1. A pertinência do momento
Portugal vive hoje uma realidade social e cultural completamente nova na nossa História. Num quadro cronológico e político pós-25 de abril, democrático, com a pobreza extrema reduzida a valores nunca antes vistos, com índices de segurança também únicos na nossa história, com uma população tendencialmente urbana em vez da rural que sempre nos marcou, com quase toda a população alfabetizada, sendo parte significativa da juventude formada no ensino superior, viajando-se e conhecendo-se mundo como nunca antes aconteceu, com uma sociedade laicizada e parte dos seus membros longe das práticas religiosas tradicionais, estamos no momento certo para revisitar as principais problemáticas de uma possível identidade nacional.
Se essa reflexão foi, ao longo da nossa História, espaço e material para afincadas posições ideológicas, hoje, longe das sociedades que ao longo do tempo se alimentaram desses ideários e, assimilando-os, deram, tantas vezes, a sua vida por eles, urge pensar na forma como esta nossa nova-sociedade-portuguesa poderá encaixar nessa inevitabilidade que se constata: com fronteiras quase estáveis, Portugal já conta mais de oito séculos de existência. A abertura hermenêutica para justificações sobrenaturais e espirituais ganha um espaço e uma capacidade de justificação que as disciplinas académicas, especialmente a Geografia, a História, ou a Antropologia parecem hoje incapazes de cumprir na sua grelha das ciências modernas.
Inevitavelmente, todos somos fruto do sistema de ensino e dos quadros familiares que vivenciámos e que nos deram materiais e leituras sobre Portugal. Assimilados com maior ou menor passividade ou sentido crítico, a “História Oficial” que está contida e definida nos programas escolares, nas metas curriculares e desenvolvida nos manuais escolares, continua plenamente etnocentrada, distante de qualquer visão comparatista. É esta a base de que partimos, a noção de que todos “bebemos no leite materno” uma visão que já em nada está de acordo com o novo quadro social e cultural do pós-25 de abril, da sociedade laicizada e, maioritária e tendencialmente, cosmopolita que temos.
Participamos, hoje, de uma equação centrada numa visão estática do passado, trilhada em alunos a quem essa visão já pouco ou nada diz porque a forma de ver e de vivenciar o mundo mudou, alterou-se para um quadro em que o “outro” é a dominante do foco social, da visibilidade mediática, e, tantas vezes, o centro de uma valorização cultural que assenta no diferente e não numa suposta “natividade”. Vivemos um momento, devido à falência e à reformulação das narrativas tradicionais, sejam elas religiosas ou ideológicas, de liberdade plena de revisitação dos materiais mitológicos, de recriação de narrativas, tantas vezes descontextualizadas e fácies de manipular por oportunismos e populismos.
Não temos como objetivo anular e destruir as mitologias em que assenta a identidade, mas mostrar como as narrativas do imaginário são realidades dinâmicas, relacionais e interdependentes
2. A abordagem
A reflexão sobre a existência de Portugal faz parte do nosso próprio quadro mental. Não apenas as elites culturais ciclicamente regressam a essa problemática, como ela própria se afirma como parte da possível ou suposta identidade. A questão «Portugal» faz parte da realidade «Portugal», como se a dúvida da própria existência fosse uma das características identitárias. Aliás, sendo as identidades processuais, construídas, a portuguesa, existindo, parece afirma-se pelo caminho da dúvida sistémica, mais que sistemática, sem que disso resulte análise isenta: num movimento dialético, parece que se constroem dúvidas para a seguir se afirmarem, com mais força, certezas.
Este questionamento nasce, tantas vezes, seja a nível erudito, seja popular, de uma tensão que se alimenta de duas dinâmicas complementares. Por um lado, por uma quase eterna nostalgia de um passado, mais ou menos glorioso, mas perdido, alimentado por uma palavra em torno da qual se criou um imenso simbolismo e uma tremenda paixão, afirmando-a como intraduzível: a «saudade», um sentimento que define, na visão de muitos, a identidade espiritual dos portugueses. Por outro, uma constante tensão entre o magnífico e o decadente, entre a afirmação das glórias passadas e das capacidades presentes e futuras, e uma constante crítica, incapaz de ver a realidade, e representando-a tantas vezes como decadente, corrupta, vendo apenas no estrangeiro o certo, o modelo a imitar.
