Foram três horas dolorosas de assistir para quem acredita, ou quer acreditar, na Justiça portuguesa. Em vez da confiança no sistema que era devida ao fim de sete anos de Operação Marquês, os portugueses assistiram esta tarde a acusações de especulação, fantasia, incoerência e inconsistência. Um terramoto jurídico, político e social e um gigantesco atestado de incompetência ao sistema de investigação criminal e ao Ministério Público em Portugal.
Ivo Rosa desmembrou, ponto por ponto, a acusação construída pelo Ministério Público na Operação Marquês, pondo em causa todo o trabalho de anos desenvolvido por Rosário Teixeira e Carlos Alexandre. Sete anos depois, tudo espremido pelo juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, ficaram apenas dois ou três caroços de um limão azedo: de 189 crimes, restaram apenas 17 crimes menores – mais de 90% dos crimes foram enfiados na gaveta. Ivo Rosa não pronunciou nenhum dos principais arguidos – José Sócrates, Ricardo Salgado, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro – por nenhum dos crimes de corrupção passiva e ativa que constavam da acusação, alegando a prescrição dos prazos judicias, e inexistência de indícios suficientes que confirmem a tese da acusação, que ao longo da leitura da sentença, declarou “inócua”, “incongruente”, “sem rigor e sem consistência”.
Apesar de Ivo Rosa dar como certo que existem indícios de crime de corrupção por parte do primeiro-ministro na utilização do dinheiro do amigo Carlos Santos Silva, entende que não podem ser julgados porque terão prescrito. Uma tese que divide a doutrina e merece interpretações distintas. Quanto à fraude fiscal, se o dinheiro foi obtido de forma ilícita não seria expectável que fosse declarado. Portanto, se se confirmar esta e outras decisões de Ivo Rosa, José Sócrates vai a julgamento por apenas três crimes de branqueamento e três crimes de falsificação de documentos. Perante a magnitude do que constava na acusação, a montanha pariu um rato.
Sabemos que Ivo Rosa é especialmente cauteloso e “garantista” na salvaguarda dos direitos dos arguidos, com uma visão diametralmente oposta da do seu colega do Ticão, Carlos Alexandre. E sabemos também que o Tribunal da Relação tende a contrariar e reverter as decisões da Ivo Rosa e dar razão ao Ministério Público. Ivo Rosa falou como se fosse um juiz final do processo, e não apenas como o juiz de instrução numa fase intermédia do processo penal. A quem cabe só apreciar os indícios da existência de um crime e não fazer um julgamento da prova. Mas, até decisão de instância superior em contrário, decidiu, está decidido.
Quanto a José Sócrates, o animal feroz está de volta, legitimamente confiante e ilibado dos crimes mais graves que lhe tinham sido imputados. Apesar de ter assistido a um juiz pronunciar e, escrever numa decisão, que recebeu muitos milhões de forma altamente suspeita, um crime de “corrupção passiva sem demonstração de ato concreto”. O ex-primeiro-Ministro continuará a insistir na tese – altamente inverosímil para qualquer cidadão comum – de que são apenas empréstimos do bom amigo para fazer uma vida de luxo perante dificuldades financeiras permanentes. José Sócrates, sempre inocente perante a lei até prova em contrário, pode até vir a livrar-se do julgamento criminal, mas do moral e do político, perante o que já confessou, não se livrará.
Uma coisa é certa. Tudo isto é algo difícil de entender para os portugueses, algo que será obviamente aproveitado pela ala da direita radical, oportunista e populista, para se alavancar com discursos justicialistas. É muito fácil seguir este caminho, polarizando os tempos e os modos próprios da Justiça e do Estado de Direito, que têm de ser respeitados. É legítimo perguntar: Se José Sócrates foi corrompido, porque não é julgado? Se os prazos prescreveram, porque chegámos aqui? Se o caso tivesse sido julgado pelo outro juiz, seria tudo diferente? Ou o sistema falhou muito e perseguiu de forma inadmissível injustamente cidadãos inocentes, ou o sistema falhou muito e está a deixar sair impunes os poderosos e os donos disto tudo, dirão. Provavelmente, nem uma coisa nem outra – são, repito, as regras do Estado de Direito a funcionar. Mas é fácil de perceber porque muitos se sentiram hoje, legitimamente, defraudados. Gozados.
Como sair daqui e ressuscitar a imagem da Justiça, tentando recuperar alguma parte da confiança perdida no sistema? Não é fácil. Esta ferida vai demorar a sarar. Mas talvez legislar sobre o enriquecimento ilícito, acabar com o Ticão e rever alguns prazos de prescrição possa ajudar.