Já foi dito muitas vezes, mas nunca é demais repetir o enorme marco histórico que foi esta legislatura. Lembro-me bem, no seu início, de participar em diversos debates televisivos, nos quais tinha de explicar o que resulta claro da Constituição: o Governo emana do Parlamento. Pela primeira vez, a esquerda entendia-se. Nunca mais seremos os mesmos, e ainda bem. As alternativas hipotéticas são hoje múltiplas, acabou a fatalidade do centro e se todos os partidos têm (de facto) a mesma dignidade, todas as correntes de pensamento democráticas representadas no Parlamento podem aspirar a fazer parte dos destinos da governação.
A primeira iniciativa legislativa que o PS apresentou foi a revogação do ataque que a direita fizera, à última hora, à lei da interrupção voluntária da gravidez (IVG), o qual atiraria, quase dez anos depois, as mulheres para o pesadelo do aborto clandestino. Começou, aí, a certeza de que esta direita que se diz liberal, mas que é bafienta e feroz no que toca aos direitos individuais, não tinha tido um momento infeliz, antes se reforçara com tropa ultramontana, devidamente acarinhada por uma certa imprensa. Resistiu à devolução da dignidade às mulheres, mas felizmente a maioria de esquerda repôs a normalidade de uma lei que, dez anos passados, resultou em menos interrupções de gravidezes, mais e mais acesso a consultas de planeamento familiar e no fim do pesadelo da morte das mulheres.
Com o PS no Governo foi possível, assim, construir uma sociedade mais justa e inclusiva, do ponto de vista das políticas económicas e sociais – com contas certas – ao mesmo tempo que se removeram obstáculos legais incompreensíveis do ponto de vista científico e constitucional à felicidade de adultos e crianças.
Nunca aceitamos o discurso da “hierarquia dos problemas”, como se políticas como o aumento anual das pensões, das prestações sociais, do abono de família ou a proibição das penhoras de casa de morada de família pelo fisco fossem incompatíveis com o fim da discriminação no acesso à adoção por casais do mesmo sexo, o reconhecimento da autodeterminação das pessoas transexuais e o alargamento das técnicas de procriação medicamente assistida a todas as mulheres, independentemente do seu estado civil ou da sua orientação sexual.
É precisamente pela conjugação dos dois tipos de políticas de forma tão bem-sucedida que me revejo totalmente numa nova aposta no PS. Se, por um lado, quero continuar a política feita em matéria de Estado Social e apostar na que foi apresentada em programa eleitoral, não quero uma direita pronta para emagrecer o melhor do Estado e tão horrorizada com os Direitos Humanos que junta quase todos os seus deputados para se dirigir ao Tribunal Constitucional pedindo para inconstitucionalizar a igualdade. Sim, estou a falar dos mais de oitenta deputados e deputadas que acham uma “porcaria” que o Estado se preocupe com o bem-estar dos jovens trans nas escolas. Chamam-lhe “ideologia”. À Constituição, portanto. Imagino que, qual Trump, amanhã chamarão o mesmo às alterações climáticas.
(Opinião publicada na VISÃO 1377 de 25 de julho)
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