‘‘Nessa altura, quando vejo o movimento dele, a agressividade, aquela atitude astuta e passivo-agressiva, percebi que queria sair dali a qualquer custo. Quando o vejo a fazer o movimento de ir com a mão à zona da cintura, vejo-o com a faca na mão e subir a mão. Recuo de imediato e disparo para a zona inferior, a zona das pernas.” Tem a palavra Bruno Pinto, agente da PSP, 28 anos. Está na sessão de julgamento pela morte de Odair Moniz, cozinheiro, 43 anos. Bruno fala de uma lâmina, que as imagens de videovigilância só mostram no local onde foi encontrada pelo menos 27 minutos depois de ter sido disparado o primeiro dos tiros que abateram Odair. Não podemos ouvir Odair Moniz. Está morto. Mas concentremo-nos no que nos diz Bruno Pinto.
“O meu colega começa a gritar, quando parecia que estava tudo bem. E disse ‘alto, ao chão’. Ele saiu com uma atitude e a dizer ‘sou doente’. Tinha uma ligadura na mão. Quando sai, percebo que começa a dar passos devagarinho para cima. Presumi que estava a tentar sair. Diz várias vezes ‘sou doente’ e ‘arma não’, ‘bastão não’ e vai subindo devagarinho”, conta o agente Bruno. A juíza não lhe pergunta o que é “uma atitude”.
A cena acontece depois de uma curta perseguição de carro. Odair Moniz estava a conviver com amigos na Cova da Moura e saiu para ir buscar cachupa a casa, no Bairro do Zambujal, quando ficou de frente para o carro-patrulha. A decisão que tomou nesse instante custou-lhe a vida: deu uma guinada à viatura e, com isso, tornou-se suspeito.
Durante pouco mais de um minuto, fugiu até embater contra um carro estacionado. Cá fora, os dois polícias já o esperavam. Bruno tentou algemá-lo. Mas não conseguiu. “Ele vira-se e desfere-me um soco na face. A partir daí foi um momento explosivo e nenhum [dos dois] controlou as forças, estávamos muito ofegantes”, contou à juíza.
“Considero que o ambiente era escuro, estávamos todos sob stresse. Efetuei dois disparos seguidos. Quando olhei para a cara dele, não vi reação ao primeiro disparo, manteve os olhos abertos. Ao segundo disparo, vejo os olhos a fechar e a cair.” A má decisão que Odair Moniz tinha tomado minutos antes custou-lhe a vida.
O polícia começou a sessão de julgamento a pedir perdão. “Gostaria de pedir desculpa à família e aos amigos. Acredito que não seja fácil para ninguém”, declarou, antes de referir “aquela atitude astuta e passivo-agressiva” que viu em Odair Moniz, que na altura não tinha nome e, com o rosto mergulhado no escuro, era apenas um homem negro suspeito, na Cova da Moura, um bairro cuja fama evoca fantasmas. Ou será que alguém consegue imaginar o mesmo desfecho para uma perseguição na Avenida de Roma, com um homem branco, louro, de olhos azuis, a sair de um bólide desportivo, depois de ter tomado a má decisão de dar uma guinada ao carro mal viu a viatura policial?
Não foram Bruno Pinto e Odair Moniz quem se encontrou naquela rua da Cova da Moura na madrugada de 21 de outubro de 2024. Eles só seguiram a coreografia de uma dança antiga. A dança em que cada um deles vê o outro como uma ameaça. O polícia que entra no bairro, que o ensinaram a temer, olhando para cada homem negro como uma ameaça. O homem negro que foge instintivamente do polícia, que o ensinaram a temer, tornando-se cada vez mais suspeito à medida que o medo o invade e lhe grita que corra e resista.
Há quem já nasça suspeito. Não acreditam? Um amigo contou-me uma vez que já se habituou a ver as mulheres agarrarem-se às bolsas ou mudarem de passeio quando passa por elas nas ruas. É um homem calmo, doce, um poeta de palavras suaves, que fala quase sempre numa cadência sussurrada. Mas a pele escura anuncia-o antes que lhe possam ouvir a voz. A melanina é uma denúncia. Está na cara que é suspeito, perigoso, uma ameaça. E as mulheres brancas são ensinadas a temê-lo sem nunca o terem conhecido.
O racismo é isso. É temer aquele que não conhecemos, porque ele não se parece connosco. Não é sobre os amigos de pele escura que temos e de quem gostamos. É sobre aquilo que pensamos de quem nada sabemos a não ser o tom da pele, o encrespado do cabelo, a grossura dos lábios ou do nariz. “Enquanto tinha seguranças nos supermercados atrás de mim, para ver se eu ia levar alguma coisa sem pagar, agora tenho para me pedirem uma fotografia, um autógrafo”, contou à VISÃO o Dino D’Santiago para explicar como o olhar racista é o que projeta o ódio no outro quando ele é desconhecido.
É essa a história que nos conta Bruno Pinto que, mesmo no mais escuro breu, viu em Odair Moniz “aquela atitude astuta e passivo-agressiva”. Aquela? Aquela que lhe ensinaram que têm os homens negros suspeitos. Bruno Pinto não viu um homem. Viu um suspeito. Da mesma maneira que Odair Moniz – que agora já não pode falar, está morto – não viu Bruno Dias. Viu um bófia, daqueles que, aprendeu, arranjam problemas a homens negros que andam pelos bairros, daqueles que batem, daqueles que desconfiam, daqueles que com um simples gesto estragam a vida aos que com eles se cruzam.
Não há santos nem inocentes nesta história. Nem Odair Moniz precisa de ser a vítima perfeita, impoluta, pura, para que se faça dele um mártir. Nem Bruno Pinto precisa de ser o vilão racista, impiedoso, desalmado, para ser condenado. E é precisamente por isso que se devia olhar para esta história não como a daquela madrugada de 21 outubro de 2024, em que dois homens tiveram o azar de se cruzar numa rua escura, mas como mais um episódio de uma narrativa muito antiga. O que aconteceu naquela noite começou há centenas de anos. Naquela noite, os homens chamavam-se Bruno e Odair, mas já tiveram muitos nomes. E o que devia acontecer era percebermos isso, para encontrarmos uma forma de encerrar este capítulo. Para que um Bruno não tema um Odair e dispare até o ver cair no chão, porque os olhos abertos e “aquela atitude astuta e passivo-agressiva” o fazem tremer. Para que um Odair não tema um Bruno e fuja e resista, até isso lhe custar a própria vida.