Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
O calor das autárquicas recuperou o tema da habitação para a esfera pública. O sôfrego regresso dos trolleys, dos tuk-tuks, do universo de veículos com rodinhas que os portugueses usam pouco, reanimou a conversa sobre o impacto do turismo massificado nas cidades. Se o turismo é um pilar fundamental da economia e as nossas portas se querem abertas ao mundo, o modelo pré-covid da Disneylândia imobiliária é incomportável. No virar da página, chegou a hora de garantir que os portugueses têm onde viver. O direito das pessoas a viver com dignidade no seu país é inalienável.
Um estudo da consultora britânica Money.co.uk sobre a evolução do preço médio do imobiliário na OCDE na última década traz más notícias para Portugal. Se tivermos em conta a inflação e a variação do salário médio – que desceu -, o preço por metro quadrado aumentou 86,5% no país. É uma catástrofe. Mesmo em valor absoluto, sem considerar o poder de compra, o preço médio das casas aumentou perto de 40% em Portugal, de acordo com o Eurostat. Em freguesias específicas, as subidas são astronómicas. Em 2018, Portugal observou a maior escalada de preços da União Europeia.
Não caio na armadilha de tratar o turismo ou o investimento estrangeiro como bodes-expiatórios da luta pela habitação digna – ou não fossem essenciais aos cofres do Estado, ao cosmopolitismo, à arquitetura das cidades. Mas o artigo 65º da Constituição da República Portuguesa existe e não é menos importante. Para além de um direito fundamental, a habitação é central ao desenvolvimento social, económico, cultural e demográfico no país. Basta ver que, na mesma década em que o preço das casas disparou, o território perdeu 200 mil pessoas, a litoralização acentuou-se, centenas de milhares de jovens e famílias deixaram Portugal. Muitos não voltam. Estará isto desligado? Que perspetivas há para um país onde um casal de jovens com educação superior e um trabalho a tempo inteiro não consegue encontrar uma casa decente? Que futuro existe para um país onde os habitantes são despejados das ruas onde sempre viveram, forçados a rumar aos arrabaldes onde não há emprego, transportes, qualidade de vida?
A inação dos sucessivos governos para prevenir o problema permitiu a sua projeção na estratosfera com a entrada de Lisboa e do Porto para o mercado mundial da especulação imobiliária. Sem regulação ou estratégia, as maiores cidades portuguesas deixaram de refletir a realidade do país, os salários do país, para se alinhar com os grandes centros mundiais – Londres, Paris, Berlim, Barcelona, Nova Iorque, Istambul – onde a financeirização da habitação impera. Evidentemente, Portugal sai a perder neste mercado, dadas as suas fragilidades económicas. Se o arrendamento para uso turístico é uma excelente fonte de rendimento para várias famílias, falamos aqui de um fenómeno noutra escala. Refiro-me ao momento em que os lares passam a ser ativos financeiros, propriedade temporária de especuladores anónimos, sem ligação ou amor à cidade, que compram casas como quem compra ações, à espera que valorizem. Em Berlim, os “grandes senhorios” chegam a ter 150 mil casas. Só que, entretanto, há famílias, há jovens, há idosos, a dormir nesses ativos financeiros, à mercê das guinadas do mercado. Os direitos fundamentais e o futuro do país não podem estar cotados em bolsa. A cultura de uma cidade, o seu tecido social, os seus cafés e lojas históricas não podem ser submetidos, sem proteção, às variações de um gráfico desumanizado. As políticas públicas servem para o impedir.
Berlim estabeleceu tetos máximos para os preços das rendas, de acordo com a zona e tipologia do imóvel. Nas cidades com maior qualidade de vida da União Europeia, vigora uma aposta em habitação gerida ou intermediada pelo Estado. Portugal tem um trauma com o congelamento de rendas, que condenou as cidades ao imobilismo e à decadência, mas seria possível regular com critérios ponderados e já estudados noutras paragens. Não faz sentido termos 730 mil casas vazias no país, se há quem parta por falta de teto. Não faz sentido que apenas 2% dos imóveis alugados em Portugal tenham o Estado como senhorio, com tanto património público devoluto ou desaproveitado. Conhecemos as premissas: requalificar, aumentar a oferta habitacional pública, incentivar o arrendamento privado com rendas controladas, equilibrar a oferta habitacional e a exploração turística local. Falta fazer. Nas últimas semanas, conhecemos pacotes eleitorais para devolver aos portugueses o direito a habitar. É louvável que a questão da habitação pareça hoje mais consensual nos programas, mais transversal aos planos de desenvolvimento. Falta a concretização. A pandemia ajudou a escancarar aquilo que sempre foi óbvio: a nossa casa é o espaço mais determinante das nossas vidas, colmeia protetora das famílias, espaço de criação, de amor, de trabalho, de repouso. Há que reafirmar o foco naquilo que importa, a família, a saúde, a cultura, a coesão, a qualidade de vida. Aqui, só a coragem e a competência política poderão garantir o direito fundamental à habitação, que é também campo da maior importância demográfica e económica. Ao fim de um ano e meio a pedir às pessoas que “fiquem em casa”, está na hora de criar condições para que possam fazê-lo com dignidade.
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