A mitologia grega sempre apaixonou cientistas e intelectuais. O nosso mundo está recheado de alusões a esse universo que é para nós um continente matricial de materiais e, sobretudo, de construção de palavras e conceitos novos. Uma ideia que inclua alguma rutura paradigmática fica muito mais sexy se surgir com um nome grego. Se for um deus, melhor ainda.
Nas correntes New Age, robustecidas pelo Maio68, a ideia de uma Mãe-Natureza guardiã do planeta arregimentou muitos adeptos, tendo ganho espaço em inúmeros fóruns usando o nome Gaia.
Mas a teoria Gaia é muito mais que uma visão romântica afastada da investigação e da racionalidade. Criada em 1972 por James E. Lovelock como “Hipótese de resposta da Terra”, William Golding trabalhou o rótulo da ideia, nascendo a Hipótese ou Teoria de Gaia.
Hoje, já com muita ciência feita que nos mostra como tudo está interligado e interdependente, uma capacidade de resposta do planeta não nos espanta assim tanto. Temos, mesmo, um certo sentimento de culpa que nos leva a achar essa ideia como que uma consciência acima de nós que nos impedirá de dar cabo do planeta. Descansa-nos, esta tese.
E não que tenhamos necessidade de encontrar aqui mesmo alguém ou alguma entidade que nos castigue pela forma como gerimos o planeta que nos foi posto nas mãos pelos nossos antepassados, mas porque, no fundo, apesar de poucos de nós mudarmos de estilo de vida, todos o sabemos errado. Gaia surge como uma caixa de ressonância de uma consciência coletiva incapaz de agir.
A Terra funcionaria segundo padrões de equilíbrio dinâmico, compensando e reagindo às agressões através de alterações equivalentes. E, o mais certo, é que esta teoria tenha mesmo muito de verdade. Mas hoje, em certos meios, faz-se quase um vivenciar religioso de Gaia.
Criada, surgida do Caos, a Gaia da mitóloga grega é a mãe de um sem número de entidades que potenciam, elas mesmas, a continuação da Criação: o Céu, o Mar, as Montanhas… é como que a entidade informe, aquosa, da qual o Deus do Génesis Bíblico cria a natureza.
Gaia é potência criadora. Gaia é “ação”, é reação, é o criar como resposta ao destruir. Sim, Gaia, a Terra, pode ser o equilíbrio, mas hoje a Terra tem tudo para reagir contra nós. Personificada nessa entidade grega, hoje vemos em Gaia a hipótese apocalíptica.
E esse é o drama das linhas de pensamento que atualmente se encontram, com muto sucesso em termos de aderentes, no conceito Gaia. Para além de verem o universo dos cataclismos com um certo prazer de quem comprova a vitória da sua tese, remetem o correr da História para um fim iminente, para um verdadeiro fim dos tempos, um quase juízo final de pendor moralizante.
Se ontem o aquecimento global já fazia fervilhar de novos adeptos os grupos que cultuam Gaia, hoje com o Covid19 tudo passou para um novo nível nessa luta.
A última coisa que necessitamos é de uma leitura moral em cima da desgraça que se abateu sobre a nossa espécie. É brutalmente fácil criar um bode-expiatório, demonizar e explicar o mundo com uma lógica simples. Não será assim tão simples.