Associado ou não a doença mental, o suicídio é a doença da desesperança. É a ausência de saída, de solução, é a dor continuada ao limite do insuportável. Não mata pela vontade de morrer, nem pela desistência egoísta, nem pela fuga cobarde: mata porque é demasiado doloroso estar-se vivo, esperança gorada na melhoria. É muito diferente escolher não viver, ou escolher morrer. Como é que sei? Porque pertenço à estatística das tentativas e a minha bio faz cruz em todos estes quadrados: ideei o suicídio aos 15; nunca recebi diagnóstico ou tratamento médico-mental senão aos 24 quando, adulta, os procurei; a depressão já era crónica, profunda e recorrente, o estrago neuroquímico estava feito, década e tal de sofrimento estigmatizado e silencioso; a desesperança venceu-me e escolhi, em 2009, não viver. Sobrevivi. Quando lá voltei, à voragem desesperançada, tive de revirar o mundo e os fígados para me manter agarrada à minha escolha: viver. Em 2022 assisto, nada passiva, à repetição da minha história à escala dos milhões, como se o tempo e o preconceito fossem as únicas constantes possíveis.
800 mil suicídios por ano, a nível mundial. 16 milhões de tentativas anuais. Aos primeiros dias de novembro, 721.322 pessoas já se suicidaram, cerca de 14,4 milhões tentaram, e 2022 ainda tem 54 dias. As doenças mentais são o principal fator de risco, e o preconceito que as persegue contagia o suicídio: não se fala mediaticamente do tema, sob risco de “identificação com o suicida”; e ao 22º ano do novo milénio, 20 países ainda criminalizam a tentativa. O mesmo ano em que a “geração deprimida” – adolescentes e jovens adultos – engorda as estatísticas dos autocídios e tentativas: a nível mundial, o suicídio é a segunda causa de morte entre os 15 e os 24 anos; na Austrália é a primeira; nos EUA, é a segunda entre os 10 e os 34 anos; em Portugal, e em geral na UE, é a segunda causa de morte entre os 10 e os 19 anos.
Depois de uma acentuada diminuição de casos, o milénio trouxe mais suicídio, suicídio mais jovem, relação e visibilidade à pandemia de saúde mental. Não é a crise energética nem a dependência do gás e petróleo russos que apagam a luz no túnel de desesperança onde nasce a ideação suicida: é a crise do preconceito, identitária, de subdiagnóstico, o continuo confinamento do acesso aos cuidados de saúde mental. É a dependência dos antidepressivos, antipsicóticos, ansiolíticos que, solitários, são a anticura. É a ausência de intervenção preventiva para enfrentar um problema de saúde pública – só 38 países têm planos nacionais de prevenção do suicídio, segundo a Organização Mundial de Saúde.
Se 90% dos que se suicidam – e provavelmente dos que tentam – mostravam sintomas claros de doença mental, restam dúvidas sobre o nosso fracasso coletivo na prevenção das mortes mais estúpidas e desnecessárias?
O silêncio. A relação entre doenças mentais e suicídio é umbilical, ainda que não exclusiva. A psiquiatria moderna tentou insistir numa ligação meramente empírica, mas só gente doida pode negar o óbvio e a OMS já se deixou disso, estimando que de entre os 90% de suicidas-doentes mentais cerca de 60% tivessem depressão, e depois abuso de álcool. A discriminação exponencia o risco (de doença mental e de suicídio) de grupos vulneráveis como os refugiados, migrantes, a comunidade LGBTQI. E a reincidência integra o problema: o derradeiro fator de risco é uma tentativa anterior.
A única estratégia eficiente é a preventiva. Se a doença mental é fator de risco, o diagnóstico e tratamento são fatores de proteção. Atualmente é mais rigoroso falar de uma relação direta entre o suicídio e o miserável acesso à medicina mental: apenas 46% dos suicidas com doenças mentais terão sido diagnosticados ou recebido cuidados médico-mentais. Mas se não tratamos o problema na origem, como evitá-lo no fim da linha? Informação, despreconceito e tratamento, são os imperativos da cura.
