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Em outubro do ano passado, dei um concerto na imponente sala da Philharmonie Luxembourg. O concerto correu-me bem e soube, mal acabou, que a mesa de som tinha desembaraço tecnológico suficiente para registar o áudio, e o Bruno Pereira, o técnico de som que trabalha comigo, tinha tomado a liberdade de gravar o concerto na íntegra. Uma feliz conveniência, o concerto tinha-me corrido particularmente bem. Ouvi a gravação e pensei que seria pertinente partilhá-la com quem quer que seja que me ouve. Já não estou contratualmente ligado a nenhuma editora, estamos em pleno século XXI, existem plataformas de streaming, já não faz qualquer sentido deixar de ser assinante de uma delas, a internet sem fios já se metastizou por tudo quanto é canto deste nosso planeta e foi precisamente isto que eu idealizei quando me iniciei nestas lides há 14 anos, o conceito de “pertinência” editorial pertence ao passado, pertinência é querer editar seja o que for e fazê-lo sem qualquer hesitação. Assim foi: não só me vi com disponibilidade para o fazer como também senti que seria, de certa forma, uma obrigação. Seria rápido, simples, indolor e eficaz. É só enviar os ficheiros para uma das várias distribuidoras online, enviar as artes finais, pagar o preço bastante razoável, adequado, fixo e mais do que justo e no fim sentar para trás na cadeira, relaxar e exultar ante o milagre, eu que ainda sou do tempo da televisão a preto e branco, do Sabadabadu, da Bota Botilde, dos cartuchos dos Bee Gees e do Chucky Egg e aqui estou eu a ver a magia a acontecer à frente dos meus olhos embasbacados tal qual eu sonhei, tal qual sonhou o primeiro deus sonso e ladrão que fez das tripas a primeira lira e animou todos os sons. É a música a chegar de uma forma rápida, imediata, desintermediada, com a qualidade que me foi possível, sem qualquer cedência de espécie alguma, com abundância ilimitada e infinita, a chegar a quem quer que seja que a queira ouvir. É só aguardar o email de confirmação e esperar que dali a dez dias a obra esteja disponível. Porque não imediatamente? Dez dias parece para sempre, eu sei, ainda há caminho a fazer (ainda bem) neste matagal de registos e direitos legais. Volvidos os dez dias lá fui espreitar, com a ânsia de criança que espreita para dentro do sapatinho no dia de Natal. Seria precisamente nesse dia que se previa que o álbum despontasse para o mundo. E aí começaram os problemas. Nestas coisas tão fáceis e tão automáticas, se as coisas não correm bem tudo se torna um pesadelo porque não há propriamente uma cara, um nome, um ombro do lado de lá. Começa o inferno das respostas automáticas, até que se descubra o problema. Mas lá se descobriu a pedra na engrenagem. Todo o processo entupiu por causa de uma excrescência, um tumor a que o mundo chama de “special characters”. Acontece que uma das faixas se chama Canção de Embalar o Action Man, título prenhe de tais caracteres especiais. Neste caso, uma cedilha e um til. A nossa velhinha língua está carregada destes entraves digitais. Cedilhas, tiles, acentos circunflexos, acentos agudos, acentos graves… Multiplique-se este caso e imagine-se a selva babilónica a que a nossa língua nos condena. As crianças e os adolescentes já resolveram este problema, basta estar atento à forma como eles escrevem online. Têm alternativas arredondadas e simples para cada uma das vezes que surge um espinho na nossa língua escrita. Uns grandes amigos meus deixaram de batizar o filho com o nome que preferiam porque esse nome tem uma cedilha e quiseram poupá-lo a uma vida em que raramente poderia escrever o seu nome direito, e por um filho uma pessoa faz tudo. O meu álbum enguiçou mais de um mês. Imaginem a quantidade de coisas que não enguiçarão a toda a hora. Tudo isso vai desaparecer. Tudo. Não sobrará til ou cedilha ou acento para trás ou para a frente. O mundo lima as arestas todas e eu sonho com esse dia, como sonhava em 2004 com o spotify.
(Crónica publicado na VISÃO 1356 de 28 de fevereiro)