vizinho. Uma noite, quando o domador abriu a jaula para preparar o nosso animal para o espetáculo, visto que ia atuar logo a seguir ao número dos palhaços, ele deu-lhe uma sapatada e correu para o plateau disposto a matar o palhaço.
Só que a multidão dos espectadores começou a gritar e invectivar o urso de forma tão surpreendente e agressiva que ele acabou por dar meia volta e regressar aos bastidores do circo, não sem que antes tivesse investido duas ou três vezes contra o palhaço. Mas este esquivou-se constantemente com inesperados golpes de rins, qual toureiro na arena, e escapou com alguns ferimentos.
O apresentador do espetáculo ainda lhe gritou que fugisse mas ele permaneceu firme sem nunca abandonar o seu posto de trabalho e isso caiu no goto do público.
Logo que o urso fugiu os espectadores explodiram num aplauso nunca visto e o espetáculo terminou com o palhaço a ser levado em ombros, já depois de se ter livrado da caracterização. Pela primeira vez o público celebrava o a coragem do homem por detrás do palhaço e não o artista.
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Se tiveram a paciência de ler esta estória já entenderam que ela não passa duma outra forma de falar da guerra de agressão de Putin e sua nomenklatura contra a Ucrânia. Sim, porque o povo russo está claramente contra esta guerra estúpida. Isto é coisa do antigo tenente-coronel da KGB que governa o país, dos oligarcas russos e da cleptocracia de Moscovo que substituíram o velho poder soviético. O urso não tem andado hibernado e só engana quem se deixa enganar. Mas esta invasão correu-lhe mal pois acabou por transformar um humorista num herói.
A reacção firme do mundo surpreendeu o ditador russo que estava habituado a que todos lhe aturassem o mau feitio apenas com protestos tímidos: Geórgia, Crimeia, etc. A dependência europeia do gás russo e a ameaça militar e nuclear tinham que ser travadas algum dia. Na esteira do seu presidente e governo os ucranianos estão a mobilizar-se fortemente contra o invasor, incluindo as mulheres que já perfazem 17% dos efetivos que se voluntariaram para defender a pátria.
Os bancos russos estão em queda, o rublo levou um trambolhão como nunca, a dívida do país começa a ser classificada como lixo, a aviação russa deixou de poder voar nos céus europeu e norte-americano, as sanções já começam a apertar os oligarcas que têm apoiado o ditador e alguns já vieram a público pedir o fim das hostilidades. As multinacionais estão a abandonar o território, a bolsa de Moscovo fechou, os sites do governo e banca estão a ser atacados por hackers, e as competições desportivas internacionais deixam de se poder realizar em solo da Federação Russa por recusa de atletas, treinadores e dirigentes estrangeiros, assim como de federações desportivas internacionais.
Como se tudo isto não bastasse o povo russo está a ganhar coragem e a vir para as ruas contestar abertamente a invasão da Ucrânia que é um país irmão, sujeitando-se a penas de prisão e multas pesadíssimas. À medida que as muitas baixas dos seus soldados se tornarem conhecidas a pressão do povo russo sobre Putin vai agravar-se.
O grego Sócrates, citado por Cícero, dizia não ser ateniense nem grego mas sim um “cidadão do mundo”. É como nós nos sentimos. Por isso somos todos ucranianos, apenas com a vergonhosa excepção dos ideologicamente cegos. Não lhes bastou a Hungria em 1956 nem a Checoslováquia em 1968?
Por agora ninguém sabe como esta aventura irá terminar, mas para já é o urso que faz de palhaço no palco do mundo. Sem ofensa para os palhaços, claro.
Slava Ukraini.
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