As pedras estão esplendorosas. A luz que entra pelos vitrais, agora limpos do pó de séculos, inunda a pedra lavada, mais clara que nunca, em reflexos que sobem até às ogivas que se lançam aos céus. Todo o edifício se projeta para cima, em direção a Deus, esmagando os homens na sua pequenez, mas não todos. Quatro mil mãos anónimas e calejadas trabalharam durante 2063 dias para que, no momento da inauguração, o seu esforço agigantasse os poderosos, recordando-nos do seu poder.
De peito aberto, triunfal, Emmanuel Macron, avança sobre a catedral, arrastando atrás de si um cortejo dos poderes do mundo. Pouco importa que o Governo francês tenha colapsado, que os mercados façam ameaças, que o povo questione como pode andar tão desligado o voto do poder. “Não têm pão? Comam brioches”.
É preciso atentar aos homens que o rodeiam e ao que faltou. O Papa Francisco recusou-se a dar a missa da inauguração de Notre Dame. Macron, presidente de um país tão obsessivamente laico que impede jovens raparigas de irem para a escola com túnicas que tenham um ar muçulmano, sobe ao púlpito. Fala dentro da igreja, com Donald Trump, outra vez senhor do mundo, e a sua própria versão de cardeal Richelieu, Elon Musk, na plateia.
Quando o poeta cantava o sonho feito “base, fuste, capitel,/ arco em ogiva, vitral,/ pináculo de catedral” não deve ter pensado nisso. Nessa altura, as catedrais pareciam ter voltado à sua condição de pedra. Olhávamos para elas como testemunhas das mãos dos homens. Mas Notre Dame é, agora, outra coisa. Não são só as pedras que foram polidas ou os dois mil carvalhos cortados nas florestas francesas para suportar o telhado, é a própria ideia de catedral que renasce, vinda dos tempos das trevas, para se erguer como símbolo do poder de uns poucos sobre todos os outros.
Se alguém estivesse à procura de uma metáfora para os nossos tempos, dificilmente lhe poderia ter ocorrido uma melhor do que esta inauguração de um monumento renascido das cinzas para a luz e a glória de um punhado de homens sentados no topo do mundo. O poder, que já esteve nas ruas, volta às catedrais.
Dias depois da festa, a imprensa mundial anunciava que Elon Musk é agora o homem mais rico que alguma vez pisou a face da Terra. A fortuna do empresário libertário ultrapassou os 400 mil milhões de dólares. Noutros tempos, a riqueza podia medir-se em arcas de ouro e pedras preciosas, mas a Musk bastam-lhe etéreos números, engordados por aquilo que sempre fez crescer os mais ricos: a proximidade ao poder.
As ações da Spacex e da Tesla de Musk dispararam porque os mercados sabem que Musk manda agora em Washington. E, porque manda, as suas empresas vão poder aceder aos melhores e maiores contratos públicos e às regras que mais lhes convêm. É disto que se faz a liberdade e o engenho do magnata empresário, deificado por quem aspira a ser o que nunca será, como antes os crentes se deixavam pisar pelos faraós.
Graças a este passe de magia de Elon Musk, que ficou 63 mil milhões de euros mais rico num só dia, os 500 homens mais ricos do mundo têm agora tanto dinheiro nas mãos como os produtos internos brutos da Alemanha, Japão e Austrália juntos.
Não sei se os sismógrafos do mundo registaram este abalo, mas tenho a certeza de que o centro da terra se inclinou mais um pouco. Que ninguém pense que estas mudanças não terão consequências. Quando muito poucos pesam muito mais do que os muitos, isso muda tudo.
Mesmo que muitas vezes de forma limitada e imperfeita, a democracia é o sistema em que o princípio do voto universal dá poder aos que o não têm. Durante quanto tempo poderemos continuar a usar essa palavra para descrever um sistema em que o poder está nas mãos de um grupo restrito de pessoas que age em seu próprio benefício? E que poder nos restará a nós para fazer face a essa oligarquia de ultra ricos, que só apreciam a liberdade de aumentar o próprio poder?
Deixo a pergunta sem resposta, sabendo que em tempos de opressão, perguntar é já em si mesmo um ato de resistência. Perguntemos, então.