Sem o aparato de outros tempos, há um novo muro que ameaça dividir outra vez o mundo ao meio. Desta vez, a construção não se faz de arame farpado, tijolos e postos de vigia com metralhadoras, mas sim com software. E não deixa de ser sintomático que o novo muro tenha sido apresentado no país que ficou conhecido por um dos mais infames muros. Em plena rentrée, a Huawei foi a Munique anunciar o Mate 30. Mais do que a qualidade do novo topo de gama, cujas características superam as do rival da Apple, há três novidades que saltam à vista: 1) a substituição de processadores da americana Qualcomm pelo processador Kirin, da própria Huawei; 2) as apps de mapas, contas de e-mail e a Play Store da Google que deram lugar a aplicações alternativas produzidas pela Huawei; e 3) tanto o Mate 30 como o Mate 30 Pro correm uma versão open source do Android que foi apetrechada também pela Huawei.
Os dados estão lançados. E a menos que haja um volte face do tamanho de uma circum-navegação, este muro não será revertido nos próximos tempos. O que significa que as marcas de tecnologias vão ser obrigadas a escolher entre dois blocos: ou fazem negócios com os fabricantes que tornaram a China se a grande potência do hardware, ou recorrem a empresas americanas e respeitam a interdição aplicada à Huawei pela Casa Branca e a Comissão Federal de Comércio dos EUA.
A fronteira ainda não tem um traçado definitivo – até porque, antes da Huawei, já a ZTE tinha sido interditada nos EUA, e não será especialmente surpreendente se as autoridades dos EUA decidirem banir mais marcas chinesas. Também é possível que, à medida que o muro ganha forma, haja vira-casacas, malabaristas, offshores e entrepostos “neutrais” que servem de barrigas de aluguer para a importação e exportação de tecnologias.
Parece apenas um problema para diplomatas e empresários, mas mais tarde ou mais cedo o acabará por produzir efeito nas escolhas dos consumidores, como confirmou a conferência de imprensa da Huawei: os Mate 30 vão estrear em 10 países europeus (ainda não revelados) e também na Austrália.
Para os consumidores, a pergunta é incontornável: vale a pena investir num topo de gama que tem uma versão diferente do Android e que não dispõe das apps da Google?
A questão parece tão inusitada quanto um convite para um salto de paraquedas durante um voo que era suposto terminar com uma aterragem no aeroporto. A maioria dos consumidores europeus tem um histórico mediático e comercial e um repositório de dados acumulados ao longo de décadas em sistemas da Google, da Apple, da Microsoft, da Amazon, ou até da Oracle, da IBM e da EMC. Esses serão os maiores obstáculos à migração para sistemas alternativos – mas há que não esquecer a vertente regulatória e o quadro político: as marcas americanas ainda transportam consigo o lastro dos antepassados que lutaram pela libertação da Europa de totalitarismos. Sobre o sistema político chinês, se quisermos usar linguagem de embaixador, o mínimo que se pode dizer é que está longe de ser consensual e de corresponder aos padrões ocidentais, além de não haver garantias de respeito pelos regulamentos da privacidade ou da concorrência europeus.
Dito de outra forma: os europeus não se importam por aí além com o facto de as marcas americanas cooperarem com os serviços secretos (vide Snowden e Wikileaks) ou de terem práticas que, notoriamente, violam regulamentos da privacidade (vide derrogação do Safe Harbour e polémicas sobre o Facebook). E nem sequer as sanções recordistas que a Comissão Europeia aplica às grandes gigantes tecnológicas que abusam da concorrência e fogem aos impostos (vide Apple) impediram muitos milhões de europeus de comprarem o que vem dos EUA.
Será que os Mate 30 ou quaisquer outros telemóveis criados sem tecnologias americanas vão beneficiar da mesma benevolência?
Os factos ajudam a responder: antes da crise sino-americana, a Huawei escalou o ranking da venda de telemóveis, superando a Apple, e ficando apenas atrás da Samsung. O que leva a crer que a compra de equipamentos chineses não é propriamente um problema para os ocidentais. Se juntarmos a esta equação as vendas da Xiaomi e da Lenovo (que detém a Motorola), confirmamos que os ocidentais não são sempre “americano-cêntricos”. Mas essas são apenas conclusões tiradas num tempo em que as marcas chinesas sob um protetorado tácito americano, que permitia repartir lucros com Silicon Valley. Com a interdição esse cenário terminou.
Dizem os estrategas que é preferível uma escapatória para o inimigo fugir a tentar vencê-lo com um cerco que levará a uma luta pela sobrevivência. Ora, a interdição liderada pela Casa Branca pertence à segunda via. A Huawei não tem outra opção senão a luta pela sobrevivência, para evitar ser reduzida à insignificância fora da China. E a luta pela sobrevivência faz-se com armas: o que neste caso, correspondem a investimentos.
No hardware, apesar das expectativas de perda de 10 mil milhões de dólares em 2019, a missão parece facilitada, como os processadores Kirin já trataram de demonstrar. A maior dúvida incide nas normas e standards que têm a participação de empresas americanas e que poderão eventualmente ser alvo de bloqueio. O que não impedirá a marca chinesa de arregimentar um exército de engenheiros para criar alternativas com a mesma destreza com que se alcandorou à liderança dos equipamentos para as redes da quinta geração de telemóveis (5G).
No software, o caso é muito mais bicudo: a marca chinesa fez saber que vai investir mil milhões de euros na criação de um novo ecossistema capaz de fazer proliferar o número de aplicações que possam funcionar como alternativas à Google e a outras marcas americanas. Resta saber se é dinheiro suficiente para ombrear com a maior indústria de software mundial, ou se é dinheiro quando mandado para a fogueira.
É inegável que a Huawei está metida em apuros. Nos próximos meses/anos terá de passar o Cabo das Tormentas para poder dar-lhe o nome de Boa Esperança. E que não restem dúvidas de que o governo chinês está apostado em contribuir com o que for necessário para que a viagem corra bem. Boa parte da liderança mundial chinesa depende dos resultados que a Huawei alcançar a curto/médio prazo.
O mais curioso é que sem interdição comercial, a Huawei não teria a necessidade de acelerar o desenvolvimento de apps, plataformas e sistemas operativos – e provavelmente iria continuar a ser um veículo de venda de software americano. Trump pode não ter compreendido, mas as marcas americanas perceberam o cenário há muito: a interdição lesa os interesses da Huawei, mas comporta um corte nas vendas de software e uma limitação de monta no uso de componentes, ferramentas ou dispositivos fabricados por marcas chinesas – o que pode repercutir-se num atraso tecnológico. Pior: se a China começar a aplicar taxas ao “made in US” e interditar marcas americanas, então, haverá uma sangria de dólares que nem a poderosa Wall Street poderá resistir.
Não sou Tim Cook, Larry Page ou Sergey Brin, mas imagino que, depois de anos a trabalharem para poder entrar na China, andem agora às voltas com as folhas de Excel – ou a virar páginas no calendário na ânsia de chegar a uma data em que as relações entre China e EUA regressam à normalidade. O protecionismo aplicado pelas autoridades dos EUA tem a virtude de obrigar a indústria ocidental a recuperar os investimentos e a envergadura de outros tempos. Só que isso exige tempo, muitos milhões e uma estratégia à prova de futuro. Até lá, teremos a certeza de que na China ninguém está disposto a baixar braços. E que marcas como a Apple, a Dell ou a HP terão de engendrar um milagre ou, pelo menos, um golpe de génio, se quiserem manter-se na liderança mundial sem tecnologias chinesas.