Na passada quarta-feira, um perigoso gangue de lisboetas instalou um banquinho de madeira numa paragem de autocarro. A ação surgiu como resposta cidadã à substituição recente dos antigos abrigos, com banco para as pessoas se sentarem, por estruturas modernas que só oferecem encosto. Ao longo do dia, o banquinho deu repouso a dezenas de pessoas idosas, doentes ou só cansadas de estar de pé. Na manhã seguinte, já não estava lá.
A iniciativa partiu do grupo – e não gangue, claro está – “Infraestrutura Pública”, que construiu com sobras de madeira um banco à medida e o instalou. Ironicamente, na Avenida Fontes Pereira de Melo, saudoso ministro das obras públicas. Infraestruturas. Em 2024, são cada vez mais as obras privadas – que é, como quem diz, cidadãs – a colmatar a gestão pública, frequentemente alienada do dia-a-dia de quem habita.
As novas paragens de autocarro resultam de um contrato entre a Câmara Municipal de Lisboa e a empresa francesa JCDecaux, especializada em mobiliário urbano com publicidade. Questiono-me se será possível que os novos abrigos, sem banco, estejam pensados para cidades em que o autocarro passa a cada dois minutos. Será? É que basta viver um dia em Lisboa para as ver desadequadas numa cidade onde esperar é desporto olímpico. Muitas vezes são vinte, trinta e quarenta minutos à espera da caminéta. Mal por mal, mais vale esperar sentado.
O que diria “o Fontes”, como lhe chamava o povo, destas infraestruturas? É difícil não ver nos novos abrigos a alegoria de uma certa visão para a cidade: conectada à Internet, desconectada da realidade. As duas mil novas paragens estão equipadas com portas USB, rede Wi-Fi e painéis digitais, alguns dos quais tácteis para navegar, scrollar e uma série de cenas amazing. Desse ponto de vista, estamos em 2054. Já quanto a quem precisar de se sentar, procure uma cadeira no Google. Ou um sofá em conta, para sentar o avatar.
Infelizmente, este serviço público continua a não responder às necessidades dos cidadãos naquilo que é central: o transporte. Lisboa está a milhas, de atraso, das cidades congéneres. Duzentos e tal anos passados do nascimento do ministro pioneiro que importou os caminhos-de-ferro, continuamos a marcar passo nos meios de transporte todos. Venha o diabo e escolha: comboio, avião, metro, autocarro, carro, bicicleta ou os
acessos a pé. Talvez se salve o tuk-tuk. Pelos vistos, não só estamos atrasados como estamos a regredir nas condições, no conforto e na qualidade de vida de quem depende do autocarro.
As pessoas não são todas bem-vindas no modelo de cidade em vigor. Devíamos estar a discutir mais mobiliário urbano, mais casas de banho, mais transportes, mais acessibilidade. Ao invés, vamos expulsando o que é autêntico, privatizando o que é de todos. Por toda a Europa, começamos a ver aprovadas medidas para devolver as cidades aos habitantes, equilibrar o turismo desenfreado, criar espaços coletivos, habitação pública, bons transportes e zonas pedonais. Por cá, tiram-se os bancos aos velhotes. Depois da privatização da banca, chegou a privatização do banco.
O futuro de Lisboa está no sentido contrário: começar a merecer as pessoas que cá vivem.
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