Quando um médico e professor vienense deu por si a investigar o que leva o comum dos mortais, incluindo ele próprio, a cometer deslizes que nos embaraçam – dos atos falhados ao esquecimento ou troca de nomes próprios – estava longe de pensar, em 1901, que o texto Psicopatologia da Vida Quotidiana, passado a livro alguns anos depois, se tornaria num clássico científico do século XX, despertando grande interesse, na burguesia e mais além. Munido de manuscritos com reflexões suas sobre o inconsciente – «a peste», como terá comentado com Carl Jung – no navio que o levava ao Novo Continente, Sigmund Freud só ficou convencido disso quando se viu a sua obra nas mãos de um camareiro, que a lia avidamente.
Apesar de, ainda hoje, se caricaturar o pai da Psicanálise, por ver em todas as coisas um segundo sentido, ele era o primeiro a desmontar tais certezas e não se coibia de dizer “às vezes um charuto é apenas um charuto”. Apetece, pois, imaginá-lo enquanto um de nós, residentes do admirável mundo digital. Ele, Freud e os seus alter egos. Como se comportariam no registo acelerado e mutante da sociedade do conhecimento?
Freud, investigador: seria um adepto incondicional das neurociências, na era do pós Prozac e pós Viagra? Freud, escritor: a troca abundante de correspondência com os pares daria lugar a parcerias com os senhores do Vale do Silício, nos EUA? Ou à partilha de Tweets à escala global? Freud, analista: faria consultas por Skype, com direito à opção ‘sem vídeo’, para preservar a lógica do divã, na ‘terapia pela fala’? Freud,o médico: com que olhos veria a bíblia das doenças mentais, que ‘vendem’ como pãezinhos quentes e convivem coma multiplicação de fórmulas para estilos de vida ditos saudáveis? Freud, o homem: até que ponto o smartphone pode destronar o charuto?
Na vida de todos os dias, não cabem só patologias. O Mal Estar na Civilização, outro dos clássicos do psiquiatra e investigador da mente humana, e que permanece tão atual, coabita com a diversidade de projetos inovadores nas áreas do bem-estar e dos estilos de vida conscientes. Com tanta tecnologia a parametrizar, em tempo real, todos os nossos atos (até os falhados!), o difícil é ter tempo e espaço para filtrar e elaborar tanto ‘input’ sem perder-se na floresta cibernética.
O difícil é não sentir-se pequeno diante da aparente desordem e conseguir manter-se inteiro sem sucumbir, entre outras coisas, à dispersão e ao tecno stresse. Cultivar o sentido interno de coerência, termo cunhado pelo sociólogo Aaron Antonovsky, na segunda metade do século XX, para descrever uma postura de vida pautada pela sensação duradoura de confiança, manifesta na capacidade de encarar o real como compreensível, gerivel e tendo um sentido de propósito.
No século XXI, o mote é a resiliência, a capacidade de adaptar-se de forma positiva em sistemas complexos. É resolver problemas, vencer obstáculos e resistir à pressão da adversidade. É colocar a motivação pessoal e a livre vontade em cada decisão. E aí é que são elas… as ‘dores’ do crescimento que, é sabido hoje, se prolongam pela vida inteira.
Quando eu era criança, o leque de opções acerca do que queria ser quando fosse grande parecia-me infinito e gerava-me angústia. Perturbavam-me as certezas dos outros que, com a minha idade, partilhavam fortes convicções sobre o que queriam ser, na idade adulta. Uns, na profissão. Outros, na vida privada e familiar. Cresci com a febre dos testes vocacionais e outros que tais, mas se olhar para trás apercebo-me de como as decisões mais importantes da minha vida foram tomadas sem rede. Questiono-me se terão sido totalmente conscientes.
Freud explicaria, fantasio eu. Eu, que não estava à espera que me dissssem, na universidade, que a Psicologia era uma ciência que sistematizava o senso comum. Eu, que nos momentos de tédio de que todo o adolescente se queixa, estranhava ouvir os mais velhos queixarem-se: “A vida é curta”. A experiência fez-me perceber um pouco melhor o alcance desse comentário comum. Faço parte da geração que beneficiou dos programas sociais de bem-estar, dos avanços da medicina e do aumento da esperança de vida. Ainda assim, a vida é curta, para tudo o que se pode querer Fazer e Ser.
Por isso, quando um dia testemunhei uma conversa entre miúdos e gente crescida, em que vinha à baila o tema da carreira, das melhores opções a seguir na sociedade competitiva e escassa em empregos, e a incontornável pergunta da praxe «O que queres ser quando fores grande?», foi com espanto, deslumbre puro, que ouvi da boca de um dos protagonistas visados: «Quando for grande quero ser… uhm… grande!»
Depois disto, parei, pensei e associei: «Meu caro Freud, isto merece um charuto.»