Mapeador de Ilhas
A vida, em tempo parcial
– Há uma coisa que o senhor nunca esclareceu: será que Deus autoriza a vingança? É que se Deus tanto perdoa, então, no meu caso, eu estou autorizada...

A rainha sem trono
Desde sempre, a mãe tinha declarado guerra total àquilo que ela chamava “indústria de mexericos” da monarquia britânica

O abraço
Ergui o livro que trouxe comigo e traduzi para português o título: “O sangue dos esquecidos.” Estêvão abanou a cabeça e sacudiu o vazio. Livro, meu irmão?

O coiso
O que alimenta a mentira não é a qualidade da impostura. O que alimenta a crendice é o vazio da vida. Uma fake news pode compensar uma fake life

A solidão de Teodoro
Sente saudade de qualquer coisa, um pedaço da infância, o riso de Delfina, a gargalhada dos filhos. Nostalgia de algo que nunca houv

O incorretor automático
– Quem é a puta? – Tanto insistiu que perdeu a voz. A pergunta era retórica. Esmeralda queria apenas deflagrar um nome feio. As palavras podem ser balas. Puta, mil vezes puta

A assinatura póstuma
Sentou-se no degrau do pátio e foi falando como se não houvesse tempo. O filho tinha ido para a cidade e não mais voltara. Tinha-se perdido porque, nas guerras, os caminhos ficam todos iguais

Uma prece à procura de um crente
Era nela o que mais resistia à velhice: os seus olhos escuros e brilhantes. O tempo tudo enrugava, menos o seu olhar

A metafísica dos equívocos
Tudo acontece no momento certo, o que é preciso é deixarmo-nos ser abraçados pelo tempo

Carta a Putin
O vizinho sabe falar e escrever russo. Aprendeu quando, há meio século, estudou na falecida União Soviética, que Deus a tenha lá no cemitério das nações, onde enterram hinos e bandeiras

O emigrante algorítmico
As pessoas complicavam e atrasavam os processos. Saltavam passos, tinham dúvidas, reclamavam. E sobretudo, erravam. Esse é o maior pecado da nossa espécie. Errar

O bosque (Homenagem ao poeta Miroslav Holub)
Há muito a alma lhe encalhara no corpo. O homem desistira-se

O regresso a casa
Puxou o punho bem para trás do corpo e desfechou um murro movido por raivas milenares. Aconteceu, então, o impensável: Matilde desviou-se do golpe

A lembrança de Ilda
Com oitenta e um anos, não há semana que não escreva uma cartinha para cada um dos seis filhos. É assim que insiste em chamar: uma “cartinha”

O culto dos pesarosos
Ainda me ocorreu argumentar que eu era feliz exatamente porque lutava, à minha maneira, para mudar esse afligido mundo

Sem teto
Maurício volta a entrar para o quarto, liga o computador e espreita as notícias do mundo. Não é exatamente o mundo que ele quer ver. Quer deixar de se ver no mundo

A pasta do vizinho
Chamavam-lhe o “Doutor da Pasta” porque o homem caminhava invariavelmente com uma pasta apertada contra o peito. E fazia-o com tal zelo que uma vizinha chegou a especular que se tratava de uma carga explosiva

O nome do pai
Aquela bagagem servia apenas para encher a vista dos outros. Um viajante é medido pelo tamanho da bagagem

A próxima visita
Não importa o tamanho da espera. A diferença está na idade de quem espera. É o que ele diz enquanto acaricia os joelhos como se neles se desenhasse o redondo da velhice

Viúvas vizinhas
Quase não havia distância a separarmo-nos. Como não haviam de ressoar dentro de mim os gritos de socorro da vizinha?

A estátua em segunda mão
Samora finge ignorar a solidão que o afasta da realidade. Talvez por isso, para fugir à sua condição, esteja de fato de treino