Os cientistas da psique disseram, décadas a fio, que dar palco ao suicídio potencia a identificação e os casos consumados e tentados. Os media calaram e consentiram no estigma. Diz-se que em 1774 a publicação d’ “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe, originou uma onda europeia de suicídios, inspirados no protagonista autocída e desgostoso de amor. Seria o “efeito Werther”, ainda hoje sem comprovação científica. Em 2017, a Netflix lançou a série “13 Reasons Why”, as do suicídio da personagem Hannah Baker, de 17 anos, que as deixa gravadas em K7. Segundo organizações americanas, 3 meses depois a taxa de suicídio entre os 10 e os 19 anos aumentou 13% – mais uma vez a afirmação é empírica. Significa isto que o suicídio deve manter-se tabu, inominado, tema trancado a cadeado? De modo algum. Trazer a saúde mental para a arena pública, despudorada e responsavelmente, informar e dar a conhecer as alternativas de tratamento a quem sofre insuportavelmente, é prevenir o suicídio e promover a “identificação” com o doente mental em tratamento, com o sobrevivente, com quem escolhe viver.
Além da censura nos media, o suicídio continua a ser socialmente estigmatizado. Bahamas, Bangladesh, Brunei, Gana, Guiana, Quénia, Malawi, Myanmar, Nigéria, Paquistão, Papua Nova Guiné, Qatar, Santa Lúcia, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Tanzânia, Tonga, Uganda: a geografia do suicídio-crime. As penas para o suicida sobrevivente são multas e até 3 anos de prisão. Se concretiza, limitam-lhe o direito de disposição da propriedade invalidando o seu testamento. Em Portugal, a despenalização deu-se em 1886, mas até 1823 a ocidental Inglaterra enterrou os suicidas em entroncamentos e só descriminalizou em 1961. A eficiência das penas e censura social na prevenção? Absolutamente nenhuma. Nas Ilhas Caimão o suicídio-crime foi abolido em 2020, provado que ficou que só 5% das crianças e jovens em risco procuravam ajuda, face ao estigma amplificado pela penalização.
50% dos transtornos de saúde mental começam aos 14 anos, e 75% até aos 24 anos. A conclusão é da OMS, num retrato estatístico assustador da saúde mental dos Millennials e Zoomers, a “geração deprimida”. A tempestade é perfeita: 10% das crianças e jovens entre os 5 e os 16 anos têm um problema mental clinicamente diagnosticável, que em 70% dos casos não recebe (qualquer) tratamento atempado. Crianças e adolescentes não tratados são adultos doentes crónicos, doença instalada e muito mais difícil de suplantar. Será, então, de estranhar que nas causas de morte dianteiras da Geração Z esteja o suicídio?
As Gerações Z (entre os 10 e os 25 anos, 23,5% do mundo) e Y (entre os 26 e os 40, 22,1%) são quase metade da população mundial e para a sua extrema vulnerabilidade mental reúnem-se vários fatores: a pandemia exacerbou-lhes a ansiedade, e posterior ressaca social; a sua existência digital de 10 horas diárias de screen time; a frustração profissional, associada ao mito meritocrático: condicionamos-lhes o sucesso socioeconómico ao esforço, e não concretizámos; a globalização das suas preocupações; e a maior capacidade e menor preconceito para reconhecerem o seu mal-estar mental. As causas são traço essencial destes miúdos: pensam mais, sentem maior ansiedade pelos problemas de todos, e ao seu dispor têm ferramentas de comunicação que, por um lado, lhes dão um sentimento de grande pertença, mas por outro lhes agravam a responsabilidade e ansiedade face às dificuldades de resolução dos problemas. São eco-ansiosos, feministas, ativistas LGBTQI, questionam o modo capitalista de viver e a suas mentes. No entanto, não são tão pródigos a procurar ajuda especializada e preferem fóruns digitais – o Tik Tok é um pérfido exemplo de desinformação, desaconselhamento e desqualificação nesta matéria.
Se ignoramos a nossa saúde mental e não lutamos por um sistema de saúde mental sólido e de livre acesso, como esperamos ajudar estas gerações?
Acorda mundo. Estamos em guerra pelo nosso núcleo existencial.
Se acha que devemos todos falar sobre saúde mental e promover positivamente este debate, pode usar este email: a.normal.saudemental@gmail.com
Caso se sinta no limite, por favor procure ajuda junto dos seus, das urgências hospitalares, das linhas de apoio:
Serviço de Aconselhamento Psicológico do SNS24: 800 24 24 24
SOS VOZ AMIGA: 213 544 545 – 912 802 669 – 963 524 660
CONVERSA AMIGA: 808 237 327 – 210 027 159
VOZES AMIGAS DE ESPERANÇA DE PORTUGAL: 222 030 707
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