Nick Cave, para ser Nick Cave, precisa de nós. Melhor: Nick Cave só é verdadeiramente Nick Cave quando estamos a olhar para ele, quando ele sabe que nós sabemos que ele existe e nos preocupamos com ele. E ele precisa disso. Já o tinha sentido em vários concertos, no modo como se exibe, como se entrega, como olha para o seu público. Para nós.
Penso nisso quando vejo One More Time With Feeling numa sala esgotada do Corte Inglés, em Lisboa. Há mais salas esgotadas, à mesma hora, em Lisboa e por todo o mundo, nesta apresentação especial do filme/documentário de Andrew Dominik, que estreou há dias no Festival de Cinema de Veneza.
O filme é o passo em frente de Nick Cave. Muitos dos que o admiram e se precocupam com ele (incluo-me no grupo) pensaram, em julho do ano passado, como poderia ele resistir e seguir em frente depois da morte, aos 15 anos, do seu filho Arthur, irmão gémeo de Earl. Conhecíamos bem as caras deles desde que os tinhamos visto num sofá, ao lado do pai, a comerem pizza e a verem um qualquer filme de ação no documentário 20.000 Dias na Terra (de 2014).
Nick Cave reagiu às adversidades sempre do mesmo modo: com trabalho, e assim mesmo, sem medo da palavra “trabalho”. Em One More Time with Feeling ouvimos a sua mulher Susie contar-nos que esse foi o conselho de Nick para superar um momento tão difícil: ir trabalhar, não ficar parada, forçar-se a fazer. Quando, há uns dez anos, se viu obrigado a deixar o álcool e as drogas, Nick Cave temeu que tudo tivesse acabado, demasiado clean e lúcido para continuar o seu percurso artístico. Solução: trabalhar das nove às cinco, ir trabalhar diariamente, escrever canções, o que for, mesmo sem saber o que tinha para dizer, para fazer. “Trabalhar uma má ideia é melhor do que não trabalhar ideia nenhuma” ouvíamo-lo dizer em 20.000 Dias na Terra.
Foi sempre assim. Nos primeiros tempos, os dos Birthday Party, tão longe que vão, a aparência era a de “Nick Cave contra o mundo”. Muitos concertos terminavam a meio quando o músico saltava do palco e se envolvia em sessões de pancadaria com alguém na sala. Mas já era assim. E agora, é assim outra vez.
De alguma forma, One More Time with Feeling é surpreendente. É, também, um documentário sobre a gravação do novo disco, Skeleton Tree (lançado hoje, 9 de setembro) mas a morte de Arthur não é uma sombra que necessariamente percorre o filme: é o tema central. E nesse sentido o filme é muito mais de Nick Cave do que de qualquer realizador ou produtor. Ele quis falar connosco. Procurar as palavras, tentar tudo para não deixar nada por dizer. Mostrar que “por vingança e desafio” ele e Susan decidiram ser felizes (ou tentarem, o que, às vezes, pode ser quase a mesma coisa). A palavra que usa, várias vezes, é “trauma”, um trauma gigante que não deixa espaço para a imaginação e a criatividade; palavras que se impõem como nunca antes; reações suas que antes não conseguiria prever. Nick Cave fala connosco, tentando não deixar nada por dizer. Hesitando, não temendo lugares comuns, querendo explicar. E pergunta ao seu amigo e cúmplice musical Warren Ellis se o seu cabelo negro, penteado para trás, está bem. “Melhor do que nunca”, responde Ellis.
Entrevistei o Nick Cave duas vezes. Uma por alturas do seu disco duplo, Abattoir Blues /The Lyre of Orpheus (marcado pelo tal grande desafio de ver o mundo sem o filtro do álcool e drogas) e a outra por ocasião do lançamento do seu segundo romance A Morte de Bunny Munro. Das duas vezes a conversa foi parar à sua relação com os filhos mais novos. E foi com genuíno interesse e curiosidade que lhe perguntei sobre a sua relação com a ideia de Deus, a Bíblia e Jesus Cristo, tão presentes nos seu imaginário… Há frases soltas, ditas na sua voz grave, que ainda ecoam na minha cabeça, mas senti hoje o impulso de me reencontrar com essas conversas, como quem se reencontra com Nick Cave.
“Quando vê imagens suas dos tempos dos Birthday Party, sente que está a olhar para uma personagem distante?
Não, é a minha juventude. É o que eu fiz. Está bastante distante, claro, afinal foi há 25 anos, um quarto de século!
Como reagiria se um dos seus filhos tivesse uma juventude parecida com a sua, rebelde e com vontade de experimentar tudo?
Preferia que ele chegasse ao pé de mim e me dissesse «tenho um problema com drogas» – que eu compreenderia – a que aparecesse com uma bola de futebol numa mão e um pack de seis cervejas na outra, com aquele tipo de expressão idiota e perdida, a dizer que queria ir para Portugal para se divertir numas sessões de pancadaria. Isso seria muito mais preocupante para mim. Acho que com isso não conseguiria lidar muito bem. Olhava para o miúdo e não saberia o que lhe dizer… Se o meu filho fosse como eu fui, esse não seria o pior dos meus pesadelos. Tenho um grande amor pela vida, a arte, a literatura, a música. É esse tipo de coisas que me mantém vivo.
Quando, em várias canções, fala de «deus» e usa múltiplas referências à Bíblia, à religião católica e às suas imagens é só um fascínio estético por esse imaginário ou…
Quer perguntar se eu acredito em Deus, não é?
É mais em que é que está a pensar quando escreve «deus»…
Sempre falei de Deus, até nos Birthday Party. Porque eu acredito em Deus. Por um lado, sou um ser humano muito racional, com um sentido muito prático da vida. E a noção de Deus não encaixa muito bem com esse tipo de pensamento. Há alturas em que eu penso: como é que posso acreditar em Deus, um deus benigno e bom, quando olho para o mundo hoje? É uma questão de sempre. Por isso, na minha vida, coloco a noção de Deus no lado da minha mente que é imaginação, magia, pensamentos irracionais, absurdos… E, aí, a noção de Deus encaixa-se muito confortavelmente.
Mas é capaz de se envolver numa religião de um modo mais institucional?
Não, não sou. O nome de Deus tem sido usado para objectivos tão hediondos, por bandos de fascistas, homófobos, todo o género de loucos! Acho isso verdadeiramente preocupante. Por isso, tenho a minha noção pessoal de Deus. O meu deus privado. Tenho um interesse profundo na Bíblia – as palavras da Bíblia são maravilhosas – e na mensagem de Jesus Cristo, mas não faço parte de nenhuma religião organizada.
Vê Deus como algo de superior, que o protege?
[Silêncio] Que me protege… Sim, soa-me bem.”
Agora, em Jesus Alone, ouvimo-lo cantar: “You believe in God but you get no special dispensation for this belief“.
As cenas finais de One More Time Feeling são de uma beleza lancinante. Vemos imagens do oceano e do alto penhasco de onde caiu o jovem Arthur (na sequência duma primeira experiência com LSD, saber-se-ia mais tarde) enquanto ouvimos uma extraordinário versão de Deep Water, de Marianne Faithfull nas vozes de Earl e Arthur Cave.
E o mundo é absurdo. Sem sentido. E coisas acontecem, estão sempre a acontecer: como ver alguém levar um balde de pipocas para ver One More Time With Feeling.