Esta semana, Portugal leva o ouro nos Olímpicos da vacinação com 70% da população protegida. Contra todos os que anunciaram o desastre, a lusitana casquinha de noz teima em dobrar este cabo da Boa Esperança. O problema de profetizar a catástrofe por defeito é esse: quanto mais veemente o prognóstico, mais penoso o walk of shame. Quando o assunto é desempenho nacional – organização, competência, transparência, produtividade -, o sentimento vigente é o de que vamos falhar. Com a exceção do futebol, onde vamos sempre ganhar. Arriscar cenários é um exercício fundamental, levantar questões, traçar possibilidades, mas a ingrata missão de prever o futuro é matéria de especialidade. Deve, portanto, ser entregue a alguém munido de um turbante à altura. Não percebendo isto, os novos conspiracionistas embalam-se na queda contemporânea para o curto-prazo e perdem o interesse em episódios passados – a viagem à Lua ou a morte de John Lennon –, para se dedicarem ao futuro, em profecias com prazos de validade cada vez mais curtos.
O negacionismo está na ordem do ano. Sempre houve e haverá quem negue a evidência, mas o caldo cultural da pandemia ajudou a que o fenómeno se alastrasse. Todos os dias estremecemos com a miragem de pessoas à chuva, ensopadas, gritando que não está a chover, que a água não existe, que a pluviosidade é um mito inventado para perturbar cidadãos de bem. Além do mais, nunca a recusa de aceitar a realidade empiricamente verificável foi uma ameaça tão direta: é mais perigoso haver quem negue a existência de um vírus mortal e contagioso, ou quem negue a eficácia das vacinas contra factos demonstrados, do que haver quem negue o consenso milenar sobre o formato da Terra, ou a existência de corujas. Seria péssimo ter muita gente a recusar a existência de um animal tão simpático, mas não imagino nada de demasiado grave a resultar de um delírio assim. Graças à propaganda de extrema-direita, há milhares de europeus convencidos de que o Holocausto nunca aconteceu – o que é grave pela loucura latente, reflexo de um objetivo político pela manipulação histórica, porém nenhuma teoria estapafúrdia tem hoje impacto mais imediato do que o negacionismo covid. Nas alas hospitalares, todos os dias entram pessoas pela mão das próprias fantasias. Mais grave ainda: das fantasias dos outros.
Sendo um fenómeno residual em Portugal, é curioso que os antivax não queiram ser confundidos com teóricos da conspiração. Aparentemente, até na liga de quem acredita em complôs mundiais há distinção de classe. Negacionismo não é sinónimo de conspiracionismo, mas é condição suficiente. Quem negou a existência do vírus, a gravidade do vírus, quem nega a validade ou a eficácia das vacinas, não propõe uma teoria da conspiração concreta – não atribui o enredo aos Illuminati -, mas está a ir contra o consenso entre instituições científicas, organizações não-governamentais, laboratórios e ministérios. Acreditar que todas as instituições à face da Terra estão a “tramar” esta situação contra os interesses da população é conspiracionismo.
De curto prazo. A Internet sempre foi fértil em teorias sobre voos desaparecidos, a morte de J. F. Kennedy, o 11 de setembro ou os OVNIs na Praia da Rocha. A Ciência diz-nos que o fenómeno das teorias da conspiração resulta de uma necessidade natural de encontrar justificação para um acontecimento chocante ou complexo. Há quem desenvolva permeabilidade a teorias estranhas, de caráter paranoico, perante um facto incompreendido ou tido como aleatório. Mas, ao contrário das teorias fabulosas sobre os faraós ou os maias, há hoje – quiçá por força de um estado de alerta prolongado, sinuoso e persistente, com curvas e contracurvas – uma tendência para a desconfiança a priori, sem justificação. Tudo isto a léguas de um questionamento saudável e recomendável. Aqui, a desconfiança surge antes da pesquisa, a negação surge antes dos factos. Há um cepticismo permanente em relação ao “sistema”, sem provas, que não resulta da leitura, da informação, mas sim do seu contrário. É um reflexo puramente emocional e, portanto, impenetrável. Depois, o tempo encarrega-se de trazer o azeite ao de cima e as teorias estrambólicas de ontem provam-se erradas. Criam-se novas. Sem responsabilização dos seus promotores, sem mea culpa dos seguidores. Como no caso de quem anuncia o diabo na vacinação e não reflete sobre as suas posições quando a realidade as desmente. Precisamos de responsabilidade sobre o que se diz, se escreve, se partilha.
Mal podemos esperar para regressar às teorias sobre as pirâmides do Egito.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.