Querida avó,
Tem estado um frio que não se aguenta!
Passei por uma livraria que tinha uma montra repleta de livros de Saramago.
Em 2022 celebrou-se o centenário do único português que, até agora, recebeu o Nobel da Literatura, havemos de falar sobre o escritor com mais calma.
Adoro a iniciativa de estarem a ser baptizadas, na Azinhaga, Golegã, 100 árvores, com os nomes de personagens dos livros de Saramago.
Tendo eu várias iniciativas relacionadas com avós, não posso deixar de referir que os avós de Saramago se chamavam Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha e eram ambos analfabetos. Temos que falar sobre tudo isto com a Ana Matos, neta do escritor.
Adiante.
Vi, recentemente, a Maria Emília Brederode, no programa Primeira Pessoa, da Fátima Campos Ferreira.
Como não podia deixar de ser, falou da Rua Sésamo, série pedagógica da RTP, do qual foi escritora e diretora.
Já lá vão praticamente 35 anos desde a sua estreia, em novembro, de 1987. Começava um fenómeno nacional que já há muitos anos que era um sucesso internacional. Recordo-me da Avó Chica, das participações da Alexandra Lencastre, José Raposo, Ana Brito e Cunha, Vítor Norte, entre tantos outros.
Mas claro que o destaque vai para uma série de personagens, ainda hoje aclamadas por várias gerações, que passaram a fazer parte da nossa família. O Monstro das Bolachas, o Popas, o Ferrão, o Egas o Becas…
Já para não falar do genérico: “O sol nasceu; Como está; Lindo céu; Lá vou eu, vem tu daí também; Aprender como se vai até a Rua Sésamo”.
“Vem brincar; Traz um amigo teu. E ao chegar tu vais poder também ensinar como se vai até a Rua Sésamo; Até a Rua Sésamo”
Tu, que conheceste o Saramago, que escreveste textos para a Rua Sésamo, e que és autora da letra da inesquecível música Orgulho em ser uma vaca, leva este teu neto a uma viagem às memórias de Portugal.
Bjs
Querido neto,
Em breve temos que falar do Saramago!
Estava com ele, em Frankfurt, numa Feira do Livro, quando ele soube que tinha ganho o Nobel.
Mas não resisto, do que te foste lembrar! A Rua Sésamo.
A Rua Sésamo era produzida nos Estados Unidos da América. Metade do programa era traduzido e portanto igual em todos os países; a outra metade era feita de raiz em cada país onde o programa era exibido.
Para essa metade eram contratados escritores para inventarem histórias, criarem outras personagens.
Embora tivéssemos liberdade de imaginação, tínhamos de obedecer aos temas que todas as semanas nos eram dados, por vezes os mesmos uma data de vezes.
Lembro-me de andar doida a imaginar “lugares onde a escrita é necessária”. Livros, jornais, cadernos, recados, cartas, postais, anúncios, telegramas, editais, tabuletas, invólucros de produtos – já nem sabia que mais inventar. Até que de repente tive uma ideia salvadora: etiquetas dos fatos!
Era complicadíssimo fazer a Rua Sésamo.
Todos os atores deviam trabalhar o mesmo, ou seja, não havia um a entrar em três cenas e outro só numa.
E já naquela altura tudo tinha de ser politicamente correto, senão os americanos cortavam e tínhamos de refazer tudo.
Uma vez perdi a cabeça. A cena era aparentemente fácil: a avó Chica (Fernanda Montemor) estava à espera do neto Gil (Pedro Wilson) para o jantar e um deles tinha de beber leite. Ele entra, estafado senta-se numa cadeira, e pede: “-Ai avó, apetece-me tanto um copinho de leite!”
Veio cortado: “Ele tem boas pernas para ir buscar leite, não se vai incomodar a avó”.
Então eu mudei. O Gil entra, muito contente, a assobiar, e a Avó Chica diz-lhe: “olha, vai-me buscar um copinho de leite ao frigorifico”.
Veio cortado: “era a exploração do negro” (Pedro Wilson era um ator negro).
E era assim todos os dias. Resultou muito bem, mas saiu-nos do pelo.
Sim, e, entre outras tantas coisas que escrevi para a Rua Sésamo, sou autora da canção Orgulho em ser uma vaca que ainda hoje é um sucesso.
Bjs
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.