Contudo, no registo de uma junção entre o saudosismo, uma clara nostalgia epidérmica, com esse desejo de nos ver como decadentes face ao exterior, nasce um campo fértil para a busca de sentido e a fuga ao acaso. A necessidade de uma explicação, por mais elaborada e longe das fontes históricas e trabalhadas academicamente, parece ser uma necessidade de que se alimentam as explicações de uma identidade nacional, desde há bem mais de meio milénio.
E a matéria de que se faz este sonho de encontrar um desenho com sentido acima deste retângulo “à beira mar plantado”, seja-o, quer na escassa dimensão geográfica, seja na natureza alquímica de uma saudade que se transforma em futuro, seja, mesmo, no imaginário de um lugar e de um papel político muito acima de uma cultura, mas eficaz para toda uma civilização ou, até para o mundo, como se fosse uma missão civilizadora e salvífica para toda a orbe, é a dupla constatação do desequilíbrio entre a dimensão geográfica e humana e o peso cultural e político.
Aqui, como material constantemente manuseado, duas equações são prementes e devem ser colocadas no centro da reflexão – não que lhes demos resposta, mas porque, de facto, implicam uma atitude, quer de tomada de consciência, quer de natureza crítica para uma correta e isenta abordagem e valorização. E estes dois aspetos são, de facto, significativos para qualquer olhar, quanto mais para um que deseja encontrar material inexplicável num patamar de racionalidade cartesiana, lançando a interpretação para o universo do espiritual.
A primeira constatação a que não podemos fugir remete-nos para o facto incontornável de Portugal existir, com fronteiras, língua e fortes aspetos de comunidade, há quase um milénio, sendo um dos países mais antigos do mundo e, entre estes, um dos que tem fronteiras estáveis há mais tempo.
A segunda constatação, alimentada numa diacronia que toma os chamados Descobrimentos como fulcro, centra-se na dimensão global que Portugal tem, muito acima do seu peso demográfico e económico. É herança histórica, saudosista, mas é também a posição atual em que nenhum outro Estado deu, nas últimas décadas, tantos dirigentes em posições cimeiras em grandes órgãos internacionais.
De forma sintética, estas duas constatações são o que desperta o normal cidadão para a procura de uma justificação que suporte esta incongruência da diplomacia e da geoestratégia: porque é Portugal independente? E porque tem um peso tão significativo? Obviamente, é apetecível dizer que não é pelo acaso, e muito menos por mérito das gerações que tantos gostamos de afirmar como degenerescentes, incapazes e corruptas.
O comboio das justificações messiânicas parece hoje estar novamente a chegar a setores largos da nossa intelectualidade e, mesmo, da nossa cultura popular. É por eles, cruzando-os com uma leitura do que historicamente temos como conhecimento, construído com base em fontes e não apenas em elucubrações, que nos debruçaremos pelos tópicos que julgamos serem os mas significativos nesta equação.
3. O roteiro
O caminho que trilharemos neste grupo de textos seguirá um sentido desconstrutivista, mas também complexificador da realidade analisada. Seguimos de perto o conceito de imaginário de Gilbert Durand, procurando estruturas de mentalidade que alimentaram e alimentam um imaginário coletivo.
Não temos como objetivo anular e destruir as mitologias em que assenta a identidade, mas mostrar como as narrativas do imaginário são realidades dinâmicas, relacionais e interdependentes. Metodologicamente, a nossa abordagem irá ter como constantes os seguintes princípios hermenêuticos e epistemológicos:
- Análise entre o que é específico e o que é comum a identidades vizinhas;
- Verificar, contextualizar e relacionar o que é fruto de ação e o que é fruto do acaso ou de contextos externos;
- Perceber o que nos torna peculiares, seja por desejo e vontade, seja por especificidades que não controlamos, mas definem opções.
O elenco dos grandes temas que abordaremos, numa visão diacrónica no horizonte para onde remetemos o material identitário, é o seguinte, agrupado por esferas de significado operativo:
Parte 1: Os materiais da ancestralidade:
- Os mitos de origem e a etnicidade
- A origem da nacionalidade
- A herança islâmica
- A herança judaica
- O messianismo e o Quinto Império
Parte 2: Os materiais criadores de tensões:
- As liberdades municipais e o centralismo
- A memória dos “Descobrimentos”
- Espanha, Europa, o “estrangeiro”
- A relação com a Igreja Católica
Parte 3: Os materiais da contemporaneidade:
- O racismo e a lusofonia
- Educação, elites e reconhecimento
- O fado, a saudade e a imigração
- Os heróis contemporâneos comuns
- As narrativas de insegurança e de corrupção
Nas próximas semanas vamois desenvolver estes temas na VISÃO.